O fundo gênico de uma população não está prontamente acessível aos observadores. O que não significa dizer que esteja fora de nosso alcance – podemos examiná-lo de modo indireto [1].
Uma via de acesso é a paisagem fenotípica (leia-se: distribuição de um determinado traço fenotípico na população). Monitorando a frequência de diferentes variantes, podemos saber como a paisagem muda. Considere uma população de percevejos polimórficos – o traço em questão é a cor das pintas sobre o corpo –, na qual 20% são ditos verdes; 30%, amarelos, e 50%, vermelhos [2].
Estes percentuais não são fixos e, no transcurso de uma geração, três fatores podem alterá-los. São eles:
(1) Migração. Entrada e saída de fenótipos em percentuais diferentes dos que são encontrados na população (e.g., 80% dos fenótipos que saem da população são amarelos).
(2) Plasticidade e desenvolvimento. Fenótipos mudam em função das circunstâncias ou à medida que amadurecem (e.g., os indivíduos nascem verdes, mas se convertem em amarelos ao longo da vida e, mais adiante, em vermelhos).
(3) Seleção. A longevidade e a fertilidade dos fenótipos variam de acordo com a coloração do corpo.
No que segue, vamos examinar apenas a seleção.
Evoluir é inevitável
Como vimos no capítulo anterior, as bifurcações representadas em uma árvore filogenética refletem a segregação entre linhagens (cladogênese, no jargão técnico). O processo resulta do acúmulo de diferenças genéticas entre subgrupos de indivíduos.
Mas por que as linhagens estão sempre a mudar? Por que elas simplesmente não se estabilizam em algum estado estacionário? Essas mudanças todas terão fim algum dia?
Como princípio geral, podemos responder dizendo que evoluir não é uma opção – evoluir é inevitável e populações com pouco ou nenhum potencial evolutivo (leia-se: com pouca ou nenhuma variabilidade genética) tendem a desaparecer em poucas gerações.
Para entendermos a razão e o alcance desta última resposta, devemos examinar os fatores que ditam a natureza e o ritmo das mudanças evolutivas: mutações genéticas e interações ecológicas.
As mutações – fator interno – são a origem última da variabilidade, parte da qual é expressa no fenótipo. Não custa repetir: variação fenotípica é um pré-requisito do processo evolutivo – a paisagem fenotípica só mudará se houver variação (i.e., fenótipos minimamente diferentes entre si). Mas são as interações – o fator externo – que ditam a sorte e o destino das variantes, geração após geração. São elas que dão rumo à evolução.
Mutações podem ser refreadas, canceladas ou até suspensas, mas nada disso se dá com as interações – estas, diferentemente daquelas, são inevitáveis. Este é o motivo pelo qual a evolução é inevitável: não há como esvaziar o mundo e suspender as interações. A lição a extrair disso é que a palavra final sobre o drama evolutivo é dada pela ecologia, não pela genética.
Luta pela vida
Mas por que as interações são inevitáveis? Há duas razões para isso: (1) seres vivos não são autossuficientes – todo e qualquer recém-nascido depende de fontes externas de matéria e energia para construir e manter seu corpo; e (2) não existem vácuos ecológicos na natureza – todo e qualquer organismo nasce, cresce e vive em um mundo previamente ocupado.
A ecologia (do grego oekologie, algo como o estudo do lugar onde se mora) é a disciplina científica que lida com as interações e, em especial, com o impacto que os fatores ambientais exercem sobre a abundância e a distribuição de populações [3]. Outra maneira de dizer isso seria a seguinte: a ecologia lida com o estudo do drama da vida – como os organismos conseguem sobreviver e se reproduzir em um mundo previamente ocupado por outros seres vivos que estão tentando fazer exatamente a mesma coisa?
Dadas as circunstâncias – nascemos em um mundo finito e previamente ocupado – e visto que todo e qualquer organismo busca satisfazer as suas próprias necessidades (ou as de um grupo particular), os conflitos e entrechoques se tornam inevitáveis. E é aí que as interações se impõem, caracterizando aquilo que Herbert Spencer certa vez descreveu como a luta pela vida (ou l. pela existência).
A expressão, contudo, não deve ser levada ao pé da letra.
A palavra luta, por exemplo, está sendo usada em sentido metafórico, sem pressupor algum tipo de embate ou contato físico. É sabido e notório que muitos animais se envolvem em combates (e.g., disputas ritualizadas pela posse de um território). A questão é que há uma luta ainda mais ampla e permanente: ao longo da vida, todos os organismos (e não só os animais territoriais) estão a lutar contra uma série de fatores que põem em risco o seu bem-estar ou a sua integridade. Pois são esses fatores – e.g., escassez de alimento, competidores, doenças, adversidades climáticas etc. – que habitualmente fazem o papel de agentes de seleção.
O processo seletivo
Seleção é o que acontece quando algum fator ambiental impõe uma associação (positiva ou negativa) entre aptidão e fenótipo. Se a seleção está a operar, as chances de sobrevivência e reprodução deixam de ser aleatórias, como na deriva.
Nas palavras de Wallace (1889, p. 123; tradução livre):
[E] devemos nos livrar da ideia de que o acaso determina quem irá viver e quem morrerá. Pois, embora em muitos casos individuais a morte possa resultar do acaso e não de alguma inferioridade daqueles que morrem primeiro, ainda assim não devemos acreditar que este possa ser o modo como a natureza opera em larga escala. Uma planta, por exemplo, não pode prosperar a menos que haja locais vagos adequados nos quais as suas sementes possam crescer, ou regiões onde ela possa suplantar outras plantas, menos vigorosas e menos sadias. Pode-se dizer que as sementes de todas as plantas, por meio dos seus variados modos de dispersão, estão em busca desses locais onde possam crescer; e não podemos duvidar que, no longo prazo, aqueles indivíduos cujas sementes são mais numerosas, têm maior poder de dispersão e maior vigor de crescimento deixarão mais descen-dentes do que indivíduos da mesma espécie que são inferiores em todos estes aspectos, embora aqui e ali alguma semente de um indivíduo inferior seja por acaso transportada até um ponto onde possa crescer e sobreviver.
No cômputo geral, o resultado da luta pela vida – seleção natural [4] – pouco ou nada tem de aleatório. Esta é, aliás, uma das poucas afirmativas a respeito da seleção que conta com o aval de quase todos os autores. Quase todos eles também concordariam com a distinção entre propagação e manutenção de traços fenotípicos [5].
De resto, há várias divergências. Exemplo importante é a questão da natureza da seleção.
Tradicionalmente descrita como força ou mecanismo, a seleção tem sido caracterizada por alguns autores como uma consequência ou expressão estatística de outros fenômenos (e.g., variação hereditária em traços que afetam componentes da aptidão).
O assunto é intrigante, mas fica aqui apenas como registro.
Por ora, o importante a ser ressaltado é o seguinte: se não é um mecanismo, a seleção não pode ser a causa da evolução, ainda que a sua manifestação indique a ocorrência de mudanças adaptativas. As causas da seleção e, por suposto, as causas da evolução adaptativa seriam os fatores ambientais que promovem a referida associação entre fenótipo e aptidão – associação que deve ser sistemática e algo duradoura, sem tem de ser permanente ou universal.
Identificando causas
Para afirmarmos que a paisagem fenotípica mudou em decorrência de seleção, devemos identificar o fator ambiental que está a favorecer (de modo sistemático) a aptidão dos portadores de determinado traço, em detrimento dos portadores de traços alternativos. Identificar o fator ambiental equivaleria a identificar o agente causal da mudança observada.
Diferentemente do que alguns imaginam, nem todo agente seletivo é uma fonte de mortalidade – e.g., interações competitivas, talvez a mais universal das causas de seleção, raramente levam à destruição imediata dos competidores mais fracos.
O contrário é verdadeiro: nem toda fonte de mortalidade é um agente seletivo, visto que a destruição nem sempre é consequência do fenótipo – e.g., mortes aleatórias provocadas por desastres em larga escala podem ser desprovidas de qualquer impacto seletivo.
Mas, afinal, o que seriam esses fatores ambientais?
Responder a esta pergunta – a nossa próxima tarefa – nos ajudará a identificar as bases ecológicas da mudança evolutiva.
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Notas
Artigo extraído e adaptado do livro O que é darwinismo (2019). (A versão impressa contém ilustrações e referências bibliográficas.) Para detalhes e informações adicionais sobre a obra, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos e livros do autor, ver aqui.
[1] Religando os conceitos de evolução (mudança nas frequências alélicas) e seleção (processo que opera entre fenótipos): (1) frequências alélicas mudam como resultado direto de mudanças nas frequências dos genótipos (estes sendo arranjos daqueles); e (2) frequências genotípicas mudam como resultado de mudanças na distribuição dos fenótipos (estes sendo codificados por aqueles).
[2] Polimorfismo é a presença de várias formas (morfos) descontínuas em uma população, de modo que a mais rara não possa ser mantida apenas por mutação recorrente.
[3] Em Morfologia geral dos organismos (1866), Haeckel – talvez de modo pioneiro – usou o termo ecologia em alusão a uma disciplina científica.
[4] Ou “Sobrevivência do mais apto” – fórmula de Spencer que, por sugestão de Wallace, Darwin introduziu na 5ª edição de Sobre a origem das espécies (1869).
[5] A seleção direcional (= positiva) favorece a propagação de traços novos e a s. normalizadora (= negativa ou purificadora), a manutenção de traços antigos.