31 julho 2011

Cantiga de guarvaia

Paio Soares de Taveirós

No mundo non me sei parelha,
mentre me for’ como me vai,
ca ja moiro por vós – e ai!
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi en saia!
Mao dia que me levantei,
que vos enton non vi fea!

E, mia senhor, des quel di’, ai!
me foi a mi muin mal,
e vós, filha de Don Paai
Moniz, e ben vos semelha
d’aver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d’alfaia
nunca de vós ouve nen ei
valia d’ũa correa.

Fonte: Faraco, C. & Moura, F. 1999. Língua e literatura. SP, Ática. Poema datado de fins do século 12 (1189 ou 1198), também conhecido como ‘Poema de Ribeirinha’.

29 julho 2011

O século 19

Colin A. Ronan

O século 19 deveria assistir a grandes desenvolvimentos em todos os ramos da ciência. O surgimento de sociedades científicas especializadas, que suplementavam as academias científicas estabelecidas, denotava o grau de especialização que um conhecimento crescente e técnicas mais elaboradas estavam tornando necessário. Além do mais, a ciência começou a apresentar um aspecto mais público, na medida em que suas conseqüências práticas se tornavam mais evidentes na vida diária. Provavelmente o fato mais notável foi o desenvolvimento da força do vapor, devido, como vimos, a James Watt, que pôs em prática os estudos de Joseph Black, em Glasgow, ao passo que a nova técnica da engenharia elétrica seria à luz no fim do século 19 pelo trabalho pioneiro de Michael Faraday. E foi durante o século 19 – mais precisamente em 1840, em Glasgow – que se criou a palavra ‘cientista’, de modo bastante apropriado, pela Associação Britânica para o Progresso da Ciência, fundada nove anos antes para organizar um encontro anual em que os cientistas pudessem reunir-se para discutir de forma aberta e acessível o seu trabalho.
[...]

Fonte: Ronan, C. A. 1987 [1984]. História ilustrada da ciência, vol. 4. RJ, Jorge Zahar.

27 julho 2011

Rondel

Jean Itiberé

Comme un paysage de lumière
Dans la clarté d’or du matin
Ta chevelure de satin
Brille sur ta figure fière.

L’amour en sa beauté première
Parle dans ton regard mutin
Comme un paysage de lumière
Dans la clarté d’or du matin.

J’aime la grâce familière
De ton rire vif argentin,
Après qu’un baiser clandestin
A fait allumer ta paupière
Comme un paysage de lumière.

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 5. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em 1895.

25 julho 2011

Um cadáver de poeta

Álvares de Azevedo

1.
De tanta inspiração e tanta vida,
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto...
O que resta? uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
Resta um poeta morto!

Morrer! E resvalar na sepultura,
Frias na fronte as ilusões! – no peito
Quebrado o coração!
Nem saudades levar da vida impura
Onde arquejou de fome... sem um leito!
Em treva e solidão!

Tu foste como o sol; tu parecias
Ter na aurora da vida a eternidade
Na larga fronte escrita...
Porém não voltarás como surgias!
Apagou-se teu sol da mocidade
Numa treva maldita!

Tua estrela mentiu. E do fadário
De tua vida a página primeira
Na tumba se rasgou...
Pobre gênio de Deus, nem um sudário!
Nem túmulo nem cruz! como a caveira
Que um lobo devorou!...

2.
Morreu um trovador – morreu de fome.
Acharam-no deitado no caminho:
Tão doce era o semblante! Sobre os lábios
Flutuava-lhe um riso esperançoso.
E o morto parecia adormecido.

Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte
Nas horas da agonia! Nem um beijo
Em boca de mulher! nem mão amiga
Fechou ao trovador os tristes olhos!
Ninguém chorou por ele... No seu peito
Não havia colar nem bolsa d’oiro;
Tinha até seu punhal um férreo punho...
Pobretão! não valia a sepultura!

Todos o viam e passavam todos.
Contudo era bem morto desde a aurora.
Ninguém lançou-lhe junto ao corpo imóvel
Um ceitil para a cova!... nem sudário!

O mundo tem razão, sisudo pensa,
E a turba tem um cérebro sublime!
De que vale um poeta – um pobre louco
Que leva os dias a sonhar – insano
Amante de utopias e virtudes
E, num tempo sem Deus, ainda crente?

A poesia é decerto uma loucura;
Sêneca o disse, um homem de renome.
É um defeito no cérebro... Que doudos!
É um grande favor, é muita esmola
Dizer-lhes bravo! à inspiração divina,
E, quando tremem de miséria e fome,
Dar-lhes um leito no hospital dos loucos...
Quando é gelada a fronte sonhadora.
Por que há de o vivo que despreza rimas
Cansar os braços arrastando um morto,
Ou pagar os salários do coveiro?
A bolsa esvaziar por um misérrimo,
Quando a emprega melhor em lodo e vício!

E que venham aí me falar em Tasso!
Culpar Afonso d’Este – um soberano! –
Por não lhe dar a mão da irmã fidalga!
Um poeta é um poeta – apenas isso:
Procure para amar as poetisas!
Se na França a princesa Margarida,
De Francisco primeiro irmã formosa,
Ao poeta Alain Chartier adormecido
Deu nos lábios um beijo, é que esta moça,
Apesar de princesa, era uma douda,
E a prova é que também rondós fazia.
Se Riccio, o trovador, obteve amores
– Novela até bastante duvidosa –
Dessa Maria Stuart formosíssima,
É que ela – sabe-o Deus! – fez tanta asneira,
Que não admira que um poeta amasse!

Por isso adoro o libertino Horácio:
Namorou algum dia uma parenta
Do patrono Mecenas? Parasita,
Só pedia dinheiro – no triclínio
Bebia vinho bom – e não vivia
Fazendo versos às irmãs de Augusto.

E quem era Camões? Por ter perdido
Um olho na batalha e ser valente,
Às esmolas valeu. Mas quanto ao resto,
Por fazer umas trovas de vadio,
Deveriam dar-lhe, além de glória,
– E essa deram-lhe à farta! – algum bispado
Alguma dessas gordas sinecuras
Que se davam a idiotas fidalguias?

Deixem-se de visões, queimem-se os versos.
O mundo não avança por cantigas.
Creiam do poviléu os trovadores
Que um poeta não vale meia princesa.

Um poema, contudo, bem escrito,
Bem limado e bem cheio de tetéias,
Nas horas do café lido, fumando,
Ou no campo, na sombra do arvoredo,
Quando se quer dormir e não há sono,
Tem o mesmo valor que a dormideira.

Mas não passe dali do vate a mente.
Tudo o mais são orgulhos, são loucuras!
Faublas tem mais leitores do que Homero...
Um poeta no mundo tem apenas
O valor de um canário de gaiola...
É prazer de um momento, é mero luxo.
Contente-se em traçar nas folhas brancas
De algum Álbum da moda umas quadrinhas:
Nem faça apelações para o futuro.
O homem é sempre o homem. Tem juízo:
Desde que o mundo é mundo assim cogita.

Nem há negá-lo – não há doce lira
Nem sangue de poeta ou alma virgem
Que valha o talismã que no oiro vibra!
Nem músicas nem santas harmonias
Igualam o condão, esse eletrismo,
A ardente vibração do som metálico...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Meu Deus! e assim fizeste a criatura?
Amassaste no lodo o peito humano?
Ó poeta, silêncio! é este o homem?
A feitura de Deus! a imagem dele!
O rei da criação!
Que verme infame!
Não Deus, porém Satã no peito vácuo
Uma corda prendeu-te – o egoísmo!
Oh! miséria, meu Deus! e que miséria!

3.
Passou El-Rei ali com seus fidalgos.
Iam a degolar uns insolentes
Que ousaram murmurar da infâmia régia,
Das nódoas de uma vida libertina!
Iam em grande gala. O Rei cismava
Na glória de espetar no pelourinho
A cabeça de um pobre degolado.
Era um Rei bon-vivant e Rei devoto;
E, como Luís XI, ao lado tinha
O bobo, o capelão... e seu carrasco.

O cavalo do Rei, sentindo o morto,
Trêmulo de terror parou nitrindo.
Deu d’esporas leviano o cavaleiro
E disse ao capelão:
“E não enterram
Esse homem que apodrece, e no caminho
Assusta-me o corcel?”
Depois voltou-se
E disse ao camarista de semana:
“Conheces o defunto? Era inda moço,
Daria certamente um bom soldado.
A figura é esbelta! Forte pena!
Podia bem servir para um lacaio.”

Descoberto, o faceiro fidalgote
Responde-lhe fazendo a cortesia:
“Pelas tripas do Papa! eu não me engano,
Leve-me Satanás se este defunto
Ontem não era o trovador Tancredo!”

“Tancredo”! murmurou erguendo os óculos
Um anfíbio, um barbaças truanesco,
Alma de Triboulet, que além de bobo
Era o vate da corte – bem nutrido,
Farto de sangue, mas de veia pobre,
Caidos beiços, volumoso abdómen,
Grisalha cabeleira esparramada,
Tremendo narigão, mas testa curta;
Em suma um glosador de sobremesas.

“Tancredo! – repetiu imaginando –
Um asno! só cantava para o povo!
Uma língua de fel, um insolente!
Orgulho desmedido... e quanto aos versos
Morava como um sapo n’água doce!
Não sabia fazer um trocadilho...”

O Rei passou – com ele a companhia.
Só ficou ressupino e macilento
Da estrada em meio o trovador defunto!

4.
Ia caindo o sol. Bem reclinado
No vagaroso coche madornado,
Depois de bem jantar fazendo a sesta,
Roncava um nédio, um barrigudo frade:
Bochechas e nariz, em cima uns óculos,
Vermelho solidéu... enfim um bispo,
É um bispo, senhor Deus! da Idade Média,
Em que os bispos – como hoje e mais ainda -
Sob o peso da cruz bem rubicundos,
Dormindo bem, e a regalar bebendo.
Sabiam engordar na sinecura;
Papudos santarrões, depois da Missa
Lançando ao povo a bênção – por dinheiro!

O cocheiro ia bêbado por certo:
Os cavalos tocou p’lo bom caminho
Mesmo em cima das pernas do cadáver.
Refugou a parelha, mas o sota
– Que ao sol da glória episcopal enchia
De orgulho e de insolência o couro inerte,
Cuspindo o poviléu, como um fidalgo –
Que em falta de miolo tinha vinho
Na cabeça devassa, deu de esporas:
Como passara sobre a vil carniça
Raléu de corvos negros – foi por cima...
Mas desgraça! maldito aquele morto!
Desgraça!... não porque pisasse o coche
Aqueles magros ossos, mas a roda
Na humana resistência deu estalo...
E acorda o fradalhão...
“O que sucede?
– Pergunta bocejando – é algum bêbado?
Em que bicho pisaram?”
“Senhor bispo”,
Diz o servo da Igreja, o bom cocheiro
Ao vigário de Cristo, ao santo Apóstolo
Isto é – dessa fidalga raça nova
Que não anda de pé como S. Pedro,
Nem estafa os corcéis de S. Francisco:
“Perdoe Vossa Excelência Eminentíssima;
É um pobre diabo de poeta,
Um homem sem miolo e sem barriga
Que lembrou-se de vir morrer na estrada!”

“Abrenúncio! – rouqueja o Santo Bispo –,
Leve o Diabo essa tribo de boêmios!
Não há tanto lugar onde se morra?
Maldita gente! inda persegue os Santos
Depois que o Diabo a leva!...”
E foi caminho.

Leve-te Deus! Apóstolo da crença,
Da esperança e da santa caridade!
Tu, sim, és religioso e nos altares
Vem cada sacristão, e cada monge
Agita a teus pés o seu turíbulo!
E o sangue do Senhor no cálix d’oiro
Da turba na oração te banha os lábios...
Leve-te Deus, Apóstolo da crença!
Sem padres como tu que fora o mundo?
É por ti que o altar apóia o trono!
E teu olhar que fertiliza os vales,
Fecunda a vinha santa do Messias!

Leve-te Deus... ou leve-te o Demônio!

5.
Caiu a noite do azulado manto,
Como gotas de orvalho, sacudindo
Estrelas cintilantes. – Veio a lua,
Banhando de tristeza o céu noturno:
Derrama aos corações melancolia,
Derrama no ar cheiroso molemente
Cerúlea chama, dia incerto e pálido
Que ao lado da floresta ajunta as sombras
E lança pelas águas da campina
Alvacentos clarões que as flores bebem.
A galope, de volta do noivado,
Passa o Conde Solfier e a noiva Elfrida.
Seguem fidalgos que o sarau reclama.

Elfrida
– Não vês, Solfier, ali da estrada em meio
Um defunto estendido? –

Solfier
– Ó minha Elfrida,
Voltemos desse lado: outro caminho
Se dirige ao castelo. É mau agouro
Por um morto passar em noites destas.

Mas Elfrida aproxima o seu cavalo.

Elfrida
– Tancredo!... vede! é o trovador Tancredo!
Coitado! assim morrer! um pobre moço!
Sem mãe e sem irmã! E não o enterram?
Neste mundo não teve um só amigo? –

“Ninguém, senhora! – respondeu da sombra
Uma dorida voz – Eu vim, há pouco,
Ao saber que do povo no abandono
Jazia como um cão. Eu vim, e eu mesmo
Cavei junto do lago a cova impura.”

Elfrida
Tendes um coração. Tomai, mancebo,
Tomai essa pulseira... Em ouro e jóias
Tem bastante p’ra erguer-lhe um monumento,
E para longas missas lhe dizerem
Pelo repouso d’alma... –
O moço riu-se.

O desconhecido
– Obrigado. Guardai as vossas jóias.
Tancredo o trovador morreu de fome;
Passaram-lhe no corpo frio e morto,
Salpicaram de lodo a face dele,
Talvez cuspissem nesta fronte santa
Cheia outrora de eternas fantasias,
De idéia a valer um mundo inteiro!...
Por que lançar esmolas ao cadáver?
Leva-as, fidalga – tuas jóias belas!
O orgulho do plebeu as vê sorrindo.
Missas... bem sabe Deus se neste mundo
Gemeu alma tão pura como a dele!
Foi um anjo, e murchou-se como as flores,
Morreu sorrindo como as virgens morrem!
Alma doce que os homens enjeitaram,
Lírio que profanou a turba imunda,
Oh! não te mancharei nem a lembrança
Com o óbolo dos ricos! Pobre corpo,
És o templo deserto, onde habitava
O Deus que em ti sofreu por um momento!
Dorme, pobre Tancredo! eu tenho braços:
Na cova negra dormirás tranqüilo...
Tu repousas ao menos!... –

No entanto sofreando a custo a raiva,
Mordendo os lábios de soberba e fúria,
Solfier da bainha arranca a espada.
Avança ao moço e brada-lhe:
“Insolente!
Cala-te, doudo! Cala-te, mendigo!
Não vês quem te falou? Curva o joelho,
Tira o gorro, vilão!”

O desconhecido
– Tu vês: não tremo.
Tu não vales o vento que salpica
Tua fronte de pó. Porque és fidalgo,
Não sabes que um punhal vale uma espada
Dentro do coração? –

Mas logo Elfrida:
“Acalma-te, Solfier! O triste moço
Desespera, blasfema e não me insulta.
Perdoa-me também, mancebo triste;
Não pensei ofender tamanho orgulho.
Tua mágoa respeito. Só te imploro
Que sobre a fronte ao trovador desfolhes
Essas flores, as flores do noivado
De uma triste mulher... E quanto às jóias,
Lança-as no lago... Mas quem és? teu nome?”

O desconhecido
– Quem sou? um doudo, uma alma de insensato,
Que Deus maldisse e que Satã devora;
Um corpo moribundo em que se nutre
Uma centelha de pungente fogo,
Um raio divinal que dói e mata,
Que doira as nuvens e amortalha a terra!...
Uma alma como o pó em que se pisa;
Um bastardo de Deus, um vagabundo
A que o gênio gravou na fronte – anátema!
Desses que a turba com o dedo aponta...
Mas não; não hei de sê-lo! eu juro n’alma,
Pela caveira, pelas negras cinzas
De minha mãe o juro... agora há pouco
Junto de um morto reneguei do gênio,
Quebrei a lira à pedra de um sepulcro...
Eu era um trovador, sou um mendigo... –

Ergueu do chão a dádiva d’Elfrida;
Roçou as flores aos trementes lábios;
Beijou-as. Sobre o peito de Tancredo
Pousou-as lentamente...
– Em nome dele,
Agradeço estas flores do teu seio,
Anjo que sobre um túmulo desfolhas
Tuas últimas flores de donzela! –

Depois vibrou na lira estranhas mágoas,
Carpiu à longa noite escuras nênias,
Cantou: banhou de lágrimas o morto.

De repente parou – vibrou a lira
Co’as mãos iradas, trêmulas... e as cordas
Uma per uma rebentou cantando...
Tinha fogo no crânio, e sufocava.
Passou a fria mão nas fontes úmidas,
Abriu a medo os lábios convulsivos,
Sorriu de desespero – e sempre rindo
Quebrou as jóias e as lançou no abismo...

6.
No outro dia, na borda do caminho
Deitado ao pé de um fosso aberto apenas,
Viu-se um mancebo loiro que morria...
Semblante feminil, e formas débeis,
Mas nos palores da espaçosa fronte
Uma sombria dor cavara sulcos.
Corria sobre os lábios alvacentos
Uma leve umidez, um ló d’escuma,
E seus dentes a raiva constringira...
Tinha os punhos cerrados... Sobre o peito
Acharam letras de uma língua estranha...
E um vidro sem licor... fora veneno!...

Ninguém o conheceu: mas conta o povo
Que, ao lançá-lo no túmulo, o coveiro
Quis roubar-lhe o gibão – despiu o moço...
E viu... talvez é falso... níveos seios...
Um corpo de mulher de formas puras...

7.
Na tumba dormem os mistérios d’ambos;
Da morte o negro véu não há erguê-lo!
Romance obscuro de paixões ignotas,
Poema d’esperança e desventura,
Quando a aurora mais bela os encantava,
Talvez rompeu-se no sepulcro deles!
Não pode o bardo revelar segredos
Que levaram ao céu as ternas sombras;
Desfolha apenas nessas frontes puras
Da extrema inspiração as flores murchas...

Fonte: Azevedo, A. 2006. Lira dos vinte anos. SP, Martin Claret. Poema publicado em livro em 1853.

23 julho 2011

Elegia, aproveitando Bach

Fernando Assis Pacheco

Este manso Bach no piano
lembra-me o meu amigo Armindo Bouceiro
morto num estoiro de automóvel
quando corria para o cinema em Loulé.

Corria, sem o saber, para a morte inimiga,
entrava apressado na neblina cega
com as mãos poisadas sobre o volante,
o cigarro entre os lábios, meio ardido.

Calcava a fundo o acelerador
espreitando aqui e ali as curvas mais difíceis,
erguendo pó, sorrindo nas ultrapassagens
como quem galopa à beira do mar.

Numa viragem deixa o carro ir
de lado a lado na estrada, sem governo,
era o dardo da morte assinalando
o meu amigo Armindo Bouceiro.

Malmequeres entre a erva, rosas silvestres
crescem agora de seus dedos finos.
Ninguém o espera em casa. E a garganta
aperta-se com tão branca ausência.

Os meses passam, a memória esquece,
enchem-se os versos de meses e olvido.
Nada é igual ao que foi antes, quer-se
em cada hora o mundo agreste e novo.

Mas hoje ouvindo minha irmã tocar
reparo como são frias e excessivas,
como são desapiedadas certas mortes
(um amigo desfeito no empedrado),

e como endurecemos de irmos vendo
morrer esses amigos indefesos
– enquanto Bach nos fala de outras coisas,
do Abril, das estrelas, da sageza.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1963.

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