20 julho 2025

Coplas americanas

Nicolás Guillén

América malherida,
te quiero andar
de Argentina a Guatemala,
pasando por Paraguay.

Mi mano al indio en Bolivia
franca tender;
que el Pilcomayo me lleve,
que me traiga el Mamoré.

Por el Sur de espaldas negras
me fuera yo;
las noches alumbraría
con incendios de algodón.

Ah, pueblo de todas partes,
ah, pueblo, contigo iré;
pie con pie, que pie con mano,
iremos que pie con pie.

Jamaica en inglés llorando,
Haití en patuá;
en papiamento otras islas
y todas sin libertad.

De Muñoz en Puerto Rico
quiero saber
por qué dice, siempre dice,
dice siempre, dice: yes.

Santo Domingo, tan santo,
deja tu altar; tan santo,
Santo Domingo,
y vámonos a la mar.

Ah, pueblo de todas partes,
ah, pueblo, contigo iré;
pie con pie, que pie con mano,
iremos que pie con pie.

¡Que muera el generalote
sable mandón!
¡Que viva la primavera
y viva mi corazón!

Ay, mi general Sandino,
vuelve a partir
camino de las Segovias,
que yo te voy a seguir.

Los barbudos de mi tierra
cantando van
con campesinos y obreros,
y no se separarán.

Ah, pueblo de todas partes,
ah, pueblo, contigo iré;
pie con pie, que pie con mano,
iremos que pie con pie.

Como estamos todos juntos
voy a contar
un cuento que me contaron
y no he podido olvidar.

¡Padre! a Bolívar ¡oh Padre!,
Martí llamó.
Era una noche estrellada.
El viento lo repitió.

Va el viento por nuestra América,
va el viento así,
con Bolívar a caballo,
en su tribuna, Martí.

Ah, pueblo de todas partes,
ah, pueblo, contigo iré;
pie con pie, que pie con mano,
iremos que pie con pie.

Vi una vez a un marinero,
lo vi subir
una alta frente de mármol
y en esa frente escupir.

Un yanqui de la Embajada
vino por él;
cañones lo protegieron,
bajo cañones se fue.

Toda la sangre en el rostro
se me agolpó;
menos mal que le sé el nombre
y por dónde se marchó.

Ah, pueblo de todas partes,
ah, pueblo, contigo iré;
pie con pie, que pie con mano,
iremos que pie con pie.

Fonte (v. 1-4, 13-16: Pereira, E. A., org. 2010. Um tigre na floresta de signos. BH, Maza Edições. Poema publicado originalmente em 1960.

17 julho 2025

Ao Povo

Fagundes Varela

Não ouvis?... Além dos mares
Braveja ousado Bretão!
Vingai a pátria ou valentes
Da pátria tombai no chão!

Erguei-vos povo de bravos,
Erguei-vos Brasíleo povo,
Não consintais que piratas
Na face cuspam de novo!

O que vos falta? Guerreiros?
Oh! que eles não faltam, não,
Aos prantos de nossa terra
Guerreiros brotam do chão!

Mostrai que as frontes sublimes
Os anjos cercam de luz,
E não há povo que vença
O povo de Santa Cruz!

Sofrestes ontem; – criança
Contra a força o que fazer?...
Se nada podeis, – agora
Podeis ao menos morrer!...

Oh! morrei! – a morte é bela
Quando junto ao pavilhão
Se morre pisando escravos
Que insultam brava nação!

Quando nos templos da fama
Nas áureas folhas da história,
Gravado revive o nome
Por entre os hinos da glória!

Quando a turba que se agita
Saúda a campa adorada,
– Foi um herói que esvaiu-se
Nos braços da pátria amada!

Fonte (v. 3-4): Cunha, C. 1976. Gramática do português contemporâneo, 6ª ed. BH, Bernardo Álvares. Poema publicado em livro em 1863.

15 julho 2025

As duas biologias e a menstruação

Felipe A. P. L. Costa

Apresentação. – Nenhuma outra ciência tem tantos objetos de estudo como a biologia. Para além do nível meramente descritivo, todo e qualquer item biológico requer tanto explicações funcionais como explicações evolutivas. Presumo que a maioria dos médicos ginecologistas saiba dizer como opera a menstruação. Duvido, porém, que eles tenham a mesma desenvoltura para dizer por que o fenômeno se manifesta do jeito como se manifesta. Enquanto os detalhes fisiológicos são conhecidos há muito tempo, só recentemente surgiram boas hipóteses evolutivas a respeito da menstruação.

[Para ler o artigo completo, clique aqui.]

13 julho 2025

O coração das trevas

Joseph Conrad

O espírito de um homem é capaz de tudo – porque tudo está nele, todo passado e todo o futuro.

Fonte: Sagan, C. 1985 [1977]. Os dragões do Éden. RJ, F Alves. Frase extraída de livro publicado em 1902.

12 julho 2025

225 meses no ar

F. Ponce de León

Neste sábado, 12/7, o Poesia Contra a Guerra está a completar 225 meses no ar (ou 18 anos e nove meses).

Desde o balanço anterior – ‘18 anos e oito meses no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Carl Gustav Jung, Jean-Marc Gaspard Itard, Larry Laudan, Leó Szilárd, Martin Heidegger e Martin Luckner. Além de material de autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes artistas: Domenico Bresolin, Markó Károly e Pierre-Paul Prud’hon.

10 julho 2025

A face de Deus é vespas

Adélia Prado

Queremos ser felizes.
Felizes como os flagelados da cheia,
que perderam tudo
e dizem-se uns aos outros nos alojamentos:
“Graças a Deus, podia ser pior!”
Ó Deus, podemos gemer sem culpa?
Desde toda a vida a tristeza me acena,
o pecado contra Vosso Espírito
que é espírito de alegria e coragem.
Acho bela a vida e choro
porque a vida é triste,
incruenta paixão servida de seringas,
comprimidos minúsculos e dietas.
Eu não sei quem sou.
Sem me sentir banida experimento degredo.
Mas não recuso os marimbondos armando suas caixas
porque são alegres como posso ser,
são dádivas,
mistérios cuja resposta agora é só uma luz,
a pacífica luz das coisas instintivas.

Fonte (v. 1-6, 14-15): Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1981.

08 julho 2025

Retrato de uma duquesa


Pierre-Paul Prud’hon (1758-1823). La maréchale Lannes, duchesse de Montebello. s/d.

Fonte da foto: Wikipedia.

06 julho 2025

A lua de Ouro Preto

Murilo Mendes

A Dantas Motta

1.
Lua, luar!
Oh, celebrarei
Na lira alada
– Doida de amar –
Celebrarei
Na lira amada
Lua e luar.
Um ponto é lua,
Outro é luar.

Lua, luar,
Não confundamos:
Estou mandando
A lua luar.
Luar é verbo,
Quase não é
Substantivo.

Quem separar
Luar, de amor!
Quem separou
Amor, de luar?
Vamos luar.
Luar é verbo,
Substantivo
Quase não é.

Ai quantas vezes
O luar é escuro!
Nem sempre é claro
O obscuro amor.
Máquina louca
Tu és, ó lua.
Máquina lua,
Quem quer amar?
Todo de graça
Só mesmo o luar.

O amor, sim, age,
O luar espera,
Tudo esclarece,
Lua me amando,
Lua luarenta
Do pensamento
Que gira o amor...
Vamos aluar!
Máquina louca
Tu és, ó lua –
Máquina fia
Branca poesia.
Ei! passa o luar,
Mas fica a lua.

2.
Lua sobre o Senhor,
O Senhor morto
Em álgidas capelas
De estéreis morros,
Sobre as amantes
De tantos Cristos
Asfixiados
Nos oratórios,
Sobre imagens dormindo
Nas cômodas pesadas,

Lua nas pedras,
Por sob os pés
De Nossa Senhora,
Que lua luando!
Lua nos pátios
Ermos: esperam
Forma que os tire
De antigo sono
E pétrea soidão.

Lua suspensa
Sobre a necrópole.
A lua rápida
Propõe à lápide
Lavada ao luar:
“Quebra-te, lousa,
Do canto escuro
Devolve o morto
Para me amar.”

Século aluído,
Asas do tempo,
Negra ampulheta,
Cristos medonhos,
Tristes madonas,
Frias mortalhas,
Nomes e datas
De crianças, noivas,
Cruzes e urzes,
Mirrados goivos
A lua esclarece
Do véu através:
Mortos em eles,
De poeira estelas
Já nos sentimos
– Total nudez.

No Carmo lua:
Que lua grande,
Corpo estendido,
Lua longueira...
Mas que luarão
Nesses retângulos
Que o Carmo tem!
O Carmo é mesmo
Todo um luar.

A lua bate
No olho-de-boi
Da frontaria,
Que, rondo, emite
Raios de luar.
Lua que bates
No chão, rebates
Uma outra vez
O chão à lua.
(A lua abate,
Claro que abate,
Graças a Deus!
Láudano, lua.)

Lua nos anjos
Exorbitantes
Do Aleijadinho,
Em outros anjos
Que não se veem
Tão claramente:
A clara mente
Volve a esses anjos
Pós-mortuários,
Anjos sexângulos
No céu assentes,
Anjos equiângulos.

Lua no corpo
Do homem estendido
Que se alumia
Na lua, e tem
Taquicardia.
A lua abate,
A lua abate,
A lua bate...
No coração.

3.
Lívida lua,
Nos véus da lua,
Ao léu do luar,
Vem a Verônica
Em véus de lua,
Vem a Verônica
Nos véus do ar,
Envolverônica
Vem reclamar
Da lua o chefe,
Em véus tecido
Com fio de luar,
Da lua o chefe
Para estampar
Nos corações
Brancos de lua,
Vem a Verônica
Decapitar
– Mas por amor –
O chefe do ar
Vem a Verônica
Luar, luar
Deixem a Verônica
Fotografar
Seu claro amor
Nas lájeas do ar:
Cantando o exprime,
Em tudo o enxerga,
Em tudo o imprime,
Antes de tudo
Na clara lua
De obscuro amor.
E tu és cíclica,
Única, onírica,
Envolverônica,
Musa lunar:
No ano que vem,
Com o mesmo véu
E o mesmo canto,
Doida Verônica!
Tornas a luar.

4.
Tange o pastor
Suas estrelas
Finas ariscas:
“Eia, depressa,
Vem, Suspirosa,
Vem, Pisca-Pisca,
Chove-não-molha,
Quebra-não-cai,
Vem, Friorenta,
Boca-de-Fogo
Fogo-Apagou,
Vem, Lira Triste,
Vem, Madressilva,
Namoradeira,
Vagalumeira,
Eia, Morena,
Ouropretina,
Eia, estrelada.

Surjam da bruma,
Larguem a preguiça,
Ouçam meu canto:
Cerquem a lua
Que anda sozinha,
De Vila Rica
No meio do céu.
Sustentem
Sua figura
– Ó lua! –
Rodai,
Senão bambeia!
Rodai,
Senão bambeia!
Agora a lua,
Agora a lua
É minha,
Rodai,
Senão bambeia!
Rodai,
Senão bambeia...”

5.
Lua que desce,
Lua crescendo
Nos namorados
Que nos seus olhos
Doidos, danados,
Se trocam lua.
Lua esclarece
Mesmo os violões
Dos violoneiros
Que assim luando,
Violonando,
No ar da noite
Luassonante
Cantam melhor.
Lua nos livros
Dos estudantes
Que largam livros,
Vão para a rua,
Soletram a lua.
Lua nas mulheres
De vida alegre
– De vida triste –,
Das transluadas,
Das transviadas
Em casas mornas
Rindo e gemendo,
Lua nas cúpulas,
Lua nas cópulas,
Ó candongueira,
Que acaricias,
Que acaricias
E te retrais,
Lua em tavernas,
A lua, oh! bebe
Seus bêbedos, bem
Que bebe. Se bebe!
Bebe demais.

6.
Lua relonge
Que vais contando
Por esse mundo
Sagas sublimes,
Magnalia Dei.
Magnólia brusca,
Magnólia fosca
Que ora te fechas,
Ora te rasgas...
Vais a Congonhas,
Passando lenta
Entre os profetas
Que, sós, se infiltram
A lua de pedra:
Dama de espadas,
Dama de espáduas
Arredondadas,
Circunvidente,
Ante meus olhos
Todas as coisas,
Ó lua, desmedes.

Ó ladeirenta
Lua inclinada,
Fantasmação!
Lá na ladeira
Homem indeciso
Se sobe oh sim,
Se desce ou não:
Faltando o mar,
Toma dos remos
Da barca nova
Da lua nova,
Toma dos remos,
Põe-se a remar.
Lua molhada
Desce dos ares,
Sobe do chão.
Me aspergirei
Água de luar:
“A latere dextro”
Vi água sair
Das fontes frias
Do novilúnio.
Lua nos córregos:
Mulher de lua
No frio do riacho
Ao lume da água
Se penteando.
Lua serrana,
Lua dá na
Pedra-sabão
Que, verde ou rósea
Sendo, então
Branca, serena,
Branca se vê na
Luz da lua.

7.
Lua vermelha
Fogo derramas
– Fogo redondo –
Lua de Bárbara
Heliodora
Se despencando
Despenteada
Pelas ladeiras
Luagirando,
Seus adorados
Marido e filha
Veronicando,
Lua purpúrea,
Lua sangrando,
Madama e tocha
Se consumindo,
Abrindo os Passos,
Abrindo os braços
No seu terror,
Pedindo audiência
Nos rubros paços
Da madre lua.
Depois ilhada
No seu silêncio,
Bárbara mármara
De lua pensa
Na sua dormência,
Camélia exangue
Que cai friorenta
Dos longes ramos
Da plúmbea lua.

8.
Ó lua plástica,
Ó lua aplástica,
Móvel, imóvel,
Pagã, cristã,
Lua de alcânfora,
Lua de enxofre
E de alumínio,
Excêntrica e
Erocêntrica,
Ouvimos rápidos
Os teus cronômetros
No claro espaço
Microssoando.
Lua especiosa,
Lua leitosa
Das dormideiras,
Das tuberosas,
Que sono inspiram,
Ó roseirosa,
Teus curvos parques
De erva-cidreira
E de alecrim
E beladona!
Espandongada,
Lua espantosa,
Sempre resfriada,
Lua insidiosa,
Lua pré-natal,
Quem mais que tu
A nós, soturnos,
Na noite bíblica
De Vila Rica
Se comunica,
Lua abismal?...
E dizem que és
Desabitada!
Nós te habitamos:
Nos teus altares
Altos e brancos
Dependuramos
Nossos prospectos,
Nossa tensão
A um céu melhor;
Em ti asilamos
Nossos espectros,
De ti esperamos
Sono de amor:
Os teus cavalos
De crina cinza
Já cavalgamos,
Nos teus veleiros
Meditativos
Cedo embarcamos;
Nossos ladários,
Penas e queixas
Do mal do mundo
Te endereçamos;
Tuas altas serras
De frio minério,
Crateras mortas,
Fundas geleiras
Fotomontamos;
O teu condado
Sem latifúndios
Desde meninos
Desapropriamos;
Sons de alaúde
E lentas tiorbas,
Das tuas ondas
Pronto captamos;
E nossa história,
Mito noturno,
Duplas visões,
Gozo e terror,
Desde o princípio
Que se recobrem
Das tuas faixas,
Do teu palor.

9.
Lua nos adros
De igrejas brancas,
Nos adros largos:
Adros como estes,
Ó Vila Rica,
De outros não sei.
Lua no adro
De São Francisco
De Paula: entorna
Sobre a cidade
O vulto enorme,
Livre domínio
De seresteiros,
De namorados
E ocos fantasmas
Que vêm da serra
E entre as estátuas
Soluçam à lua.
Move este adro
De altos terraços
Ao exame lúcido
Da nossa origem,
Nosso roteiro
E destinação:
Vida futura,
Vastos espaços,
Véus descerrados,
Alma liberta
De peso e cor.

Lua no adro
De São José.
Aqui leremos
Poetas sombrios
Na cumplicidade
Da pedra e chão;
Um vento espesso
De terra e morte
Em sua roupagem
Nos recolherá.
Lua no adro
De São Francisco
De Assis, o núcleo
Aberto, íntimo,
Da arte e lirismo
Das Minas Gerais.
Ai os teus adros,
Ó Vila Rica!
Mercês de Baixo,
De escuras lendas!
Mercês de Cima,
Parenta pobre,
Desconsolada!
Pilar, teu adro
Oposto ao ouro
Dos teus altares
Perturbadores!
Rosário: o adro
Suscita as almas
De outrora escravos
Nas amplas curvas
Desmesuradas
De pedra e cal.

O luar nas Lajes
Medievaliza
Toda Ouro Preto.

Ai os teus adros
Para se amar,
Para livrar
A alma da mancha,
Esconjurando
A tempestade!
A tempestade
Que sobre nós
Pobres e nus
Órfãos do amor
No mundo sem adros
Vai desabar...
Já desabou.

10.
Lua humanada,
Violantelua,
Luamafalda,
Lua exilanda
Suave ao tato,
Pelo de lã
E de hortelã,
Lua de holanda,
Lua da antiga
Mulher nublada
Entressonhada
Na dura infância:
De longe eu sei
Tuas pajelanças
E bruxarias,
Teus artifícios
Espiralando,
Lua experiente
Que vais logrando
O sol, teu indez:
Lua inquietante
Que vais jogando
Aos teus amantes
Bolas de espuma,
Bolas de ópio,
Bolas de luar,
De índigo, oh!
Lua sardenta,
Ó lua pênsil
Sobre os amores
(Desencontrados
Na morna terra)
Dos esqueletos
Atuais, futuros,
Ó solidônia!

11.
Lua nos bairros
Tristes e pobres:
O luar se infiltra
Nos catres baixos,
O luar aclara
Vidas anônimas
Que o homem não viu,
Que o olhar dos anjos
– Lúcido enigma –
Reconsidera:
Mãos descarnadas
Em duro ofício,
Pupila extinta,
Cabelos murchos,
Ventre arriado,
Seios batidos,
Farnada boca,
Jazem os corpos
Nessa aparência
De objetos sós,
Toscas imagens
Inacabadas
Por um santeiro
Analfabeto.
O material
Aproveitado
Por um Deus nu
Desconjuntado
Na torta cruz!
O luar piedoso
Filtra brancura
Nos corpos feios,
Nos corpos frios
Dos catres baixos,
Lá nas Cabeças,
Em Água Limpa.
O luar agora
Baixa amoroso.
Toda Ouro Preto
Se adormeceu.

O luar é orvalho
Que o céu criou.
O luar branqueia
Toda Ouro Preto,
Álbum de antigas
Fotografias
Que a mão da noite
Vai desfolhando.
Tudo se cala,
Só as janelas
Na noite clara
Vão conversando.
Eis Ouro Preto
Na sua nobreza,
Na sua pobreza,
Sóbrio palácio
De mudas portas,
Do qual os donos
Já desertaram.
Erram à lua
Seus habitantes
De outras idades
Aqui presentes:
Artistas rudes,
Até aleijados,
Poetas suicidas
Ou degredados,
Inconfidentes,
Almas sombrias
Que São Miguel
Na sua balança
Fez levantar.
Tudo amortece,
Tudo se esfria;
Só as janelas
Na noite fria,
Só as janelas
Vão conversando.
Adros desertos,
Longos terraços,
Vagas varandas
Se imprimem lua.
Lá dos desvãos
Da noite funda
Desta Ouro Preto
O De Profundis
Da criatura,
Lá dos porões
Das almas puras,
Das almas duras,
Dos corpos lassos,
Sobe tremendo.
Sobe até os paços
Claros e escuros
Do céu divino
Que a mansa lua
Faz pressentir.

* * *

Lua, luar!
Toma este poema
Que te escrevi,
Doido de amar!
Lua, luar!
Toma este poema,
Faze-o lunar!
Lua, luar,
Toma este poema
Desta Ouro Preto,
Que vou mostrar
Como amuleto
Aos duendes do ar!
Lua, luar,
Lá tomba a noite
Nos altos cerros,
Desmaia a estrela
Nos frios braços
Do teu pastor!
Ouço clarins
De galos roucos
Já se esfriando
Nos longes do ar...
Lua, luar,
Sentem as igrejas
Que te preparas
Para as deixar,
Ainda mais branco
Se mostram agora,
Ainda mais branco
Suspensas no ar!
Lua, luar!
Breve seremos
Já de outra idade.
Sobre Ouro Preto
Nos curvaremos
Como os espectros
Que agora vemos
Lentos surgirem
Nas frestas do ar!
Lua, luar,
Tudo se perde,
Tudo se empoeira,
Tudo agoniza,
Tudo se morre,
Menos o amor,
O amor que deixa
Nossa Ouro Preto
– Ainda inclinada –
Sobreviver
Na pedra e no ar;
Lua magnética,
Pálio de amor,
Ó bem-amada,
Lua, luar!

Fonte (1: v. 10-16; 3: 33-36; 8: v. 1-13; 10: v. 1-4): Bosi, A. 2013. História concisa da literatura brasileira, 49ª ed. SP, Cultrix. Poema publicado em livro em 1954.

05 julho 2025

Inimigo do povo com quatro letras

F. Ponce de León

“Sabe o Hugo?”
“Que Hugo?”
“O Hugo Mamateiro, uai! – inimigo do povo e amigo da sonegação.”

03 julho 2025

Da educação de um homem selvagem

Jean-Marc Gaspard Itard

Guiado pelo espírito da sua doutrina [Philippe Pinel], embora menos pelos seus preceitos, que não podiam adaptar-se a este caso imprevisto, reduzi a cinco proposições principais o tratamento moral ou a educação do Selvagem de Aveyron.

Primeira proposição. Atraí-lo para a vida social, tornando-lhe mais suave do que a que levou até então e, sobretudo, mais parecida com a vida que acabava de deixar.

Segunda proposição. Despertar a sensibilidade nervosa com os estimulantes mais enérgicos e às vezes pelas emoções mais vivas da alma.

Terceira proposição. Alargar as esferas das suas ideias criando-lhe necessidades novas e multiplicando as suas relações com os seres que o rodeiam.

Quarta proposição. Levá-lo ao emprego da palavra, determinando o exercício da imitação pela lei imperiosa da necessidade.

Quinta proposição. Exercitar, durante algum tempo, sobre os objetos das suas necessidades físicas, as mais simples operações do espírito, determinando de imediato a aplicação sobre objetos de instrução.

Fonte: Merani, A. L. 1978 [1972]. Natureza humana e educação. Lisboa, Noticias. Excerto de livro originalmente publicado em 1802.

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