31 março 2012

A educação do professor

William F. Cunningham

A educação é a mais velha das artes e a mais jovem das ciências. Como arte evoluiu desde quando os pais, em tempos pré-históricos, faziam esforços conscientes para transmitir aos filhos os conhecimentos e as habilidades das suas culturas primitivas. Como ciência seu conhecimento esta limitado a épocas recentes. Nos Estados Unidos, Samuel  R. Hall abriu a primeira escola para formar professores em Vermont, em 1823. Em 1829, publicou suas “Lectures on School-Keeping”, o primeiro livro didático americano versando sobre educação [...]. Mais de um século antes, porém, havia sido publicado em Paris o Conduct of the Schools [1720], de [Jean-Baptiste de] La Salle. Todos os livros de história da educação reconhecem-no como tendo sido quem pôs em execução em grande escala o “método simultâneo” numa época em que a instrução elementar era toda individual. Mas não contente em criar o método de ensino em classes, estabeleceu, em 1685, em Reims, a primeira Escola Normal para preparar professores por esse método e levou, assim, a educação elementar aos pobres [...].

No decurso da última metade do século 19, a Escola Normal substituiu a Academia como instituição de formação do professor nos Estados Unidos e antes do término do século dominava inteiramente a formação de professores para as escolas elementares. Atualmente as Escolas Normais estão sendo convertidas rapidamente em Escolas de Professores, com um currículo de quatro anos e conferindo o diploma de bacharel no fim do curso. Com esse desenvolvimento as Escolas de Professores entraram na esfera do preparo de professores secundários e ora disputam às faculdades de artes liberais a primazia neste setor. As Escolas de Educação das universidades preparam um grande número de professores elementares e secundários e, em aditamento, administradores de escola, por meio de atividades gradativas de educação.
[...]

Fonte: Cunningham, W. F. 1975 [1957]. Introdução à educação, 2ª edição. Porto Alegre & Brasília, Globo & INL.

29 março 2012

Nada há para preocupar

John Boyd Orr

Quando Darwin apresentou a teoria da sobrevivência dos mais fortes, isso pareceu provar que a melhor coisa a fazer seria deixar essa gente morrer. Esse argumento já me foi apresentado: “Por que reduzir a mortalidade? Só servirá para superpovoar um planeta já superpovoado”. Creio, no entanto, que podemos dizer que, se a ciência moderna for aplicada e os governos estiverem dispostos, poderemos alimentar, vestir a abrigar a maior população que deve vir nos próximos cinqüenta ou cem anos, e isso é tudo o que podemos prever.

Fonte: Hardin, G., org. 1967. População, evolução & controle da natalidade. SP, Companhia Editora Nacional & Edusp. Texto originalmente publicado em 1948.

27 março 2012

Visita ao Turk’s Head Pub


Em meio à bruma iluminada
por essa luz amarela e ácida
que se dissolve nela como tinta em água,
caminhas sem saber aonde vais.
A aparência da realidade te surpreende,
faz-te perguntar-se se não és uma aparição
entre aparições.
Por que voltaste outra vez ao mundo?
Para aprender tudo que aprendeste?
Para reaprender os nomes das coisas,
o odor da lavanda fresca que cresce entre as pedras,
o eco de teus passos nas calçadas molhadas
como espelhos que multiplicam o silêncio da noite
e que se rompem num grito mudo?
Para reconhecer as coisas desgastadas?
A aldrava de bronze da porta que abriste mil vezes?

Deténs-te no umbral do Pub antes de entrar,
talvez ninguém te reconheça
nem reconheças ninguém.
Contudo, o murmúrio incessante,
o tintim dos copos que brindam,
os espelhos que reproduzem de quando em quando teu rosto,
que reproduzem a realidade em movimento
enquanto avanças, como se navegasses por um rio,
vão te fazer sentir-se à vontade,
esquecido da morte.

Então alguém se aproximará de ti e pronunciará teu nome,
falará de tua vida como se falasse de outro,
então terás voltado a inventar.

Fonte: Costa, H. 1992. Antologia de poesia hispano-americana atual. Revista USP 13: 186-205. Poema – com a dedicatória “A Ulalume González de León” – publicado em livro em 1989.

25 março 2012

Os primeiros espinhos da ciência


Hugues Merle (1823-1881). Les premières épines de la science. 1864.

Fonte da foto: Dallas Museum of Art.

23 março 2012

A cidade de Manaus

Aziz Nacib Ab’Sáber

Enquanto Belém é o entreposto da fachada atlântica de toda a Amazônia brasileira [...], Manaus é a verdadeira capital da hinterlândia amazônica. Colocada exatamente entre a Amazônia Ocidental e a Oriental, num ponto do principal eixo de navegação fluvial do Brasil, é uma espécie de elo entre a navegação fluvial, rudimentar e extensiva, e as grandes rotas marítimas de cabotagem. Possui, por essa razão, uma situação geográfica absolutamente privilegiada em face das extensões amazônicas e do gigantesco quadro de drenagem da bacia hidrográfica regional.
[...]

Meio século após a fundação de Belém (1615-1616), os sertões amazônicos do Rio Negro passaram a ser objeto das incursões portuguesas provenientes dos núcleos atlânticos pré-existentes (São Luís e Belém). Mormente a partir de 1657 e 1658, algumas expedições preadoras – réplica do bandeirismo paulista ao longo dos caudais amazônicos – incursionaram pelo Rio Negro, cruzando sem maiores reparos o sítio que um dia iria conter a grande cidade. Na região, as preferências inicias estiveram ligadas à boca do Tarunã, situada a 30 km da barra do Rio Negro, aproximadamente a três léguas a montante de Manaus.
[...]

A estatística mais antiga que possuímos do lugarejo remonta a 1774: o Lugar da Barra possuía a esse tempo 220 habitantes, contando-se os soldados da guarnição e os índios. Uma estatística de 1778 acusa 256 habitantes, distribuídos da seguinte forma: 34 brancos, 220 índios e dois escravos negros. Como observa Mario Ypiranga Monteiro, cujas informações nos estão guiando muito de perto, a lei de 6 de junho de 1755 sustou a escravidão do índio e, ao mesmo tempo, abriu as portas aos primeiros escravos negros, através de uma corrente extremamente reduzida.
[...]

Fonte: Ab’Sáber, A. N. 1996. Amazônia: do discurso à práxis. SP, Edusp. Texto originalmente publicado em 1953.

21 março 2012

Tempestade amazônica

Humberto de Campos

O calor asfixia e o ar escurece. O rio,
Quieto, não tem uma onda. Os insetos na mata
Trilam cheios de medo. E o pássaro, o sombrio
Da floresta procura onde a chuva não bata.

Súbito, o raio estala. O vento zune. Um frio
De terror tudo invade... E o temporal desata
As peias pelo espaço e, bufando, bravio,
O arvoredo retorce e as folhas arrebata.

O anoso buriti curva a copa, e farfalha.
Aves rodam no céu, n’um estéril esforço,
Entre nuvens de folha e fragmentos de palha.

No alto o trovão regouga e em baixo a mata brama.
Ruge em meio a amplidão. Das nuvens pelo dorso
Correm serpes de fogo. E a chuva se derrama...

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 5. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1910.

19 março 2012

Rosa D’Alva

Pedro Juan Vignale

Rosa azul, rosa vermelha,
Qual delas preferirias?
– Rosa cor-de-rosa da alva,
Eis a rosa que eu queria;
Coroada como as amoras,
E como a lua – tão fria.
Três dias com suas noites
E três noites com seus dias,
Andei atrás dessa rosa:
Da rosa rosada e fria.

Mas ai! sempre que partira,
Ai! que sempre que partia,
No caminho da alvorada
A rósea rosa pendia.
Já a amolecera a orvalhada,
Já os galos a encareciam,
Ai! a rosa mais rosada,
Rosa da alvorada fria!

Jamais suas mãos puderam,
Jamais elas poderiam
Colher nunca a rosa rósea
Da alvorada umedecida.
Pois sempre que ia chegando
– Andando noites e dias –,
Por sobre os caminhos de ouro
Já dançava o meio-dia.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira.

17 março 2012

Litogravura

Paulo Mendes Campos

Eu voltava cansado como um rio.
No Sumaré altíssimo pulsava
a torre de tevê, tristonha, flava.
Não: voltava humilhado como um tio
bêbado chega à casa de um sobrinho.
Pela ravina, lento, lentamente,
feria-se o luar, num desalinho
de prata sobre a Gávea de meus dias.
Os cães quedaram quietos bruscamente.
Foi no tempo dos bondes: vi um deles
raiar pelo Bar Vinte, borboleta
flamante, touro rútilo, cometa
que se atrasa no cosmo e desespera:
negra, na jaula em fuga, uma pantera.

Passei a mão nos olhos: suntuosa,
negra, na jaula em fuga, ia uma rosa.

Fonte: Moriconi, I., org. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema publicado em livro em 1956.

15 março 2012

O diário de Nina

Nina Lugovskaia

1.
No meu dia livre, 6 de outubro, Genya e Lyalya tinham decidido fazer um passeio a cavalo, e haveria uma roupa de montaria também para mim. Quando nós três chegamos à outra casa, precisei suportar não poucos conselhos e recomendações. Mas paciência. Mamãe não queria que eu fosse, mas eu havia decidido ir mesmo assim, e já estava vestindo o capote quando, de repente, ela se lembrou de que eu o tiraria para cavalgar e por isso sentiria frio. Genya e Lyalya reclamaram um pouco e depois saíram, deixando-me de péssimo humor, mas calma.

Ontem, na escola, tínhamos ciências sociais durante os dois primeiros tempos e Evtsikhevitch chegou embonecado como nunca, provocando em nós grandes risadas e atraindo todo tipo de brincadeira possível. Deu uma pesquisa como tarefa a alguns garotos, entre os quais Staska. Prometi a ele que eu mesma escreveria, e agora estou bastante arrependida.
[...]

Fonte: Lugovskaia, N. 2005. O diário de Nina. RJ, Ediouro. O texto original foi escrito na década de 1930.

13 março 2012

Velho com neto


Domenico Ghirlandaio (1449-1494). Ritratto de vecchio con nipote. 1490.

Fonte da foto: Wikipedia. As manchas vistas na reprodução foram posteriormente restauradas.

12 março 2012

Sessenta e cinco meses no ar

F. Ponce de León

Nesta segunda-feira, 12/3, o Poesia contra a guerra completa cinco anos e cinco meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 161.810 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Cinco anos e quatro meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Bento José Ferreira Murteira, Casimiro de Abreu, Janduhy Finizola, Pe. José de Anchieta, Luiz Vilela, Mark L. Yoseloff, Neil A. Weiss, Patricia Morgan, Suzana Nunes e Woodburn Heron. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Abbott [Handerson] Thayer e Walter Gay.

10 março 2012

Da descrição à indução

Bento José Ferreira Murteira

Na investigação cientifica a descrição tem considerável importância mas não esgota os propósitos daquela. Pode afirmar-se, na verdade, que normalmente quando um investigador analisa um conjunto de dados, necessariamente restritos, procura sobretudo alargar as sua conclusões a um conjunto mais vasto através da formulação de proposições gerais a que se dá, por vezes o nome de leis. Utilizando a terminologia atrás introduzida verifica-se que as mais profundas preocupações dos investigadores que utilizam o método estatístico consistem em tirar conclusões sobre o universo partindo dos factos observados na amostra. Sai-se, nesse caso, da esfera de aplicação da Estatística Descritiva para entrar no domínio da Estatística Indutiva.

Em termos muito gerais, o processo de inferência indutiva consiste no seguinte: conhecidos certos factos ou acontecimentos particulares, expressos por meio de proposições, imaginam-se proposições mais gerais que exprimam a existência de leis, isto é, de factos científicos. Relativamente a estas proposições levanta-se, contudo, uma dificuldade: não pode dizer-se, contrariamente ao que sucede com as proposições ‘deduzidas’, que são falsas ou verdadeiras. Tão pouco é de admitir um estado de completa ignorância, pois conhecem-se casos particulares. Existe, portanto, em relação a uma proposição ‘induzida’ uma posição intermédia entre,

falsa-verdadeira,

posição de incerteza que leva a dizer que a proposição é mais ou menos provável,

falsa-provável-verdadeira.

Os comentários que acabam de fazer-se servem para destacar que os atributos ‘falso’ e ‘verdadeiro’ são insuficientes quando o rigor abstracto das teorias matemáticas dá lugar à imprecisão inevitável dos acontecimentos empíricos, que dizendo respeito ao meio que o homem vive são indispensáveis no dia a dia.
[...]

Fonte: Murteira, B. J. F. 1979. Probabilidades e estatística, vol. 1. Lisboa, McGraw-Hill.

09 março 2012

Nas ondas do rádio

Suzana Nunes

Asa branca voando nas ondas do rádio
Fazendo ponteio pras ave-marias
A estrela d’alva, o bater do sino
Brilhando distante, perdido, divino

Companheiro do vento
Criatura da noite
Uma nuvem cigana
Olhando o tempo passar

O domingo no parque
Catavento girante
Não descobre o segredo
Que rola na espuma do mar

Chegaram pelo Atlântico
Os gritos selvagens
E o belo horror nascente
Das pedras rolantes
O banquete dos mendigos
Nos campos de morango
E Lucy no céu com seus diamantes

Companheiro do vento
[...]

Belo horror das cidades
Diamante celeste
Asa branca ferida
Olhando o tempo passar

Fonte: encarte que acompanho o LP do álbum 14 Bis II (1980), do 14 Bis.

07 março 2012

Lógica

Neil A. Weiss & Mark L. Yoseloff

Algumas das noções fundamentais de lógica simbólica são apresentadas neste capítulo. Os princípios da lógica muitas vezes são úteis para o entendimento do significado preciso dos enunciados e também ajudam no desenvolvimento de importantes métodos de raciocínio. Embora a lógica simbólica não seja usada explicitamente nos capítulos subseqüentes, muitos leitores acharão proveitoso adquirir conhecimentos sobre o assunto.

1. Proposições e conectivos

Começamos esta seção com um exemplo que ilustra os vários tipos de sentenças que podem ser encontradas na linguagem cotidiana.

Exemplo 1.1.1
1. Belo Horizonte fica em Minas Gerais.
2. Hoje é o dia 4 de julho.
3. Feche a porta!
4. Que cidade dos Estados Unidos é a mais populosa?
5. O preço do ouro subiu hoje.
6. A taxa de inflação deste ano foi de 8 por cento.
7. Por que você foi a pé para o trabalho hoje?

Ao estudar essas sentenças vemos que elas podem ser divididas em dois tipos principais: (1) as que podem ser classificadas como verdadeiras ou falsas e (2) as que não podem ser assim classificadas.

Definição
Uma sentença que pode ser significativamente classificada como verdadeira ou falsa denomina-se uma proposição.

Por exemplo, as sentenças 1, 2, 5 e 6 do Exemplo 1.1.1 são proposições, o que não ocorre com as demais sentenças.
[...]

Fonte: Weiss, N. A. & Yoseloff, M. L. 1978 [1975]. Matemática finita. RJ, Guanabara.

05 março 2012

Segredos

Casimiro de Abreu

Eu tenho uns amores – quem é que os não tinha
Nos tempos antigos? – Amar não faz mal;
As almas que sentem paixão como a minha,
Que digam, que falem em regra geral.
– A flor dos meus sonhos é moça e bonita
Qual flor entr’aberta do dia ao raiar,
Mas onde ela mora, que casa ela habita,
Não quero, não posso, não devo contar!

Seu rosto é formoso, seu talhe elegante,
Seus lábios de rosa, a fala é de mel,
As tranças compridas, qual livre bacante,
O pé de criança, cintura de anel;
– Os olhos rasgados são cor das safiras
Serenos e puros, azuis como o mar;
Se falam sinceros, se pregam mentiras,
Não quero, não posso, não devo contar!

Oh! ontem no baile com ela valsando
Senti as delícias dos anjos do céu!
Na dança ligeira qual silfo voando
Caiu-lhe do rosto seu cândido véu!
– Que noite e que baile! – Seu hálito virgem
Queimava-me as faces no louco valsar,
As falas sentidas, que os olhos falavam,
Não posso, não quero, não devo contar!

Depois indolente firmou-se em meu braço,
Fugimos das salas, do mundo talvez!
Inda era mais bela rendida ao cansaço,
Morrendo de amores em tal languidez!
– Que noite e que festa! e que lânguido rosto
Banhado ao reflexo do branco luar!
A neve do colo e as ondas dos seios
Não quero, não posso, não devo contar!

A noite é sublime! – Tem longos queixumes,
Mistérios profundos que eu mesmo não sei:
Do mar os gemidos, do prado os perfumes,
De amor me mataram, de amor suspirei!
– Agora eu vos juro... Palavra! – não minto!
Ouvi-a formosa também suspirar;
Os doces suspiros, que os ecos ouviram
Não quero, não posso, não devo contar!

Então n’esse instante nas águas do rio
Passava uma barca, e o bom remador
Cantava na flauta: – “Nas noites d’estio
O céu tem estrelas, o mar tem amor!”
– E a voz maviosa do bom gondoleiro
Repete cantando: – “viver é amar!” –
Se os peitos respondem à voz do barqueiro...
Não quero, não posso, não devo contar!

Trememos de medo... a boca emudece
Mas sentem-se os pulos do meu coração!
Seu seio nevado de amor se intumesce...
E os lábios se tocam no ardor da paixão!
– Depois... mas já vejo que vós, meus senhores,
Com fina malícia quereis me enganar;
Aqui faço ponto; – segredos de amores
Não quero, não posso, não devo contar!

Fonte: Cereja, W. R. & Magalhães, T. C. 1995. Literatura brasileira. SP, Atual. Poema publicado em livro em 1859.

03 março 2012

Gaios-azuis no inverno


Abbott [Handerson] Thayer (1849-1921). Blue jays in winter. 1905-9.

01 março 2012

A Santa Inês

Pe. José de Anchieta

Na vinda de sua Imagem

1.
Cordeirinha linda,
como folga o povo
porque vossa vinda
lhe dá lume novo!

Cordeirinha santa,
de Iesu querida,
vossa santa vinda
o diabo espanta.

Por isso vos canta,
com prazer, o povo,
porque vossa vinda
lhe dá lume novo.

Nossa culpa escura
fugirá depressa,
pois vossa cabeça
vem com luz tão pura.

Vossa formosura
honra é do povo,
porque vossa vinda
lhe dá lume novo.

Virginal cabeça
pela fé cortada,
com vossa chegada,
já ninguém pereça.

Vinde mui depressa
ajudar o povo,
pois, com vossa vinda,
lhe dais lume novo.

Vós sois, cordeirinha,
de Iesu formoso,
mas o vosso esposo
já vos fez rainha.

Também padeirinha
sois de nosso povo,
pois, com vossa vinda,
lhe dais trigo novo.

2.
Não é d’Alentejo
este vosso trigo,
mas Jesus amigo
é vosso desejo.

Morro porque vejo
que este nosso povo
não anda faminto
deste trigo novo.

Santa padeirinha,
morta com cutelo,
sem nenhum farelo
é vossa farinha.

Ela é mezinha
com que sara o povo,
que, com vossa vinda,
terá trigo novo.

O pão que amassastes
dentro em vosso peito,
é o amor perfeito
com que a Deus amastes.

Deste vos fartastes,
deste dais ao povo,
porque deixe o velho
pelo trigo novo.

Não se vende em praça
este pão de vida,
porque é comida
que se dá de graça.

Ó preciosa massa!
Ó que pão tão novo
que, com vossa vinda,
quer Deus dar ao povo!

Ó que doce bolo,
que se chama graça!
Quem sem ela passa
é mui grande tolo.

Homem sem miolo,
qualquer deste povo,
que não é faminto
deste pão tão novo!

Fonte (parcial): Martins, W. 1977. História da inteligência brasileira, vol. 1. SP, Cultrix & Edusp. Poema datado da segunda metade do século 16.

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