31 outubro 2012

Alma minha gentil, que te partiste


Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.

Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema publicado em livro em 1595.

29 outubro 2012

Quase cinza


eu sei onde ladram os ventos pelos ladrilhos
dos mistérios inexistentes.
eu sei de que matéria esta sensação de derrota
é feita, moldada, entre instrumentos de tortura
e pálpebras e espelhos amassados.
eu sei dos que falam no escuro a flauta da voz
das fábulas.
eu sei através do vídeo o vácuo do sangue atrás e além
da imagem, violentos planetas vomitando o drama.
eu sei as tartarugas infinitas.
os bodes expiatórios.
os lavabos cheios de unhas vivas.
a eternidade do gesto humano
morrendo no longo tombadilho.
sei das certezas e incertezas verdes.
sei do resumo de tudo dançando na chuva mais cotidiana.
só não sei do teu sorriso se diluindo em nuvem.
só não sei do teu corpo quase infantil
de mulher amanhecida.
só não sei do timbre de tua voz
entre borboletas e musgos fluindo do único verbo.
só não sei do opalescente rastro de teus pés
entre cachoeiras apagadas.
só não sei da galáxia a resumir vazia
o silêncio mortal de tua alma quebrada.
ai de mim
que eras ouro e breve.

Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano. Poema publicado em livro em 1975.

27 outubro 2012

Madame Bovary

Gustave Flaubert

[Primeira parte]

1.
Estávamos na sala de estudos quando o diretor entrou, seguido de um novato com roupas à paisana e de um bedel que carregava uma carteira. Os que estavam dormindo acordaram, e cada um se levantou como que surpreendido em seu estudo.

O diretor fez-nos sinal para que nos sentássemos; depois, voltando-se para o mestre de estudos:

– Senhor Roger – disse-lhe a meia-voz –, aqui está um aluno que eu lhe recomendo; ele está entrando na quinta série. Se o trabalho e o comportamento dele forem meritórios, passará para os maiores, que é o seu lugar pela idade.

Ficando no canto, atrás da porta, onde mal se conseguia vê-lo, o novato era um garoto do campo, de uns quinze anos de idade, e estatura mais alta do que qualquer um de nós. Tinha os cabelos cortados retos na testa como um cantor de igreja de aldeia, com um jeito ajuizado e muito acanhado. Embora não tivesse ombros largos, o paletó curto de pano verde e botões pretos devia atrapalhá-lo, deixando-o pouco à vontade, e permitia ver, pela fenda das roupas, uns pulsos vermelhos habituados a ficar descobertos. As pernas, com meias azuis, saíam de umas calças amareladas bastante estiradas pelos suspensórios. Calçava sapatos fortes, mal engraxados, guarnecidos de pregos.

Começaram a recitar as lições. Ele prestava plenos ouvidos, atento como ao sermão, nem mesmo ousando cruzar as pernas, nem apoiar-se nos cotovelos, e, às duas horas, quando bateu o sino, o mestre de estudos precisou avisá-lo para que entrasse conosco na fila.

Tínhamos o costume, ao entrar na sala, de jogar os gorros no chão, para ficar com as mãos mais livres; era preciso, desde a soleira da porta, atirá-los debaixo das carteiras, de maneira a bater contra a parede fazendo muita poeira; era o que se fazia.

Mas ou porque ele não tivesse notado essa manobra, ou porque não tivesse decidido submeter-se a ela, a oração já havia acabado e o novato ainda mantinha o casquete sobre os dois joelhos. Era uma dessas carapuças de natureza compósita, onde se encontram elementos de gorro de pelo, de chapska, do chapéu redondo, do boné de lontra e do gorro de algodão, uma dessas pobres coisas enfim, cuja feiura muda tem a mesma profundeza de expressão que o rosto de um imbecil. Ovoide e abaulado com barbatanas, começava por três rolos circulares; em seguida, alternavam-se, separados por uma faixa vermelha, losangos de veludo e de pelos de coelho; vinha depois uma espécie de saco que terminava por um polígono cartonado, coberto por um bordado em galão complicado, e de onde pendia, na ponta de um longo cordão bem fino, uma cruzinha de fios de ouro, à maneira de glande. Era novo; a viseira brilhava.

– Levante-se – disse o professor.

Ele levantou-se; o boné caiu no chão. Toda a classe se pôs a rir.

Abaixou-se para apanhá-lo. Um vizinho derrubou-o com o cotovelo, ele o apanhou mais uma vez.

– Livre-se de seu capacete – disse o professor, que era um homem espirituoso.

Houve uma gargalhada geral dos alunos, que deixou o pobre rapaz sem jeito, tanto assim que não sabia se segurava o boné na mão, deixava-o no chão ou o punha na cabeça. Voltou a sentar-se e o pôs no colo.

– Levante-se – repetiu o professor – e diga-me o seu nome.

O novato articulou, com uma voz balbuciante, um nome ininteligível.

– Repita!

O mesmo balbucio de sílabas se fez ouvir, coberto pelas vaias da classe.

– Mais alto – gritou o mestre. – Mais alto!

O novato, tomando então uma resolução extrema, escancarou a boca e lançou a plenos pulmões, como para chamar alguém, esta palavra: “Charbovari”.

Foi uma gritaria que se lançou como um salto, subiu em crescendo, com explosões de vozes agudas (uivavam, latiam, saltitavam, repetiam: “Charbovari! Charbovari!”), e que depois rolou em notas isoladas, acalmando-se com grande dificuldade, e por vezes recomeçava de repente na linha de uma fileira de carteiras onde se destacava ainda aqui e ali, como um rojão mal apagado, algum riso abafado.

Entrementes, debaixo da chuva de castigos, a ordem pouco a pouco se restabelecia na classe, e o professor, tendo conseguido captar o nome de Charles Bovary, exigindo que o ditasse, soletrasse e relesse, mandou o pobre coitado ir imediatamente sentar-se no banco dos preguiçosos, ao pé da cátedra. Ele se pôs em movimento, mas antes de ir, hesitou.

– O que é que você está procurando? – perguntou o professor.

– Meu bon… – fez timidamente o novato, lançando ao redor de si olhares inquietos.

– Quinhentos versos para toda a classe! – exclamado com voz furiosa, deteve, como o Quos ego, uma nova borrasca.

– Fiquem quietos! – continuava o professor indignado, e enxugando a testa com um lenço que acabara de pegar na touca: – Quanto a você, novato, vai me copiar vinte vezes o verbo ridiculus sum.

Depois, com voz mais suave:

– Ei! O seu casquete, você vai achá-lo; ninguém o roubou!

Tudo retomou a calma. As cabeças curvaram-se sobre os cadernos, e o novato ficou durante duas horas numa postura exemplar, embora houvesse, de vez em quando, alguma bolinha de papel lançada de um bico de pena que vinha bater em seu rosto. Mas ele se limpava com a mão e continuava imóvel, de olhos baixos.
[...]

Fonte: Flaubert, G. 2011 [1857]. Madame Bovary. SP, Penguin-Companhia.

25 outubro 2012

Lírio


Pierre-Joseph Redouté (1759-1840). Lilium superbum. 1802-16.

Fonte: Wikipedia.

23 outubro 2012

Só peço a Deus

León Gieco

Só peço a Deus
Que a dor não me seja indiferente
Que jamais a morte me encontre
Vazio e só, sem ter feito o suficiente

Só peço a Deus
Que a injustiça não me seja indiferente
Que não me esbofeteiem a outra face
Pois já sofremos o bastante, é evidente

Só peço a Deus
Que a guerra não me seja indiferente
É um monstro grande e pisa forte
Estraçalha a inocência da gente

Só peço a Deus
Que a mentira não me seja indiferente
Se um traidor pode mais que todo mundo
Que ninguém se esqueça dele facilmente

Só peço a Deus
Que o futuro não me seja indiferente
Pobre de quem tem que se mandar
E viver uma cultura diferente

Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Kleiton & Kledir (1984), de Kleiton & Kledir. Versão original desta canção foi gravada em 1978.

21 outubro 2012

Os mínimos carapinas do nada

Autran Dourado

No Ponto, na farmácia de seu Belo, no armazém de secos e molhados de seu Bernardino, mesmo no final das tardes de conversação distinta do Banco Duas Pontes, no gabinete do nobre de alma e de gestos Vítor Macedônio (o belo varão, bem-nascido e gentil-homem), que reunia em torno de si (ali se servia do melhor conhaque francês) os potentados do café como o coronel Tote ou ilustres desocupados como seu Bê P. Lima, maledicente e boa-vida, mas de berço, enfim nas várias ágoras da cidade onde se comerciava a novidade, a imaginação, o ócio e o tédio...

Nas janelas das casas terreiras de grandes e pesadas janelas de marco rústico, baixo e retangular, junto das calçadas, onde se ficava sabendo de tudo pelos passantes que iam e vinham (como era bom se debruçar e bater dois dedinhos de prosa ou fugir para dentro, se quem apontava na esquina era um maçante), de tudo se sabia sem carecer de estafeta e selo, as notícias e novidades: quem andava pastoreando quem, aquela que tinha caído na vida e agora era carne nova, estava de rapariga na Casa da Ponte, na testa de quem apontara o broto de futura e soberba galhada...

Mesmo nas nobres sacadas de ferro, nas janelas de ricos sobrados, podia-se ver a qualquer hora do dia, no enovelar lento do tempo, os carapinas do nada, ocupados na gratuita e absurda, prazerosa ocupação.

Eram os carapinas do mínimo e do nada, os devoradores das horas, insaciáveis Saturnos, dizia o sapientíssimo, alambicado, precioso dr. Viriato. Quem não tem o que fazer, faz colher de pau e enfeita o cabo, vinha por sua vez o proverbial, memorioso, eterno, pantemporal noveleiro Donga Novais, uma das poucas pessoas a não se entregar inteiramente ao vício e paixão da cidade. É porque para ele a entidade metafísica do tempo não existe (como para os platônicos que, ao contrário dos hebreus, não tinham o senso da historicidade, lidavam com o puro universal), passado, presente e futuro são uma coisa só, retrucava o dr. Viriato súbito espantosamente aderindo à fiação e tecelagem dos nossos mitos. Ele que era um cientista exaltado, um agnóstico convicto, de dialético linguajar maneirista que demandava precioso raciocínio, imaginação, dicionário.

Não que o dr. Viriato tivesse as mãos ocupadas no admirável passatempo (santo remédio para a ansiedade e a angústia), que demandava habilidade, precisão e paciência, a que se dedicavam aristocraticamente potentados e pingantes que só tinham de seu serem bem-nascidos. Tão alto crítico ele era, jamais se permitiria aquela vamos dizer arte, paixão antiga de Duas Pontes. De uma certa maneira ele colaborava era na criação de nossos mitos, mesmo negando-os, racionalista que ele se dizia e era.

Quando, quem inventou tão sublime vamos dizer desocupação e alívio do espírito, perguntava o dr. Viriato a seu Donga Novais, sapiência viva do nosso tempo e história, os fabulosos, inconclusos e aéreos anais. Você, Donga, é o Sócrates da nossa pólis. Não sei, dizia desapontando à gente o nosso macróbio cidadão Donga Novais: amor e ócio são maus negócios. Eu acho que deve ser invenção de índio, que enfeitava caprichosamente as suas flechas que, partidas do arco, não voltavam mais. Mas eles não estão enfeitando nada, dizia por sua vez o dr. Viriato. Os puristas, os cultores do absoluto, os escribas da idéia, dos protótipos e arquétipos ideais, os minúsculos carapinas do nada.

Seu Donga ficou um tempo parado, assuntando, ideando. Não é que o senhor tem razão, dr. Viriato? Sim, dizia o médico, porque a finalidade mágica dos bisões e demais caças pintadas nas cavernas pelo homem de Cro-Magnon... Seu Donga desatou a rir, não tinha mesmo jeito aquele dr. Viriato, comia brisas com pirão de areia.

Porque havia três categorias de livres oficiais que se dedicavam à nobre arte de desbastar e trabalhar a madeira com o simples canivete e um ou outro instrumento auxiliar feito as latinhas que faziam as vezes do compasso. Três, porque não se podia considerar como cultores da Idéia, do sublime e do nada, os carpinteiros e marceneiros, que se utilizavam da madeira e de instrumentos mais eficientes como o formão, o cepilho, as brocas, e tudo sabiam de sua arte, ofício e meio de vida. São os nossos sofistas, dizia o dr. Viriato, que pensavam ser possível ensinar a aretē e recebiam pelo seu trabalho e tinham as mãos calosas.

A primeira categoria quase se podia, se não fosse o nenhum pagamento, considerar uma corporação de operários, que faziam de sua técnica e imaginação um ofício. Se vendiam o produto, não eram bem vistos pelos autênticos carapinas do nada, os sublimes; podiam começar a receber encomendas como qualquer trabalhador, o que se considerava degradante.

Não há dúvida que o elogio é uma forma sublimada de remuneração e só se remunera operário, o que nem de longe se podia dizer deles (se ofendiam) que nunca pegaram no pesado. Eles e seus ancestrais, patriarcas absolutos, sempre estiveram do lado do cabo do chicote.

Eram os fabricantes de carrinhos de bois, caminhões, mobilinhas, monjolos de sofisticada feitura e perfeita serventia, usados para compor presépio. Em geral exerciam a sua ocupação ociosa em casa, se serviam de instrumentos caseiros para auxiliar o trabalho do canivete, e chegavam a utilizar outros materiais que não a madeira, como espelhinhos, pregos, folhas de flandres.

A segunda categoria, os marceneiros da nobre arte. Era exatamente aquela, sem metáfora ou imagem, de que falou o sábio e intemporal rifoneiro Donga Novais – os que literalmente enfeitavam cabo de colher de pau. Às vezes se dava o caso de que a colher ficava tão bem-feitinha e artística, com delicado e sutil rendilhado, labiríntica barafunda, de quase absoluta nenhuma serventia, que a peça passava de mão em mão por toda a parentela, vizinhos e mesmo estranhos. Os elogios que recebiam valiam por uma paga ao artista, que acabava por consentir (queriam) que a mulher ou a filha colocasse a colher na parede, para nunca ser usada.

O perigo dessa categoria era o autor, por vaidade ou outro motivo subalterno, gravar o seu nome na concha ou no cabo da colher. Como o primeiro artista da antiguidade que gravou numa obra sua a frase “Felix fecit”, inaugurando assim o culto da personalidade, tão contrário aos artistas do gótico, que nunca tinham a certeza de verem concluídas as catedrais que iniciavam, e eram anônimos, senão humílimos oficiais.

O coronel Sigismundo era exemplo típico dos oficiais da segunda categoria. Era não só meio destelhado e quarta-feira, mas verdadeira alimária. Dele constavam dos anais fantásticas proezas nos seus carros sempre novos e lustrosos, se dando ao luxo e à extravagância de às vezes vestir a sua brilhosa e engalanada farda da Guarda Nacional, que não mais existia, e passear de carro pela cidade.

Tudo se desculpava no coronel Sigismundo, por respeito ou medo. Ele se deu ao máximo, como nos tempos de casa-grande e senzala, de oferecer não uma colher de pau, mas palmatória de manopla por ele rendilhada, verdadeiro instrumento de suplício, ao major Américo, diretor e dono do Colégio Divino Espírito Santo, de terrível e acrescentada memória, capaz de desasnar a própria alimária. O velho major da Guarda Nacional recuou, os tempos agora eram outros. O gesto de ofertar e a utilidade do produto desqualificavam muito o coronel Sigismundo. Podia-se argumentar em seu favor que uma colher de pau também é útil. Sim, mas ninguém ia usar uma colher de pau finamente trabalhada para remexer panela, o bom dela, após o trabalho do artista, era não servir para coisa nenhuma, puro deleite.

E agora se apresenta a pura, a sublime, a extraordinária terceira categoria. Só aos seus membros, peripatética academia, se podia aplicar estes qualificativos: divinos e luminosos, aristocráticos artífices do absurdo. Eram como poetas puros, narradores perfeitos, cepilhando e polindo as vazias estruturas do nada. A terceira categoria era o último estágio para se atingir a sabedoria e a salvação.

Às vezes se dava o caso de que o artista (e isso não se ensina, ao contrario do que afirmavam os sofistas, dizia o Dr. Viriato, emérito teórico do vazio e do absoluto) vinha diretamente da primeira categoria, e alcançava a plenitude do nada, era um dos amados dos deuses, para os quais o grande, senão único pecado é a ignorância. Não se atingia essa categoria (era raríssimo o caso de um jovem a ela pertencer; falta à juventude ócio e paciência) senão a velhice, quando se alcançava a plenitude da aretē.

Vovô Tomé era um desses casos raros do artista que passa veloz e diretamente da primeira à terceira categoria. Atribuem a sua proeza e sua mestria no ofício ao sofrimento, que é uma das vias para se atingir o absoluto e a glória. Ele os alcançou, e isso consta dos anais do vento, na última velhice, quando atingiu, de apara em apara, cada vez mais longas e mais finas, enroladinhas que nem cabelo de preto, o etéreo e o que lhe restou na mão foi um minúsculo pedacinho de pau. Na mesa, a seu lado, no círculo de luz do cone do abajur, um monte de finíssimas aparas, nenhuma delas partida. Uma obra divina, foi o que disse o famigerado artista Bê P. Lima, quando viu o tiquinho de nada que restou. Falou quem pode, disse seu Donga Novais da sua aérea fantástica e insone janela, almenara da cidade. Um mestre e guru nirvântico, acolitou o Dr. Viriato.

Para atingir esse estágio, o noviço carece de muita paciência, aplicação, humildade, modéstia. É preciso enfrentar a maledicência dos ocupados, vencer a delicadeza e timidez, correr o risco de se ferir.

O mais elevado ideal dos membros dessa categoria era se dedicar a tão sublime ocupação sentado numa roda, prestando atenção no desenrolar da conversa vadia e mesmo dela participando com um ou outro aforismo ou ponderação, sem despregar os olhos da mecânica ocupação. Conta-se a fantástica proeza de um dos sacerdotes do culto, o inefável seu Bê P. Lima, que começou desbastando um grande pedaço de madeira e foi indo, foi indo, de caracol em caracol, sem pressa, preciso, cuidando do seu gratuito ofício, o ouvido porém atento à conversa, que esquentava, e seu Bê não queria perder nada, cujo tema principal era comportamento de certa dama de nossa cidade.

E de repente se suspendeu a conversação, todos voltados para ele. Seu Bê se aproximava do fim, faltava-lhe uma última e mínima apara para atingir o nada. O próprio seu Belo veio lá de dentro do laboratório e ficou à espera. Então aconteceu. Não se podia dizer se o que ficou na mão de seu Bê fosse ou não minúsculo caracol que ele soprou. Como num circo ou num concerto, após sustenida atenção, a respiração suspensa, a roda prorrompeu num coro de palmas.

Seu Vítor Macedônio, que passava pela farmácia, diante do silêncio da roda, parou. Não se dedicava ao nobre ofício, mas vendo a atenção de todos, também ele aderiu à rodada de palmas. Seu Bê, me faça o favor de comparecer no banco lá pelo fim da tarde, para comemoramos o evento. Mais do que o normal, ele seria generoso com seu conhaque francês.

Acredito com os outros que o móvel inicial que levou vovô Tomé à nobre ocupação de pica-pau tenha sido o sofrimento. O suicídio de tio Zózimo, a loucura mansa de tia Margarida, um desastre econômico de papai que o obrigou a vender a Fazenda do Carapina para que não lhe tomassem a casa. Mas muito antes da terrível morte do tio Zózimo ele já se ocupava em fazer a canivete um ou outro objeto de alguma serventia. A gratuidade mesmo de magníficos caracóis ele só viria a atingir depois da morte por enforcamento de tio Zózimo.

Mas antes mesmo do primeiro desses tristes acontecimentos vovô Tomé já se dedicava a manter as mãos ocupadas. Acredito em parte que foi a tentativa de manter as mãos ocupadas para vencer a opressão e a angústia que o levou a se dedicar a pequena tarefas caseiras. Porque não lhe bastava fazer um longo, caprichando e lento cigarro de palha, tarefa em que era perito.

Os outros podem estar certos, e eu mesmo recuaria no tempo (não conhecia senão de crônica vovô Zé Mariano, pai de vovô Tomé), se pudesse contar a historia que num dia de maior solidão e sufocamento, sob a maior promessa de sigilo, me contou vovô Tomé. Mas é um caso longo, não é para agora.

Não, não foi só isso. Havia um lado menino muito bom em vovô Tomé. Eu me lembro do entusiasmo em que ele ficava quando da chegada de um circo à nossa cidade, mesmo que fosse circo de tourada. E eu muito criança ia com ele, ficava no seu camarote. Só depois é que o abandonei para estar com meus amigos mais velhos lá no alto das arquibancadas.

Me lembro (e isso mamãe e vovó Naninha confirmam) dos primeiros passos de vovô Tomé na arte de picar pau. Eu estava sentado no chão de tábuas lavadas e secas da sala, cortando umas figuras de umas revistas velhas. Eram de uma coleção de tia Margarida.

Quando vovô Tomé viu e me chamou. João, deixa isso de banda, guarde as revistas onde você tirou, venha comigo, tive uma idéia. Vamos ao armazém de seu Bernardino buscar material.

Ele me deu a mão e eu estava muito feliz. Não era meu aniversário, quando, como fazia com os netos e afilhados, ele nos levava ao armazém de seu Bernardino para comprar um sapato de ver Deus.

No armazém, depois de uma conversa breve e formal com seu Bernardino, vovô perguntou se ele podia nos arranjar um caixote vazio. Seu Bernardino se espantou com o pedido, vovô ainda não era da confraria. Quer que eu mande levar, perguntou seu Bernardino. Se me fizessem a bondade... Eu tive um ímpeto, disse pode deixar que eu levo. Seu Bernardino olhou para mim, olhou para vovô Tomé, e disse como ficamos, seu Tomé? Mande levar, disse vovô. E o preço da peça e do carreto, por favor. Seu Bernardino disse brincando nem o preço de uma das suas fazendas bastaria. Então lhe mandarei, no fim da safra, uma saca do melhor café tipo sete. Ora, seu Tomé, e eu ia aceitar?! Não é pelo caixote, é por nossa velha amizade, disse vovô Tomé.

Aprendi então um dos preceitos do seu código de aristocracia rural. Eu e ele não podíamos fazer qualquer trabalho manual, a nossa posição nos vedava. O primeiro foi (como esquecer!) quando soube que o delegado seu Dionísio tinha mandado dar uma surra num preso para ele confessar. Em homem não se bate, é melhor matar, por respeito à sua condição de homem, é mais digno. Outro preceito do seu código de honra aprendi muito menino, quando uma vez, a mando de mamãe, lhe fui tomar a bênção. Ele me recusou a mão, disse homem não beija mão de homem. Era um comportamento raro em Duas Pontes, cidade de velhos patriarcas.

Nem bem chegamos em casa e veio o empregado com o caixote. Era um caixote de madeira branca que, pelos dizeres e pelo cheiro, se viu que tinha servido para embalar bacalhau, madeira das estranjas.

Vovô tirou o paletó, desabotoou o colete, afrouxou o colarinho e começou a fazer um caminhãozinho para mim. Para quem parecia estar usando as mãos pela primeira vez, não estava mal. No final da tarde, a obra estava pronta. Tinha ficado um tanto rústica, mas eu não disse nada a vovô Tomé, para não atrapalhar a sua satisfação.

No outro dia dei com vovô Tomé aparando pachorrentamente um pedaço de pau. Quê que o senhor está fazendo, perguntei. Uma colher de pau para Naninha, ela me pediu, disse ele meio envergonhado, talvez pela sua utilidade doméstica. O senhor parece que não está gostando, não é, perguntei. Para lhe ser franco, não, disse vovô. O que gostaria de fazer, um monjolinho, indaguei. Não, gostaria de fazer nada, disse ele. Nada, à toa? Disse eu meio desapontado. Não, fazendo absolutamente nada, quer dizer, ir aparando vagarosamente a madeira até não restar mais nada. Assim feito seu Bê, perguntei. Vovô riu, achava muita graça nas bestagens de seu Bê P. Lima, nas histórias obscenas que ele contava, quando não tinha menino por perto, na presença de menino e de mulher ele fechava a cara, metia a viola no saco, se dava ao respeito. Bê é um artista do nada, por isso é um homem feliz, disse.

E vovô Tomé foi ficando um perito na arte dos caracóis. Demorava muito o aprendizado, ele porém não tinha pressa. Pra quê? dizia, não falta matéria-prima neste mundo. E brincando, haja povo na terra para desbastar a floresta amazônica. Às vezes fico imaginando o povo todo do mundo picando pauzinho. Seria a paz e a união dos homens.

Eu tinha um certo medo de que vovô enjoasse do gratuito ofício e virasse um teórico do não fazer nada, absolutamente nada. Seu Bê, por exemplo, não tinha dessas cogitações, apenas ia aparando as suas fitas e caracóis.

Vovô não tinha a pachorra e a tranqüilidade de seu Bê. Era exigente, ia ao armazém de seu Bernardino escolher as melhores madeiras, havia uma certa qualidade de pinho que era em si uma beleza. A madeira não podia ter olhos nem veios muito acentuados, nem mistura de tons. Quanto mais lisas e uniformes, melhor. Quem tem pressa não faz nada, dizia ele já agora conceituoso. Ele tinha a sua poética, a diferença entre ele e seu Bê é que seu Bê não tinha poética nenhuma, era um puro artista do nada.

Com o passar do tempo, vovô Tomé viu que se aprende até certo ponto, depois é desaprender de tal maneira que cada dia se tenha diante de si o puro nada.

E os anos passaram e eu me afastei de vovô Tomé. Fui para Belo Horizonte, onde fiz o meu curso superior sustentado por ele. É com remorso que me lembro de que lhe escrevi apenas umas minguadas cartas. Em nenhuma delas perguntei como ele ia na sua velha arte. Fiquei sabendo por uma carta de vovó Naninha que ele tinha morrido.

Voltei imediatamente a Duas Pontes. Vovó Naninha disse que ele morrera de pé, feito queria, sem curtir leito de doente, à grande mesa da sala de jantar, tirando um enorme caracol. Tinha encontrado o seu nada.

Vovó Naninha me deu o seu canivete preferido. Não sei o que fazer com ele, é de outra maneira que procuro o meu nada.

Fonte: Costa, F. M., org. 2009. Os melhores contos brasileiros de todos os tempos, 3ª edição. RJ, Ediouro. Conto publicado em livro em 1987.

19 outubro 2012

Quando o mar se levanta

Tom Garrison

Na manhã de 26 de dezembro de 2004, um terremoto atingiu o leito do mar na margem leste do Oceano Índico, ao largo da costa de Sumatra. Ocorrendo a uma profundidade de 18 quilômetros, a ruptura entre duas placas tectônicas rapidamente atingiu a superfície, viajando para noroeste a velocidades supersônicas por mais de três minutos. Em alguns lugares ao longo da junção, a Placa Indo-Australiana pode ter se movido horizontalmente perto de 20 metros sobre a Placa Euro-Asiática [...]. Com uma magnitude de 9,3, esse foi um dos maiores terremotos já registrados.

O movimento das placas, no entanto, acontece também na vertical. A Placa Euro-Asiática foi erguida cerca de 5 metros. A água sobre a placa também foi elevada na mesma altura. Próximo ao epicentro do terremoto, o oceano tem aproximadamente 4.000 metros de profundidade, e essa coluna de água com o tamanho da Grande São Paulo foi forçada para cima por uma energia equivalente a 32.000 bombas de Hiroshima. Esse enorme volume de água começou então a cair, nascendo, assim, o maior tsunami da história moderna.

As ondas propagaram-se para longe do epicentro a uma velocidade de mais de 755 quilômetros por hora. A costa oeste da província de Aceh, na Indonésia, e sua capital, Banda Aceh, foram inundadas em menos de meia hora após o terremoto. Ondas de 35 metros de altura atingiram a costa sudoeste, e a área mais densamente habitada no nordeste foi assolada por três ondas de 12 metros. Mais de 35.000 pessoas morreram em minutos.

As ondas seguiram adiante. Para leste, estão a costa da Tailândia e as famosas praias com hotéis de Phuket. Menos de duas horas após o terremoto, ondas de 5 metros começaram a castigar a costa. Como não houve aviso, aproximadamente 14.000 pessoas morreram, incluindo cerca de 2.400 turistas, a maioria europeus. Três horas após ter sido formado, o tsunami deslocou-se ao largo para o oeste, no Sri Lanka e na Índia, pela expansão do Oceano Índico. Embora as ondas estivessem menores agora por causa da dispersão e da interferência com o leito do mar, outros 30.000 morreram.

O evento de 26 de dezembro foi o terremoto mais letal em cinco séculos. O número de mortos e desaparecidos ainda estava sendo calculado em 2005 quando este livro foi escrito. O triste total pode passar de 200.000 – um testemunho silencioso do aviso dado pelo historiador Will Durant: “A civilização existe apenas pelo consentimento geológico, sujeito a mudança sem aviso”.

Fonte: Garrison, T. 2010 [2006]. Fundamentos de oceanografia, 4ª edição. SP, Cengage.

17 outubro 2012

A criança doente


Gabriël Metsu (1629-1667). Het zieke kind. 1660-5.

Fonte da foto: Rijksmuseum.

15 outubro 2012

O ponto avesso

Piero Pasolini

Paul A. M. Dirac era um dos jovens físicos teóricos, artífices da nova física quântica, derivada da grande descoberta de Planck, ou seja, do quantum de ação. Dirac era um gênio, do ponto de vista teórico. Manifestava uma aptidão especial para descobrir as mais profundas relações de qualquer situação física, mesmo das mais simples. Gostava mais de teorizar sobre todos os problemas da vida quotidiana, que de solucioná-los pela ação direta. Geralmente acertava em cheio. Em virtude de sua originalidade e de sua maneira de observar todas as coisas sob o prisma científico, chegava até a envolver-se em situações extremamente cômicas. Seus colegas, todos notáveis físicos deste século e, como ele, prêmios Nobel de Física dos anos 30, costumavam contar a seu respeito estorietas ‘científicas’ realmente curiosas. Como aquela de sua visita a um casal amigo, quando passou a reparar no modo como a senhora movimentava as agulhas para a confecção de uma peça de lã. Interrompendo repentinamente a conversa, dirigiu-se à mulher: “Observando o modo como você faz seu trabalho, passei a refletir sobre o aspecto topológico do problema. Existe somente um outro modo de fazê-lo: é assim”. E acompanhou suas últimas palavras com gestos apropriados dos seus longos dedos. “É verdade – respondeu a mulher – é o ponto avesso, que nós mulheres conhecemos muito bem”.

De um gênio desse tipo, tudo se poderia esperar. Mas talvez ninguém imaginasse que, com a mesma facilidade demonstrada na descoberta do ‘ponto avesso’, viesse a descobrir também o ‘avesso’ da matéria.
[...]

Fonte: Pasolini, P. s/d [1976]. As grandes idéias que revolucionaram a ciência nos últimos cem anos. SP, Cidade Nova.

13 outubro 2012

Sunetto futuríssimo

Juó Bananère

Si a gólere che spuma come o vigno
Tenia gaído inzima a gabeza du Hermeze da Fonsega
Uguali come a garnesega
Na bóca do mio gaxorinho;

Si tambê na gabeza du Pinhéro
Tenia gaído un furacó...
Evviva o Piedadó
Chi non tê dinhêro!

Quanta genti che rí, tarveiz ti scriva
Non iva
Dizé p’ro Hermeze come o Lencaro;

Xirósa griatura!
Bunita gavargatura!!
O gapino stá molto caro.

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 6. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em 1913. ‘Juó Bananère’ é pseudônimo de Alexandre Marcondes Machado.

12 outubro 2012

Aniversário de seis anos

F. Ponce de León

Nesta sexta-feira, 12/10, o Poesia contra a guerra completa seis anos no ar (2006-2012). Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 184.735 visitas haviam sido registradas ao longo desse período.

Nos últimos 12 meses, foram ao ar textos de 111 novos autores, além de outros que já haviam sido publicados antes – ver Aniversário de cinco anos e balanços anteriores. Eis a lista com o nome dos estreantes:

A. Lee McAlester, Alberto Torres, Aldo Capasso, Alfred Tennyson, André Gide, Pe. Antônio Vieira e Aziz Nacib Ab’Sáber;

B. Lopes, Bento José Ferreira Murteira, Bernardino Vieira, Frei Betto e Bolivar Costa;

C. Barry Cox, C. P. Snow, Carl Rogers, Carlos Queiroz Telles, Carvalho Júnior, Casimiro de Abreu, Christopher Hogwood, Claudio Allori, Constance Briscoe e Cristina Scheibe Wolff;

David Attenborough, Décio Pignatari e Dias da Costa;

Eduardo Ritter Aislán e Eric D. Schneider;

Francis Jammes e François Aubral;

G. Tyler Miller Jr., Gilberto Amado e Gordon A. Fox;

Harry F. Harlow, Heinrich Heine, Helena Ortiz, Henri Ghéon, Hermann Weyl, Homero Icaza Sánchez e Humberto de Campos;

Ishmael Beah;

J. O. Ayoade, James J. Kay, James F. Crow, James R. Weeks, Janduhy Finizola, Jean Richepin, Jessica Gurevitch, João Accioli, João Magueijo, John Boyd Orr, John Pekkanen, John Todd, Pe. José de Anchieta, Joseph Townsend, Jostein Gaarder e Júlio Salusse;

Kathleen Raine;

Lamartine F. Mendes, Lina Tâmega Peixoto, Lucia Fonseca, Luís Archer e Luiz Vilela;

Manuel Gusmão, Márcia Cavendish Wanderley, Margaret Sanger, Mark Knopfler, Mark L. Yoseloff, Maria José Aranha de Rezende, Mário Pederneiras, Matilda Betham-Edwards, Maurice Merleau-Ponty, Maurício Tragtenberg, Mauro Barbosa de Almeida, Michael Löwy, Michael R. Rose e Milton Santos;

Neil A. Weiss, Nina Lugovskaia e Nuno Guimarães;

Patricia Morgan, Paul Goodman, Paulo Bentes, Paulo Netho, Pedro Juan Vignale e Peter D. Moore;

Regina de Alencar, Renato Russo, René Descartes, Richard Wagner, Robert Kurson, Ronald Melzack e Rupert Sheldrake;

Salvador Díaz Mirón, Samuel M. Scheiner, Santa Rita Durão, Scott E. Spoolman, Sérgio Godinho, Sidney Siegel, Silva Alvarenga, Stephen H. Schneider e Suzana Nunes;

Teófilo Dias, Thomas S. Kuhn e Thomaz Brandolin;

Vitezslav Nezval;

Willard Van Orman Quine, William F. Cunningham, William Wordsworth e Woodburn Heron;

Xavier Delcourt; e

Yao Feng.

Cabe ainda registrar que no mesmo período foram publicadas imagens de quadros de 35 pintores, a saber: Abbott [Handerson] Thayer, Alexandre Cabanel e Alfred Stevens; Carlos Schwabe, Cecilia Beaux e Colin Campbell Cooper Jr.; Domenico Ghirlandaio; Edmund Tarbell; Frank Weston Benson; George Bellows, Gerard ter Borch, Gustav Wentzel e Gustave Boulanger; Henri-Lucien Doucet, Hugo Simbert e Hugues Merle; Ignacio Barrios; Jacopo del Casentino, Jean Eugène Buland e José Clemente Orozco; Léon Bonnat, Lilla Cabot Perry e Louise Catherine Breslau; Maria Sibylla Merian, Marie Bashkirtseff, Mary Agnes Yerkes e Maurice Prendergast; Pierre-Auguste Cot e Pierre Puvis de Chavannes; Robert Henri; T. C. Steele, Thomas Eakins e Thomas Pollock Anshutz; Walter Gay e William Morris Hunt.

Outro registro digno de nota, desde o aniversário anterior, ocorreu em 9/8, quando foi feita a 1.500ª (milésima quingentésima) postagem; a milésima foi feita em 8/12/2009.

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