18 março 2024

Catedral


Pierre [Jean Baptiste Louis] Dumont (1884-1936). Cathédrale de Rouen. 1912.

Fonte da foto: Wikipedia.

16 março 2024

O tédio

Alberto Moravia

Cecília, como acho que dei a entender, não era falante. Ou melhor, poder-se-ía dizer que sua atitude natural era a do silêncio; até quando falava conseguia, por assim dizer, ser também silenciosa, graças à desconcertante brevidade e impessoalidade de sua linguagem. Parecia que as palavras, em sua boca, perdiam todo significado real, reduzindo-se a sons abstratos, como se fossem palavras de uma língua estrangeira que eu desconhecia. A falta de qualquer sotaque dialetal ou de qualquer inflexão social, a ausência total de lugares-comuns reveladores, a redução da conversa a constatações puras e simples de fato incontestáveis do tipo “hoje está quente”, confirmavam essa impressão de alheamento. Perguntava-lhe, por exemplo, o que tinha feito na noite anterior: ela respondia: “Fiquei em casa para o jantar, depois saí com mamãe e fomos juntas ao cinema”. Ora, como eu cedo percebera, as palavras ‘casa’, ‘jantar’, ‘mamãe’, ‘cinema’ – que em outra boca significariam o que significam normalmente e que, portanto, conforme eram pronunciadas eu podia compreender se me diziam mentira ou verdade, essas mesmas palavras, na boca de Cecília, pareciam apenas sons abstratos, atrás dos quais era impossível imaginar tanto a realidade de verdade como a da mentira. De que modo, porém, Cecília conseguia falar dando a impressão de estar calada, é uma pergunta que frequentemente fiz a mim mesmo. E cheguei à conclusão de que ela não tinha senão um modo de se expressar, o sexual, que, no entanto, era obviamente indecifrável embora original e poderoso; e de que com a boca ela nada dizia, nem mesmo as coisas relativas ao sexo, porque a boca, por assim dizer, era nela um orifício falso, sem profundidade nem ressonância, que não se comunicava com nada de seu interior. Tanto que, muitas vezes, olhando-a quando estava deitada a meu lado no sofá, depois do amor, de costas e com as pernas abertas, eu não podia deixar de comparar a fenda horizontal da boca com a vertical do sexo e de notar, surpreendido, como a segunda era mais expressiva do que a primeira, justamente na maneira toda psicológica própria daqueles traços do rosto nos quais se revela o caráter da pessoa.

Fonte: Moravia, A. 1979 [1972}. In: Wallace, B. Biologia social, v. 2. SP, EPU & Edusp. Excerto de livro publicado originalmente em 1960.

15 março 2024

Agregado de palavras

James A. H. Murray

Aquele imenso agregado de palavras e frases que constitui o vocabulário dos homens de língua inglesa apresenta, à mente que pretende apreendê-lo como um todo definido, o aspecto de uma daquelas massas nebulosas familiares ao astrônomo, em que um núcleo claro e inequívoco emana sombra para todos os lados, através de zonas de luminosidade descrescente, até uma esbatida película marginal que parece não terminar em lado algum, mas antes perder-se imperceptivelmente na escuridão circundante.

Fonte: Boorstin, D. J. 1989. Os descobridores. 2ª ed. RJ, Civilização Brasileira. Excerto de texto publicado em livro em 1925.

13 março 2024

Égloga I

Garcilaso de la Veja

  Divina Elisa, pues agora el Cielo
Con inmortales pies pisas y mides,
Y su mudanza ves, estando queda,
¿Por qué de mí te olvidas, y no pides
Que se apresure el tiempo en que este velo
Rompa del cuerpo, y verme libre pueda?
¿Y en la tercera rueda
Contigo mano a mano
Busquemos otro llano,
Busquemos otros montes y otros rios,
Otros valles floridos y sombrios,
Donde descanse, y siempre pueda verte
Ante los ojos mios,
Sin miedo y sobresalto de perderte?

Fonte: Carpeaux, OM. 2011. História da literatura ocidental, vol. 1, 4ª ed. Brasília, Senado Federal. Poema publicado em livro em 1543.

12 março 2024

17 anos e cinco meses no ar

F. Ponce de León

Nesta terça-feira, 12/3, o Poesia Contra a Guerra está a completar 17 anos e cinco meses no ar.

Desde o balanço anterior – ‘17 anos e quatro meses no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Carlos Brisola Marcondes, George R. Zug, George Santayana, Oton F. Sá, Philip Levine e Roelof A. A. Oldeman. Além de material de autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes artistas: Joseph Delattre e Robert Antoine Pinchon.

11 março 2024

Tropical rain forest, architecture, silvigenesis and diversity

Roelof A. A. Oldeman

Summary

1. Tropical rain forest architecture and dynamics may be analysed into three integration levels […]: (i) the eco-unit or regeneration unit, (ii) the chrono-unit or developmental mosaic and (iii) the silvatic unit or successional mosaic. Architecture is the complex of forms relevant to one integration level. Measured profile diagrams provide base data.

2. An eco-unit is a vegetation unit which has started to grow on one surface at one moment […].

3. A chrono-unit is the minimal surface to include all phases (aggrading, steady-state and degrading) of one specific eco-unit […].

4. A silvatic unit includes chrono-units of all eco-unit types on one site. Silvigenesis is the preferred term for the complex of forest-shaping processes, only some of which are clearly successional […].

5. Eco-unit diversity and environmental gradients between eco-units co-determine the range of spatial niches, and hence the potential species diversity. New eco-units which appear during the degrading phases of one eco-unit are either smaller because all trees do not fall at the same time, or larger if a catastrophe interferes. The ultimate and smallest eco-unit is the ‘chablis’ or one-tree gap of the old rain forest. The inverse relationship suggested between eco-unit size and diversity appears to hold true when moving away from lowland tropical rain forest to less hospitable environments: eco-unit size increases while diversity decreases.

Fonte: Oldeman, R. A. A. 1983. In: Sutton, S. L. & mais 2, eds. Tropical rain forest: ecology and management. Oxford, Blackwell.

07 março 2024

A mocidade

Oton F. Sá

A minha ‘Mamaia’ M. F. dos Reis

Felizes os que podem sem penas e cuidados
Cercar a mocidade de contas e de flores,
Sentir na fronte o beijo dos júbilos doirados
No seio palpitante fremirem os amores...

Vós sois a sã lembrança dos júbilos passados,
Daqueles que a velhice cobriu com seus palores,
E galgam com os folguedos, ridentes, perfumados,
De vossa mocidade repleta de esplendores...

Avante!... que nos mares serenos da alegria
Jamais encontre escolhos a vossa mocidade
Batel que se declina no veio da corrente...

Que nunca da descrença sintais a vaga fria
No seio borbulhar-vos lançando a soledade...
Onde deve a esp’rança brilhar eternamente!...

Fonte: Morais-Filho, J. N. 1975. Maria Firmina dos Reis: Fragmentos de uma vida. São Luís, Governo do Estado do Maranhão. Poema datado de 1903.

05 março 2024

Gekkonidae

George R. Zug

Gekkonids are a successful group, whether measured by generic (80+) or species (850+) diversity, or by local abundance (e.g., commonly four or more species are sympatric and often the density of at least one species exceeds 100 individuals ha^–1). They occur circumtropically on all continents and most oceanic islands […]. They range in size from the tiny Sphaerodactylus (16 mm SVL) to the giant Rhacodactylus leachianus (25 cm SVL; and if extant, the 37-cm Hoplodactylus delcourti). They are terrestrial to arboreal and have a multitude of body shapes from broad-headed, robust-bodied and -limbed to slender, elongate, and nearly limbless. Most are nocturnal, although some commonly bask in late afternoon and others are strictly diurnal (e.g., Phelsuma/Indian Ocean islands, Naultinus/New Zealand). The arboreal taxa have dozen of foot and toe morphologies that permit them to climb vertical surfaces of various degrees of roughness. Their clinging/climbing abilities derive mainly from frictional adhesion via the claws and microvillous surfaces of their expanded digital lamellae. Within this broad diversity, most gekkonids have a fixed clutch of two eggs, although sphaerodactyls and a few other species have but one egg.

Zug, G. R. 1993. Herpetology, 2nd ed. Londres, Academic.

03 março 2024

Regatas


Joseph Delattre (1858-1912). Les Régates. 1895-1900.

Fonte da foto: Wikipedia.

29 fevereiro 2024

Let me begin again

Philip Levine

Let me begin again as a speck
of dust caught in the night winds
sweeping out to sea. Let me begin
this time knowing the world is
salt water and dark clouds, the world
is grinding and sighing all night, and dawn
comes slowly and changes nothing. Let
me go back to land after a lifetime
of going nowhere. This time lodged
in the feathers of some scavenging gull
white above the black ship that docks
and broods upon the oily waters of
your harbor. This leaking freighter
has brought a hold full of hayforks
from Spain, great jeroboams of dark
Algerian wine, and quill pens that can’t
write English. The sailors have stumbled
off toward the bars of the bright houses.
The captain closes his log and falls asleep.
1/10’28. Tonight I shall enter my life
after being at sea for ages, quietly,
in a hospital named for an automobile.
The one child of millions of children
who has flown alone by the stars
above the black wastes of moonless waters
that stretched forever, who has turned
golden in the full sun of a new day.
A tiny wise child who this time will love
his life because it is like no other.

Fonte (v. 1-3 e os dois últimos, em port.): Lifton, RJ. 1989 [1987]. O futuro da imortalidade. SP, Trajetória Cultural. Poema publicado em livro em 1979.

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