Água do meu Tietê,
Onde me queres levar?
– Rio que entras pela
terra
E que me afastas do
mar...
É noite. E tudo é noite.
Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o
rio
Murmura num banzeiro de
água pesada e oliosa.
É noite e tudo é noite.
Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem
de noite de tão vasta
O peito do rio, que é
como si a noite fosse água,
Água noturna, noite
líquida, afogando de apreensões
As altas torres do meu
coração exausto. De repente
O ólio das águas recolhe
em cheio luzes trêmulas,
É um susto. E num momento
o rio
Esplende em luzes
inumeráveis, lares, palácios e ruas,
Ruas, ruas, por onde os
dinossauros caxingam
Agora, arranha-céus
valentes donde saltam
Os bichos blau e os
punidores gatos verdes,
Em cânticos, em prazeres,
em trabalhos e fábricas,
Luzes e glória. É a cidade...
É a emaranhada forma
Humana corrupta da vida
que muge e se aplaude.
E se aclama e se
falsifica e se esconde. E deslumbra.
Mas é um momento só. Logo
o rio escurece de novo,
Está negro. As águas
oliosas e pesadas se aplacam
Num gemido. Flor. Tristeza
que timbra um caminho de morte.
É noite. E tudo é noite.
E o meu coração devastado
É um rumor de germes
insalubres pela noite insone e humana.
Meu rio, meu Tietê, onde
me levas?
Sarcástico rio que
contradizes o curso das águas
E te afastas do mar e te
adentras na terra dos homens,
Onde me queres levar?...
Por que me proíbes assim
praias e mar, por que
Me impedes a fama das
tempestades do Atlântico
E os lindos versos que
falam em partir e nunca mais voltar?
Rio que fazes terra,
húmus da terra, bicho da terra,
Me induzindo com a tua
insistência turrona paulista
Para as tempestades
humanas da vida, rio, meu rio!...
Já nada me amarga mais a
recusa da vitória
Do indivíduo, e de me
sentir feliz em mim.
Eu mesmo desisti dessa
felicidade deslumbrante,
E fui por tuas águas
levado,
A me reconciliar com a
dor humana pertinaz,
E a me purificar no barro
dos sofrimentos dos homens.
Eu que decido. E eu mesmo
me reconstituí árduo na dor
Por minhas mãos, por
minhas desvividas mãos, por
Estas minhas próprias
mãos que me traem,
Me desgastaram e me
dispersaram por todos os descaminhos,
Fazendo de mim uma trama
onde a aranha insaciada
Se perdeu em cisco e
polem, cadáveres e verdades e ilusões.
Mas porém, rio, meu rio,
de cujas águas eu nasci,
Eu nem tenho direito mais
de ser melancólico e frágil,
Nem de me estrelar nas
volúpias inúteis da lágrima!
Eu me reverto às tuas
águas espessas de infâmias,
Oliosas, eu,
voluntariamente, sofregamente, sujado
De infâmias, egoísmos e
traições. E as minhas vozes,
Perdidas do seu tenor,
rosnam pesadas e oliosas,
Varando terra adentro no
espanto dos mil futuros,
À espera angustiada do
ponto. Não do meu ponto final!
Eu desisti! Mas do ponto
entre as águas e a noite,
Daquele ponto leal à
terrestre pergunta do homem,
De que o homem há-de
nascer.
Eu vejo, não é por mim, o
meu verso tomando
As cordas oscilantes da
serpente, rio.
Toda a graça, todo o
prazer da vida se acabou.
Nas tuas águas eu
contemplo o Boi Paciência
Se afogando, que o peito
das águas tudo soverteu.
Contágios, tradições,
brancuras e notícias,
Mudo, esquivo, dentro da
noite, o peito das águas, fechado, mudo,
Mudo e vivo, no despeito
estrídulo que me fustiga e devora.
Destino,
predestinações... meu destino. Estas águas
Do meu Tietê são abjetas
e barrentas,
Dão febre, dão a morte
decerto, e dão garças e antíteses.
Nem as ondas das suas
praias cantam, e no fundo
Das manhãs elas dão
gargalhadas frenéticas,
Silvos de tocaias e
lamurientos jacarés.
Isto não são águas que se
beba, conhecido, isto são
Águas do vício da terra.
Os jabirus e os socós
Gargalham depois morrem.
E as antas e os bandeirantes e os ingás,
Depois morrem. Sobra não.
Nem siquer o Boi Paciência
Se muda não. Vai tudo
ficar na mesma, mas vai!... e os corpos
Podres envenenam estas
águas completas no bem e no mal.
Isto não são águas que se
beba, conhecido! Estas águas
São malditas e dão morte,
eu descobri! e é por isso
Que elas se afastam dos
oceanos e induzem à terra dos homens,
Paspalhonas. Isto não são
águas que se beba, eu descobri!
E o meu peito das águas
se esborrifa, ventarrão vem, se encapela
Engruvinhado de dor que
não se suporta mais.
Me sinto o pai Tietê! ôh
força dos meus sovacos!
Cio de amor que me
impede, que destrói e fecunda!
Nordeste de impaciente
amor sem metáforas,
Que se horroriza e
enraivece de sentir-se
Demagogicamente tão
sozinho! Ôh força!
Incêndio de amor estrondante,
enchente magnânima que me inunda,
Me alarma e me destroça,
inerme por sentir-me
Demagogicamente tão só!
A culpa é tua, Pai Tietê?
A culpa é tua
Si as tuas águas estão
podres de fel
E majestade falsa? A
culpa é tua
Onde estão os amigos? onde
estão os inimigos?
Onde estão os pardais? e
os teus estudiosos e sábios, e
Os iletrados?
Onde o teu povo? e as
mulheres! dona Hircenuhdis Quiroga!
E os Prados e os crespos
e os pratos e os barbas e os gatos e os línguas
Do Instituto Histórico e
Geográfico, e os museus e a Cúria, e os senhores chantres reverendíssimos,
Celso niil estate
varíolas gide memoriam,
Calípedes flogísticos e a
Confraria Brasiliense e Clima
E os jornalistas e os
trustkistas e a Light e as
Novas ruas abertas e a
falta de habitações e
Os mercados?... E a
tiradeira divina de Cristo!...
Tu és Demagogia. A
própria vida abstrata tem vergonha
De ti em tua ambição
fumarenta.
És demagogia em teu
coração insubmisso.
És demagogia em teu
desequilíbrio anticéptico
E antiuniversitário.
És demagogia. Pura
demagogia.
Demagogia pura. Mesmo
alimpada de metáforas.
Mesmo irrespirável de
furor na fala reles:
Demagogia.
Tu és enquanto tudo é
eternidade e malvasia:
Demagogia.
Tu és em meio à (crase)
gente pia:
Demagogia.
És tu jocoso enquanto o
ato gratuito se esvazia:
Demagogia.
És demagogia, ninguém
chegue perto!
Nem Alberto, nem
Adalberto nem Dagoberto
Esperto Ciumento
Peripatético e Ceci
E Tancredo e Afrodísio e
também Arminda
E o próprio Pedro e
também Alcibíades,
Ninguém te chegue perto,
porque tenhamos o pudor,
O pudor do pudor, sejamos
verticais e sutis, bem
Sutis!... E as tuas mãos
se emaranham lerdas,
E o Pai Tietê se vai num
suspiro educado e sereno,
Porque és demagogia e
tudo é demagogia.
Olha os peixes, demagogo
incivil! Repete os carcomidos peixes!
São eles que empurram as
águas e as fazem servir de alimento
Às areias gordas da
margem. Olha o peixe dourado sonoro,
Esse um é presidente,
mantém faixa de crachá no peito,
Acirculado de tubarões
que escondendo na fuça rotunda
O perrepismo dos dentes,
se revezam na rota solene,
Languidamente
presidenciais. Ei-vem o tubarão-martelo
E o lambari-spitfire.
Ei-vem o boto-ministro.
Ei-vem o peixe-boi com as
mil mamicas imprudentes,
Perturbado pelos
golfinhos saltitantes e as tabaranas
Em zás-trás dos guapos
Pêdêcês e Guaporés.
Eis o peixe-baleia entre
os peixes muçuns lineares,
E os bagres do lodo oliva
e bilhões de peixins japoneses;
Mas és asnático o
peixe-baleia e vai logo encalhar na margem,
Pois quis engolir a
própria margem, confundido pela facheada,
Peixes aos mil e mil,
como se diz, brincabrincando
De dirigir a corrente com
ares de salva-vidas.
E lá vem por debaixo e
por-de-banda os interrogativos peixes
Internacionais, uns
rubicundos sustentados de mosca,
E os espadartes a trote
chique, esses são espadartes! e as duas
Semanas Santas se
insultam e odeiam, na lufa-lufa de ganhar
No bicho o corpo do Crucificado.
Mas as águas,
As águas choram baixas
num murmúrio lívido, e se difundem
Tecidas de peixe e
abandono, na mais incompetente solidão.
Vamos, Demagogia! eia!
sus! aceita o ventre e investe!
Berra de amor humano
impenitente,
Cega, sem lágrimas,
ignara, colérica, investe!
Um dia hás-de ter razão
contra a ciência e a realidade,
E contra os fariseus e as
lontras luzidias.
E contra os guarás e os
elogiados. E contra todos os peixes.
E também os mariscos, as
ostras e os trairões fartos de equilíbrio e
Pundhonor.
Pum d’honor.
Qué-de as Juvenilidades
Auriverdes!
Eu tenho medo... Meu
coração está pequeno, é tanta
Essa demagogia, é
tamanha,
Que eu tenho medo de
abraçar os inimigos,
Em busca apenas dum
sabor,
Em busca dum olhar,
Um sabor, um olhar, uma
certeza...
É noite... Rio! meu rio!
meu Tietê!
É noite muito!... As
formas... Eu busco em vão as formas
Que me ancorem num porto
seguro na terra dos homens.
É noite e tudo é noite. O
rio tristemente
Murmura num banzeiro de
água pesada e oliosa.
Água noturna, noite
líquida... Augúrios mornos afogam
As altas torres do meu
exausto coração.
Me sinto esvair no
apagado murmulho das águas.
Meu pensamento quer
pensar, flor, meu peito
Quereria sofrer, talvez
(sem metáfora) uma dor irritada...
Mas tudo se desfaz num
choro de agonia
Plácida. Não tem formas
nessa noite, e o rio
Recolhe mais esta luz,
vibra, reflete, se aclara, refulge,
E me larga desarmado nos
transes da enorme cidade.
Si todos esses
dinossauros imponentes de luxo e diamante,
Vorazes de genealogia e
de arcanos,
Quisessem reconquistar o
passado...
Eu me vejo sozinho,
arrastando sem músculo
A cauda do pavão e mil
olhos de séculos,
Sobretudo os vinte
séculos de anticristianismo
Da por todos chamada
Civilização Cristã...
Olhos que me intrigam,
olhos que me denunciam,
Da cauda do pavão, tão
pesada e ilusória.
Não posso continuar mais,
não tenho, porque os homens
Não querem me ajudar no
meu caminho.
Então a cauda se abriria
orgulhosa e reflorescente
De luzes inimagináveis e
certezas...
Eu não seria tão-somente
o peso deste meu desconsolo,
A lepra do meu castigo
queimando nesta epiderme
Que encurta, me encerra e
me inutiliza na noite,
Me revertendo minúsculo à
advertência do meu rio.
Escuto o rio. Assunto
estes balouços em que o rio
Murmura num banzeiro. E
contemplo
Como apenas se movimenta
escravizada a torrente,
E rola a multidão. Cada
onda que abrolha
E se mistura no rolar
fatigado é uma dor. E o surto
Mirim dum crime impune.
Vêm de trás o estirão. É
tão soluçante e tão longo,
E lá na curva do rio vêm
outros estirões e mais outros,
E lá na frente são
outros, todos soluçantes e presos
Por curvas que serão
sempre apenas as curvas do rio.
Há de todos os assombros,
de todas as purezas e martírios
Nesse rolo torvo das
águas. Meu Deus! meu
Rio! como é possível a
torpeza da enchente dos homens!
Quem pode compreender o
escravo macho
E multimilenar que
escorre e sofre, e mandado escorre
Entre injustiça e
impiedade, estreitado
Nas margens e nas areias
das praias sequiosas?
Elas bebem e bebem. Não
se fartam, deixando com desespero
Que o rosto do galé
aquoso ultrapasse esse dia,
Pra ser represado e
bebido pelas outras areias
Das praias adiante, que
também dominam, aprisionam e mandam
A trágica sina do rolo
das águas, e dirigem
O leito impassível da
injustiça e da impiedade.
Ondas, a multidão, o
rebanho, o rio, meu rio, um rio
Que sobe! Fervilha e
sobe! E se adentra fatalizado, e em vez
De ir se alastrar arejado
nas liberdades oceânicas,
Em vez se adentra pela
terra escura e ávida dos homens,
Dando sangue e vida a
beber. E a massa líquida
Da multidão onde tudo se
esmigalha e se iguala,
Rola pesada e oliosa, e
rola num rumor surdo,
E rola mansa, amansada
imensa eterna, mas
No eterno imenso rígido
canal da estulta dor.
Porque os homens não me
escutam! Por que os governadores
Não me escutam? Por que
não me escutam
Os plutocratas e todos os
que são chefes e são fezes?
Todos os donos da vida?
Eu lhes daria o
impossível e lhes daria o segredo,
Eu lhes dava tudo aquilo
que fica pra cá do grito
Metálico dos números, e
tudo
O que está além da
insinuação cruenta da posse.
E si acaso eles
protestassem, que não! que não desejam
A borboleta translúcida da
humana vida, porque preferem
O retrato a ólio das
inaugurações espontâneas,
Com béstias de operário e
do oficial, imediatamente inferior.
E palminhas, e mais os
sorrisos das máscaras e a profunda comoção,
Pois não! Melhor que isso
eu lhes dava uma felicidade deslumbrante
De que eu consegui me
despojar porque tudo sacrifiquei.
Sejamos generosíssimos. E
enquanto os chefes e as fezes
De mamadeira ficassem na
creche de laca e lacinhos,
Ingênuos brincando de
felicidade deslumbrante:
Nós nos iríamos de camisa
aberta ao peito,
Descendo verdadeiros ao
léu da corrente do rio,
Entrando na terra dos
homens ao coro das quatro estações.
Pois que mais uma vez eu
me aniquilo sem reserva,
E me estilhaço nas
fagulhas eternamente esquecidas,
E me salvo no eternamente
esquecido fogo de amor...
Eu estalo de amor e sou
só amor arrebatado
Ao fogo irrefletido do
amor.
... eu já amei sozinho
comigo; eu já cultivei também
O amor do amor, Maria!
E a carne plena da
amante, e o susto vário
Da amiga, e a
inconfidência do amigo... Eu já amei
Contigo, Irmão Pequeno,
no exílio da preguiça elevada, escolhido
Pelas águas do túrbido
rio do Amazonas, meu outro sinal.
E também, ôh também! na
mais impávida glória
Descobridora da minha
inconstância e aventura,
Desque me fiz poeta e fui
trezentos, eu amei
Todos os homens, odiei a
guerra, salvei a paz!
E eu não sabia! Eu bailo
de ignorâncias inventivas,
E a minha sabedoria vem
das fontes que eu não sei!
Quem move meu braço? Quem
beija por minha boca?
Quem sofre e se gasta
pelo meu renascido coração?
Quem? sinão o incêndio
nascituro do amor?...
Eu me sinto grimpado no
arco da Ponte das Bandeiras,
Bardo mestiço, e o meu
verso vence a corda
Da caninana sagrada, e
afina com os ventos dos ares, e enrouquece
Úmido nas espumas da água
do meu rio,
E se espatifa nas
dedilhações brutas do incorpóreo Amor.
Por que os donos da vida
não me escutam?
Eu só sei que eu não sei
por mim! sabem por mim as fontes
Da água, e eu bailo de
ignorâncias inventivas.
Meu baile é solto como a
dor que range, meu
Baile é tão vário que
possui mil sambas insonhados!
Eu converteria o humano
crime num baile mais denso
Que estas ondas negras de
água pesada e oliosa,
Porque os meus gestos e
os meus ritmos nascem
Do incêndio puro do
amor... Repetição. Primeira voz sabida, o Verbo.
Primeiro troco. Primeiro
dinheiro vendido. Repetição logo ignorada.
Como é possível que o
amor se mostre impotente assim
Ante o ouro pelo qual o
sacrificam os homens,
Trocando a primavera que
brinca na face das terras
Pelo outro tesouro que
dorme no fundo baboso do rio!
É noite! é noite!... E
tudo é noite! E os meus olhos são noite!
Eu não enxergo siquer as
barcaças na noite.
Só a enorme cidade. E a
cidade me chama e pulveriza,
E me disfarça numa queixa
flébil e comedida,
Onde irei encontrar a
malícia do Boi Paciência
Redivivo. Flor. Meu
suspiro ferido se agarra,
Não quer sair, enche o
peito de ardência ardilosa,
Abre o olhar, e o meu
olhar procura, flor, um tilintar
Nos ares, nas luzes
longe, no peito das águas,
No reflexo baixo das
nuvens.
São formas... Formas que
fogem, formas
Indivisas, se
atropelando, um tilintar de formas fugidias
Que mal se abrem, flor,
se fecham, flor, flor, informes, inacessíveis,
Na noite. E tudo é noite.
Rio, o que eu posso fazer!...
Rio, meu rio... mas porém
há-de haver com certeza
Outra vida melhor do
outro lado de lá
Da serra! E hei-de
guardar silêncio!
O que eu posso fazer!...
hei-de guardar silêncio
Deste amor mais perfeito
do que os homens?...
Estou pequeno, inútil,
bicho da terra, derrotado.
No entanto eu sou
maior... Eu sinto uma grandeza infatigável!
Eu sou maior que os
vermes e todos os animais.
E todos os vegetais. E os
vulcões vivos e os oceanos,
Maior... Maior que a
multidão do rio acorrentado,
Maior que a estrela,
maior que os adjetivos,
Sou homem! vencedor das
mortes, bem-nascido além dos dias,
Transfigurado além das
profecias!
Eu recuso a paciência, o
boi morreu, eu recuso a esperança.
Eu me acho tão cansado em
meu furor.
As águas apenas murmuram
hostis, água vil mas turrona paulista
Que sobe e se espraia,
levando as auroras represadas
Para o peito dos
sofrimentos dos homens.
... e tudo é noite. Sob o
arco admirável
Da Ponte das Bandeiras,
morta, dissoluta, fraca,
Uma lágrima apenas, uma
lágrima,