26 junho 2019

Adaptações, penduricalhos, bricolagem


Evoluir é mudar e evoluir de modo adaptativo é mudar de acordo com as exigências que vigem em determinado lugar.

Para que um item seja apropriadamente rotulado de adaptativo, duas condições devem ser atendidas: (1) ele precisa ser hereditário (i.e., ter alguma base genética); e (2) seus portadores devem ter um desempenho superior ao de indivíduos desprovidos dele.

O segundo critério implica dizer que os indivíduos não adaptados falham ou são destruídos mais facilmente que os adaptados. E as falhas, vale notar, dependem do contexto: interceptar menos luz, correr menos ou demorar mais a acordar, de sorte que algum componente da aptidão é rebaixado em relação à média populacional.

Investigar o papel adaptativo de um item significa desvendar o modo como este afeta a aptidão de seus portadores. Visto que a aptidão não é um parâmetro de valor absoluto, o trabalho de investigação é necessariamente comparativo, exigindo o exame simultâneo dos portadores de estados alternativos de um mesmo item.

Vejamos um exemplo.

As folhas (e outras partes do corpo) da berinjela (Solanum melongena) são cobertas por um indumento piloso. Ocorre que – vamos aqui imaginar – o grau de pilosidade varia, de tal modo que as plantas que integram uma mesma população podem ser separadas em classes fenotípicas: algumas plantas produzem folhas em estados extremos (folhas glabras ou densamente pilosas), embora a maioria produza folhas com um grau intermediário de pilosidade.

Diante dessa variação, caberia a pergunta: qual é o papel do indumento na vida das berinjelas? É ou não é um traço adaptativo?

Em busca de respostas, devemos ir atrás de algumas evidências (diretas ou indiretas). O ideal seria medir e comparar um parâmetro que seja a manifestação do sucesso reprodutivo, como o número de descendentes viáveis deixados por diferentes classes fenotípicas [1]. Tal não sendo possível, como muitas vezes não o é, caberia então investigar o comportamento de algum parâmetro que, de algum modo significativo, reflita a aptidão. No caso das berinjelas, as alternativas poderiam ser a taxa de crescimento ou o número de frutos produzidos por cada planta.

As comparações devem ocorrer em um contexto ecológico realista e explorando situações contrastantes – e.g., plantas crescendo no sol e na sombra, com ou sem insetos fitófagos. O contraste visa isolar o papel do indumento foliar, identificando o fator ambiental que estaria se comportando como agente seletivo. Por exemplo, se a pilosidade é uma adaptação contra os fitófagos – e.g., servindo como uma barreira mecânica –, as diferenças na aptidão de plantas de diferentes classes fenotípicas devem ser mais evidentes na presença dos insetos do que na ausência deles.

A hipótese de que o indumento funciona como defesa ganharia força caso os resultados obtidos com as plantas crescendo no sol e na sombra apontassem em uma mesma direção – e.g., na presença dos fitófagos, e a despeito de as plantas estarem no sol ou na sombra, a taxa de crescimento ou a produção de frutos é significativamente maior entre as berinjelas pilosas.

Mas a explicação pode ser outra. O indumento poderia ser uma proteção contra os rigores do clima (e.g., insolação), pouco ou nada tendo a ver com os insetos. Neste caso, os resultados do experimento deveriam estar invertidos: seriam observadas diferenças na aptidão de plantas crescendo no sol e na sombra, a despeito de elas estarem ou não sendo atacadas pelos fitófagos.

O exemplo é apenas para mostrar como é possível investigar o papel adaptativo de um item. Ressaltando que, como desdobramento dessa primeira investigação, nós poderíamos (1) fazer a mesma pergunta diante de outras estruturas da berinjela (e.g., acúleos, pelos glandulares e flores roxas – tudo isso seria adaptativo?); ou (2) investigar o papel do indumento piloso em outras plantas [2].

O oportunismo das adaptações

Itens fenotípicos que hoje são tidos como adaptativos já foram penduricalhos. Significa dizer que itens desprovidos de função ou até ligeiramente prejudiciais podem se tornar úteis. Há dois caminhos conhecidos para isso: (1) sob novas circunstâncias, um item disfuncional pode se revelar útil; ou (2) a presença de um novo item melhora o desempenho de algum item preexistente [3].

função de um item também é maleável e pode mudar.

As penas das aves e a produção de leite pelos mamíferos são dois exemplos – aquelas não surgiram como uma adaptação ao voo nem esta, como uma adaptação para nutrir os filhotes [4].

Para começo de conversa, as penas – em sua versão primordial – apareceram antes das aves. O fóssil emplumado mais antigo que se conhece tem ao menos 150 milhões de anos, e ainda não era o que chamaríamos hoje de uma ave. As aves só surgiriam dezenas de milhões de anos depois. Há controvérsias a respeito do papel inicial dessas estruturas, mas os estudiosos concordam que, em seus primórdios, elas nada tinham a ver com o voo. Em compensação, poucos duvidam que, em algum momento subsequente, a evolução das penas passou a ser moldada pela função que elas assumiram na capacidade de voo dos seus portadores.

O segundo caso é semelhante. Para começar, a lactação surgiu antes dos mamíferos, provavelmente em alguma linhagem de ancestrais ovíparos e endotérmicos que já exibiam algum tipo de cuidado parental. Há quem argumente, mais especificamente, que a produção de leite teria surgido ainda entre os répteis sinapsídeos (de onde saíram os terapsídeos, linhagem ancestral dos mamíferos), há uns 300 milhões de anos. (Os primeiros mamíferos apareceriam 100 milhões de anos depois!) Em seus primórdios, o leite seria uma secreção hidratante, com a qual as fêmeas ajustavam o teor de umidade dos ovos no ninho.

A lição aqui é uma só: se um traço fenotípico qualquer adquire um papel adaptativo, a sua evolução subsequente passa a ser determinada por aquele papel [5]. Mantido o seu valor adaptativo, sua história prosseguirá na mesma toada – seja na linhagem original onde surgiu, seja em alguma linhagem derivada que o herdou. Todavia, se o item é cooptado para uma nova função, esta, a partir daí, passará a balizar o seu futuro.

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Notas

Extraído e adaptado do livro O que é darwinismo (2019). (A versão impressa contém referências bibliográficas.) Para informações adicionais sobre a obra, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos e livros do autor, ver aqui.

[1] A aptidão – ou, mais precisamente, a aptidão realizada – é medida em termos de sucesso reprodutivo.

[2] As duas linhas de investigação são exploradas pelos cientistas.

[3] O fenótipo é uma bricolagem de traços, como foi dito antes. Traços (e genes) individuais podem ser discriminados, desde que o efeito deles sobre a aptidão se destaque. O modo como o genótipo codifica o fenótipo já teria sido mais frouxo, tendo sido ajustado no curso da evolução.

[4] O ponto de vista atual é que as aves são répteis emplumados.

[5] Discute-se a distinção adaptação v. exaptaçãoItens hereditários podem ser investigados em termos funcionais ou históricos. Conforme ilustram Krebs & Davies, em Introdução à ecologia comportamental (Atheneu, 1996, p. 4; adaptado):

Niko Tinbergen [...] enfatizou que havia muitas maneiras diferentes de responder à questão ‘Por quê?’ em biologia. [...] Por exemplo, se perguntarmos por que os estorninhos cantam na primavera, nós poderíamos responder da seguinte maneira: 1. Em termos de valor de sobrevivência ou função. Os estorninhos cantam para atrair parceiros para o acasalamento. 2. Em termos de causalidade. Porque o aumento no comprimento do dia desencadeia mudanças nos níveis hormonais, ou pela maneira [como] o ar flui através da siringe e provoca vibrações na membrana. Estas são respostas sobre os fatores externos e internos que levam os estorninhos a [cantar]. 3. Em termos de desenvolvimento. Os estorninhos cantam porque eles aprenderam os cantos de seus pais e vizinhos. 4. Em termos de história evolutiva. Esta resposta seria sobre como o canto evoluiu nos estorninhos a partir de seus ancestrais. [As aves viventes] mais primitivas emitem sons muito simples, portanto é razoável supor que o canto complexo dos estorninhos e de outras [aves canoras] tenha evoluído a partir de chamados ancestrais mais simples.

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24 junho 2019

Interior do Panteão


Giovanni Paolo Pannini (1691-1765). L’interno del Pantheon. ~1734.

Fonte da foto: Wikipedia.

22 junho 2019

Ya se acerca, señor, o es ya llegada

Hernando de Acuña

Ya se acerca, señor, o es ya llegada
la edad gloriosa en que promete el cielo
una grey y un pastor solo en el suelo,
por suerte a vuestros tiempos reservada.

Ya tan alto principio, en tal jornada,
os muestra el fin de vuestro santo celo
y anuncia al mundo, para más consuelo,
un monarca, un imperio y una espada.

Ya el orbe de la tierra siente en parte,
y espera en todo, vuestra monarquía,
conquistada por vos en justa guerra:

que a quien ha dado Cristo su estandarte
dará el segundo más dichoso día
en que, vencido el mar, venza la tierra.

Fonte (v. 1-4 e 8): Carpeaux, O. M. 2011. História da literatura ocidental, vol. 1. Brasília, Senado Federal. Poema publicado em livro em 1591.

20 junho 2019

Amazônia: ecologia, economia e política

Orlando Valverde

As críticas à política amazônica dos governos militares brasileiros de 1964 a 1985, por parte de organismos internacionais (como o Banco Mundial), governos de países ricos e até de organizações não-governamentais, provocaram uma certa mudança de atitude dos dirigentes do nosso país, a partir da presidência de José Sarney (1985-1990). Estre criou o Ibama; fez, através do Inpe, uma avaliação da área devastada da floresta amazônica, e baixou o decreto conhecido como Nossa Natureza, destinado a estabelecer normas efetivas de fiscalização e defesa do meio ambiente.

Fonte: Valverde, O. 1996. In: Pavan, C, org. Uma estratégia latino-americana para a Amazônia, v. 3. SP, MMA, Memorial & Editora Unesp.

18 junho 2019

Causas da seleção natural


fundo gênico de uma população não está prontamente acessível aos observadores. O que não significa dizer que esteja fora de nosso alcance – podemos examiná-lo de modo indireto [1].

Uma via de acesso é a paisagem fenotípica (leia-se: distribuição de um determinado traço fenotípico na população). Monitorando a frequência de diferentes variantes, podemos saber como a paisagem muda. Considere uma população de percevejos polimórficos – o traço em questão é a cor das pintas sobre o corpo –, na qual 20% são ditos verdes; 30%, amarelos, e 50%, vermelhos [2].

Estes percentuais não são fixos e, no transcurso de uma geração, três fatores podem alterá-los. São eles:

(1) Migração. Entrada e saída de fenótipos em percentuais diferentes dos que são encontrados na população (e.g., 80% dos fenótipos que saem da população são amarelos).

(2) Plasticidade e desenvolvimento. Fenótipos mudam em função das circunstâncias ou à medida que amadurecem (e.g., os indivíduos nascem verdes, mas se convertem em amarelos ao longo da vida e, mais adiante, em vermelhos).

(3) Seleção. A longevidade e a fertilidade dos fenótipos variam de acordo com a coloração do corpo.

No que segue, vamos examinar apenas a seleção.

Evoluir é inevitável

Como vimos no capítulo anterior, as bifurcações representadas em uma árvore filogenética refletem a segregação entre linhagens (cladogênese, no jargão técnico). O processo resulta do acúmulo de diferenças genéticas entre subgrupos de indivíduos.

Mas por que as linhagens estão sempre a mudar? Por que elas simplesmente não se estabilizam em algum estado estacionário? Essas mudanças todas terão fim algum dia?

Como princípio geral, podemos responder dizendo que evoluir não é uma opção – evoluir é inevitável e populações com pouco ou nenhum potencial evolutivo (leia-se: com pouca ou nenhuma variabilidade genética) tendem a desaparecer em poucas gerações.

Para entendermos a razão e o alcance desta última resposta, devemos examinar os fatores que ditam a natureza e o ritmo das mudanças evolutivas: mutações genéticas e interações ecológicas.

As mutações – fator interno – são a origem última da variabilidade, parte da qual é expressa no fenótipo. Não custa repetir: variação fenotípica é um pré-requisito do processo evolutivo – a paisagem fenotípica só mudará se houver variação (i.e., fenótipos minimamente diferentes entre si). Mas são as interações – o fator externo – que ditam a sorte e o destino das variantes, geração após geração. São elas que dão rumo à evolução.

Mutações podem ser refreadas, canceladas ou até suspensas, mas nada disso se dá com as interações – estas, diferentemente daquelas, são inevitáveis. Este é o motivo pelo qual a evolução é inevitável: não há como esvaziar o mundo e suspender as interações. A lição a extrair disso é que a palavra final sobre o drama evolutivo é dada pela ecologia, não pela genética.

Luta pela vida

Mas por que as interações são inevitáveis? Há duas razões para isso: (1) seres vivos não são autossuficientes – todo e qualquer recém-nascido depende de fontes externas de matéria e energia para construir e manter seu corpo; e (2) não existem vácuos ecológicos na natureza – todo e qualquer organismo nasce, cresce e vive em um mundo previamente ocupado.

A ecologia (do grego oekologie, algo como o estudo do lugar onde se mora) é a disciplina científica que lida com as interações e, em especial, com o impacto que os fatores ambientais exercem sobre a abundância e a distribuição de populações [3]. Outra maneira de dizer isso seria a seguinte: a ecologia lida com o estudo do drama da vida – como os organismos conseguem sobreviver e se reproduzir em um mundo previamente ocupado por outros seres vivos que estão tentando fazer exatamente a mesma coisa?

Dadas as circunstâncias – nascemos em um mundo finito e previamente ocupado – e visto que todo e qualquer organismo busca satisfazer as suas próprias necessidades (ou as de um grupo particular), os conflitos e entrechoques se tornam inevitáveis. E é aí que as interações se impõem, caracterizando aquilo que Herbert Spencer certa vez descreveu como a luta pela vida (ou l. pela existência).

A expressão, contudo, não deve ser levada ao pé da letra.

A palavra luta, por exemplo, está sendo usada em sentido metafórico, sem pressupor algum tipo de embate ou contato físico. É sabido e notório que muitos animais se envolvem em combates (e.g., disputas ritualizadas pela posse de um território). A questão é que há uma luta ainda mais ampla e permanente: ao longo da vida, todos os organismos (e não só os animais territoriais) estão a lutar contra uma série de fatores que põem em risco o seu bem-estar ou a sua integridade. Pois são esses fatores – e.g., escassez de alimento, competidores, doenças, adversidades climáticas etc. – que habitualmente fazem o papel de agentes de seleção.

O processo seletivo

Seleção é o que acontece quando algum fator ambiental impõe uma associação (positiva ou negativa) entre aptidão e fenótipo. Se a seleção está a operar, as chances de sobrevivência e reprodução deixam de ser aleatórias, como na deriva.

Nas palavras de Wallace (1889, p. 123; tradução livre):

[E] devemos nos livrar da ideia de que o acaso determina quem irá viver e quem morrerá. Poisembora em muitos casos individuais a morte possa resultar do acaso e não de alguma inferioridade daqueles que morrem primeiro, ainda assim não devemos acreditar que este possa ser o modo como a natureza opera em larga escala. Uma planta, por exemplo, não pode prosperar a menos que haja locais vagos adequados nos quais as suas sementes possam crescer, ou regiões onde ela possa suplantar outras plantas, menos vigorosas e menos sadias. Pode-se dizer que as sementes de todas as plantas, por meio dos seus variados modos de dispersão, estão em busca desses locais onde possam crescer; e não podemos duvidar que, no longo prazo, aqueles indivíduos cujas sementes são mais numerosas, têm maior poder de dispersão e maior vigor de crescimento deixarão mais descen-dentes do que indivíduos da mesma espécie que são inferiores em todos estes aspectos, embora aqui e ali alguma semente de um indivíduo inferior seja por acaso transportada até um ponto onde possa crescer e sobreviver.

No cômputo geral, o resultado da luta pela vida – seleção natural [4] – pouco ou nada tem de aleatório. Esta é, aliás, uma das poucas afirmativas a respeito da seleção que conta com o aval de quase todos os autores. Quase todos eles também concordariam com a distinção entre propagação e manutenção de traços fenotípicos [5].

De resto, há várias divergências. Exemplo importante é a questão da natureza da seleção.

Tradicionalmente descrita como força ou mecanismo, a seleção tem sido caracterizada por alguns autores como uma consequência ou expressão estatística de outros fenômenos (e.g., variação hereditária em traços que afetam componentes da aptidão).

O assunto é intrigante, mas fica aqui apenas como registro.

Por ora, o importante a ser ressaltado é o seguinte: se não é um mecanismo, a seleção não pode ser a causa da evolução, ainda que a sua manifestação indique a ocorrência de mudanças adaptativas. As causas da seleção e, por suposto, as causas da evolução adaptativa seriam os fatores ambientais que promovem a referida associação entre fenótipo e aptidão – associação que deve ser sistemática e algo duradoura, sem tem de ser permanente ou universal.

Identificando causas

Para afirmarmos que a paisagem fenotípica mudou em decorrência de seleção, devemos identificar o fator ambiental que está a favorecer (de modo sistemático) a aptidão dos portadores de determinado traço, em detrimento dos portadores de traços alternativos. Identificar o fator ambiental equivaleria a identificar o agente causal da mudança observada.

Diferentemente do que alguns imaginam, nem todo agente seletivo é uma fonte de mortalidade – e.g., interações competitivas, talvez a mais universal das causas de seleção, raramente levam à destruição imediata dos competidores mais fracos.

O contrário é verdadeiro: nem toda fonte de mortalidade é um agente seletivo, visto que a destruição nem sempre é consequência do fenótipo – e.g., mortes aleatórias provocadas por desastres em larga escala podem ser desprovidas de qualquer impacto seletivo.

Mas, afinal, o que seriam esses fatores ambientais?

Responder a esta pergunta – a nossa próxima tarefa – nos ajudará a identificar as bases ecológicas da mudança evolutiva.

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Notas

Artigo extraído e adaptado do livro O que é darwinismo (2019). (A versão impressa contém ilustrações e referências bibliográficas.) Para detalhes e informações adicionais sobre a obra, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos e livros do autor, ver aqui.

[1] Religando os conceitos de evolução (mudança nas frequências alélicas) e seleção (processo que opera entre fenótipos): (1frequências alélicas mudam como resultado direto de mudanças nas frequências dos genótipos (estes sendo arranjos daqueles); e (2frequências genotípicas mudam como resultado de mudanças na distribuição dos fenótipos (estes sendo codificados por aqueles).

[2Polimorfismo é a presença de várias formas (morfos) descontínuas em uma população, de modo que a mais rara não possa ser mantida apenas por mutação recorrente.

[3] Em Morfologia geral dos organismos (1866), Haeckel – talvez de modo pioneiro – usou o termo ecologia em alusão a uma disciplina científica.

[4] Ou “Sobrevivência do mais apto” – fórmula de Spencer que, por sugestão de Wallace, Darwin introduziu na 5ª edição de Sobre a origem das espécies (1869).

[5] A seleção direcional (= positiva) favorece a propagação de traços novos e a s. normalizadora (= negativa ou purificadora), a manutenção de traços antigos.

16 junho 2019

Pálida à luz da lâmpada sombria


Pálida à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar, na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d’alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti – as noites eu velei chorando,
Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo!

Fonte: Azevedo, A. 2006. Lira dos vinte anos. SP, Martin Claret. Poema publicado em livro em 1853.

14 junho 2019

Jonas e a baleia


[Claude] Joseph Vernet (1714-1789). Jonas et la baleine. 1753.

Fonte da foto: Wikipedia.

12 junho 2019

Doze anos e oito meses no ar

F. Ponce de León

Nesta quarta-feira, 12/6, o Poesia contra a guerra completa 12 anos e oito meses no ar.

Desde o balanço anterior – ‘Doze anos e sete meses no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Alexander Pope, Dina Salústio, Franklin P. Kilpatrick, José Alberto, Mariana Ferraz e William H. Ittelson. Além de outros que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Cristóbal Rojas, Giacinto Gigante e Jacob Philipp Hackert.

10 junho 2019

Por que havias de chegar

Dina Salústio

Por que havias de chegar
num dia enevoado de bruma
nessa manhã de vento forte que me roubou
a (minha) máscara?
Por que havias de entrar
num dia de porta aberta
e me surpreender nua
a um canto tiritando
procurando confusa os trapos
para me tapar?
Por que nesse maldito dia
em que desprevenida
lavava uma saudade
e arrumava a um canto
um tempo que me doía?
Por que terias que me abraçar
e me chamar mulher
e abrir a janela e inventar um sol,
sussurrar uma canção?
Para quê?
Se foi o tempo de um cigarro?

Fonte: Pereira, E. A., org. 2010. Um tigre na floresta de signos. BH, Maza Edições. Poema publicado em 1991. ‘Dina Salústio’: pseudônimo de Bernardina Oliveira Salústio.

08 junho 2019

Ambiente, hábitat, nicho


Vamos desde já esclarecer o significado de três conceitos ecológicos corriqueiros: ambientehábitat e nicho. O primeiro é de uso particularmente problemático, pois os autores dificilmente discutem ou sequer informam o significado que estão a adotar.

Ambiente é o conjunto de elementos (fatores bióticos e abióticos) que têm algum impacto sobre uma entidade orgânica (indivíduos, populações etc.). Não se trata de mero espaço físico nem de algo que possa ser definido sem um referencial biológico – i.e., ao falarmos de ambiente, temos de nos referir ao seu dononão há ambientes vazios. Muitos organismos podem viver em um mesmo hábitat, mas cada um deles terá o seu próprio ambiente, pois cada um interage e é afetado por um conjunto particular de elementos.

Hábitat (forma aportuguesa da palavra latina habitat) é um espaço físico, cujas dimensões podem ser estabelecidas a priori e de modo arbitrário, de acordo com os interesses do observador e independentemente da presença de algum referencial biológico. Uma poça d’água, uma caverna ou um fragmento florestal são exemplos de hábitats, não de ambientes.

O exemplo a seguir visa esclarecer os dois conceitos.

Considere os inquilinos que vivem em sua casa – sua família, como você já deve ter percebido, não está sozinha!

Sem contar os fungos e micro-organismos, a sua casa deve abrigar uma variedade razoável de plantas e animais – e.g., algas na pia, moscas nos ralos, ácaros nas camas, formigas na cozinha etc. Todos esses inquilinos estão compartilhando de um espaço de convivência – a sua casa é o hábitat deles. Todavia, nem todos interagem entre si. Vejamos alguns que interagem. Considere a lagartixa-de-parede (Hemidactylus mabouia), uma espécie de origem africana que é encontrada hoje em áreas urbanas de todos os estados do país. Animais de hábitos noturnos, as lagartixas se alimentam principalmente de insetos (e.g., baratas e mariposas) e aranhas. Assim, caso elas de fato sejam encontradas em sua casa, podemos inferir que por lá vivem também algumas presas de H. mabouia.

Que tipo de interação você mantém com esses inquilinos?

Exceto talvez por algum inconveniente ocasional, eu ousaria dizer que quase todos eles estão fora do seu campo de visão – i.e., você não vive a caçar insetos ou aranhas para se alimentar! Em outras palavras, as preocupações que pautam o seu dia a dia não coincidem com as das lagartixas – e.g., encontrar presas adequadas em meio aos inquilinos que vivem ou visitam o lugar. (No fim das contas, você talvez só não queira encontrar baratas pela casa!)

Se o ambiente de um organismo é definido como a totalidade de fatores que o afetam ou com os quais ele interage, a lição a extrair daí seria a seguinte: embora a sua família e as lagartixas possam ser todos encontrados em um mesmo hábitat (ao menos durante certas horas do dia), uns e outros têm o seu próprio ambiente.

Trocando em miúdos, a informação de que dois ou mais organismos são encontrados em um mesmo hábitat, pouco ou nada nos diz a respeito do ambiente de cada um deles.

O nicho

Assim como ocorre com a palavra ambiente, a expressão nicho ecológico tem gerado muita confusão.

O termo nicho vem do italiano nicchio, que se converteu no francês nicher (aninhar), sendo posteriormente copiado em outros idiomas. O significado original ainda persiste: o nicho da arquitetura é um objeto material, uma estrutura tridimensional escavada em uma parede – um oco que abriga algum item decorativo.

Na primeira metade do século 20, os biólogos se apropriaram do termo, ajustando o seu significado de modo a adequá-lo às suas próprias necessidades. Um dos primeiros a usar a expressão nicho ecológico (ao menos em um contexto biológico significativo) foi o naturalista estadunidense Joseph Grinnell (1877-1939), em 1917. Segundo ele, o nicho abrigaria tudo o que afeta a vida de um organismo, incluindo fatores bióticos e abióticos [2].

Desde então, o conceito foi usado de muitos modos diferentes, a ponto de alguns autores passarem a evitá-lo.

Em meados no século 20, por exemplo, ganhou popularidade a noção de que o nicho seria a profissão de cada uma das espécies que vivem em uma dada comunidade. A analogia prosperou entre nós durante anos e, embora seja uma ideia vaga e imprecisa, ainda aparece em alguns livros didáticos.

Foi só no fim da década de 1950 que surgiu uma definição mais rigorosa e formal. Estamos a falar agora do conceito de nicho multidimensional, a partir do qual iriam se desenvolver as ideias modernas a respeito do assunto.

O nicho multidimensional

As diferentes concepções de nicho podem ser arranjadas em duas categorias: (1) nicho como propriedade do mundo exterior; e (2) nicho como uma característica inerente aos organismos.

Para os adeptos do primeiro ponto de vista, o nicho seria uma oportunidade a ser aproveitada ou uma vaga a ser preenchida, evocando o conceito arquitetônico de um buraco vazio escavado na parede. Para os defensores do segundo ponto de vista, o nicho seria uma resposta do organismo ao mundo exterior – i.e., um conjunto mais ou menos integrado de traços fenotípicos que evoluíram em razão dos desafios impostos pelo ambiente.

[FIGURA. A imagem que acompanha este artigo é uma representação bidimensional do nicho de três espécies de lagartos insetívoros (A-C); o eixo horizontal indica o tamanho da presa e o e. vertical, a altura na vegetação onde os lagartos forrageiam. Se os dois eixos são examinados em separado, as curvas sobre cada um deles exibem faixas de sobreposição notáveis, sugerindo que a competição interespecífica é intensa. Se os eixos são analisados ao mesmo tempo, porém, persiste apenas uma área de sobreposição (B ∩ C), indicando que a competição interespecífica por presas é reduzida quando os lagartos forrageiam em estratos diferentes.]

Criado pelo biólogo inglês G. Evelyn Hutchinson (1903-1991), o conceito de nicho multidimensional foi divulgado às vésperas do primeiro centenário do darwinismo.

Segundo Hutchinson, o nicho é um espaço (imaginário) n-dimensional habitado por entidades vivas (indivíduos, populações etc.). Cada dimensão corresponderia a um fator ambiental relevante, de modo que a região definida pela interseção de todas elas seria o nicho multidimensional da entidade em questão.

Em nosso mundo tridimensional, não temos como visualizar objetos n-dimensionais quando n > 3. Ocorre que os fatores decisivos (e.g., uso do espaço, itens alimentares, defesas contra inimigos) não são de fato muito numerosos. Assim, uma representação com apenas dois ou três eixos já nos oferece um esboço bastante razoável de algum aspecto do nicho de um organismo.

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Notas

[1] Artigo extraído e adaptado do livro O que é darwinismo (2019), que está a ser lançado pelo autor. (A versão impressa contém ilustrações e referências bibliográficas.) Para detalhes e informações adicionais sobre a obra, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos e livros do autor, ver aqui.

[2] O termo já havia sido usado antes. Em 1910, por exemplo, o geneticista estadunidense Roswell H. [Hill] Johnson (1877-1967) escreveu: “Podemos esperar que, no campo, diferentes espécies ocupem diferentes nichos no ambiente. Ao menos este é o corolário da crença atual de que cada espécie é tão comum quanto possível, sendo seus números limitados tão somente pelo seu suprimento alimentar, uma crença que resulta das fortes inclinações malthusianas de Darwin.

06 junho 2019

Cavalos persas, papagaios, panteras


Cavalos persas, papagaios, panteras
e um elefante branco que borrifava as gentes
– tal era a embaixada de D. Manuel
a Leão o Décimo
em frente do qual o paquiderme
ajoelhou três vezes.
Assim se transportou Portugal a Roma.
Um circo a abarrotar por entre os deuses
(Miguel Ángelo) que transpiravam
a melancolia da solidão e da grandeza.
Num tempo em que se incrementava
a poesia didáctica de formosos temas
que iam do xadrez à criação dos bichos da seda
ou até à sífilis do famoso Frascator.
Aliás o Papa, de pestilenta fístula,
perito ele em xadrez,
poderia ter ouvido dizer a um da sua família,
Lourenço de Médicis: devemos desconfiar
da parte dianteira dos bois,
da parte de trás das mulas
e das duas partes dos frades.
Comia-se no ouro. Ou se roubava gado.
Como fez Giovanna Catanei – a Vanozza,
primeira amante de Alexandre VI.
Em Roma, como agora,
os poetas não passam de macacos
que se acolhem sob o sol papal.
Como esse Aretino que seria um nome
nos cristais e nos rios,
na testa dos bastardos e dos avarentos,
na vagina sábia das Impérias
e no peito dos cardeias que folgam.
“Com uma pena de papel faço troça de tudo
e até mesmo de mim parece Deus ter medo.”

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1983.

05 junho 2019

Fogos de artifício sobre castelo romano


Jacob Philipp Hackert (1737-1807). Feuerwerk auf der Engelsburg in Rom. 1775.

Fonte da foto: Wikipedia.

04 junho 2019

Experimentos em percepção

William H. Ittelson & Franklin P. Kilpatrick

O que é percepção? Por que vemos o que vemos, sentimos o que sentimos, ouvimos o que ouvimos? Nós agimos em termos do que percebemos; nossos atos levam-nos a novas percepções; estas levam a novos atos, e assim por diante, no processo incrivelmente complexo que constitui a vida. Claramente, então, uma compreensão dos processos pelos quais o homem se torna consciente de si mesmo e de seu mundo é básica para uma compreensão adequada do comportamento humano. [...]

O fato de vermos uma cadeira e podermos então ir até o lugar onde a localizamos e descansar nossos corpos num objeto substancial não parece particularmente interessante ou difícil de explicar – até que procuremos explicá-lo. Se aceitamos o ponto de vista corrente de que nunca podemos conhecer o mundo tal qual ele é, mas apenas os impulsos nervosos que surgem da colisão de forças físicas sobre os receptores sensoriais, imediatamente nos defrontamos com a necessidade de explicar a correspondência entre o que percebemos e o que existe na realidade.

Uma resposta extremamente lógica, irrefutável – e cientificamente inútil – seria simplesmente dizer que não existe um mundo real, que tudo existe apenas na nossa mente. Outro método seria postular a existência de um mundo externo, imaginar que há alguma correspondência geral entre o mundo e o que percebemos e procurar alguma explicação compreensível e útil do motivo por que as coisas são assim. A maior parte das teorias em voga sobre a percepção [surgiu] desta última perspectiva. [...]

Fonte: Ittelson, W. H. & Kirkpatrick, F. P. 1975 [1967]. In: Scientific American, Psicobiologia: As bases biológicas do comportamento. RJ, LTC & Edusp. Artigo originalmente publicado em 1951.

01 junho 2019

Sucos de alto risco

Mariana Ferraz

O suco do açaí produzido artesanalmente pode ser hoje um dos principais responsáveis por surtos da doença de Chagas no Brasil. Entre junho de 2006 e junho de 2007, 116 pessoas foram contaminadas após ingerirem a bebida nos estados do Amapá, Amazonas e Pará. A contaminação do suco acontece quando o inseto portador do protozoário que causa a doença é triturado junto com a fruta.

O principal problema trazido pela transmissão oral da doença de Chagas é que a ingestão coloca grande quantidade do protozoário causador da enfermidade [...] na corrente sanguínea. Esse fato acarreta a redução do período de incubação da doença: enquanto na transmissão convencional os primeiros sintomas aparecem entre quatro e oito semanas após o contágio, na transmissão oral esse período se reduz para cerca de 10 dias e a doença pode rapidamente evoluir para suas formas mais graves.

Descrita pelo médico Carlos Chagas, em 1909, a doença de Chagas é causada pelo Trypanossoma cruzi, protozoário que vive no trato digestivo de várias espécies de insetos da subfamília Triatominae, popularmente conhecidos como barbeiros. Na natureza, o ciclo de vida desse microrganismo restringe-se ao inseto e a animais silvestres, muitos deles de hábitos insetívoros – o barbeiro suga o sangue desses animais que, por sua vez, se alimentam do inseto.

[...] Como têm o hábito de defecar após picarem sua presa, os barbeiros liberam protozoários que entram na circulação sanguínea da vítima por meio do contato das fezes com o local da picada. Esse é o principal meio de contaminação humana, mas o contágio também pode ocorrer durante a gravidez (de mãe para filho), por transfusão de sangue e pela ingestão de alimentos contaminados. Essa forma de contaminação era tida como rara, mas os diversos surtos mostram sua relevância para a saúde pública.

Fonte: Ferraz, M. 2007. Alto risco no açaí. Ciência Hoje 243: 54-5.

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