27 fevereiro 2013

O método axiomático

A. César de Freitas

Vamos procurar dar uma ideia do que é o método axiomático, ou método axiomático-dedutivo, em matemática. Este método, pode dizer-se, foi introduzido pelos geómetras gregos há 2.500 anos e está na base de todos os desenvolvimentos recentes da matemática e, indirectamente, do desenvolvimento de outras ciências.
[...]

Para estudar e desenvolver qualquer ciência é, obviamente, fundamental conhecer o método usado na construção dessa ciência, e isto é particularmente relevante em matemática, pois sem tal conhecimento não é possível compreender a natureza deste sector científico.

Para obter o mais alto grau possível de clareza e certeza em matemática, um processo ideal seria aquele que permitisse explicar o significado de qualquer expressão que ocorresse e justificar qualquer das suas afirmações. É fácil verificar que este ideal nunca pode ser atingido. De facto, ao explicar o significado de qualquer expressão, há que usar necessariamente outras expressões, e para explicar, por sua vez, o significado destas expressões usam-se novamente outras expressões, e assim sucessivamente. Desenvolve-se, por esta forma, um processo que não tem fim. De modo análogo, no que se refere à obtenção de resultados, para estabelecer a veracidade de determinada proposição há que recorrer a outras proposições, que terão de ser validadas ainda por outras, e assim sucessivamente, o que origina também um processo infinito.

Perante a impossibilidade de atingir o ideal referido, assume-se o compromisso seguinte: para construir uma certa disciplina – aqui disciplina significa sector da matemática – começa-se por separar um reduzido número de expressões cujo significado se considera imediatamente conhecido e que são usadas sem explicar o seu significado – são os chamados termos primitivos, ou termos não definidos; ao mesmo tempo convenciona-se não empregar qualquer outra expressão da disciplina sem primeiro definir o seu significo a partir dos termos primitivos e de expressões a que já tenha sido dado significado – a proposição que, por esta forma, determina o significado de uma expressão diz-se uma definição. Procede-se de modo análogo com os resultados – proposições verdadeiras – da disciplina: alguns deles – os resultados primitivos, ou axiomas – consideram-se válidos (isto é, aceita-se a sua veracidade) e considera-se qualquer outro resultado como verdadeiro se for possível estabelecer a sua veracidade a partir dos axiomas, das definições e de outros resultados já estabelecidos; os resultados que assim se vão obtendo são os teoremas. Para estabelecer os teoremas a partir dos axiomas usam-se certas regras de inferência que constituem o que pode chamar-se a lógica matemática. Obter um resultado pelo processo anterior diz-se fazer a demonstração desse resultado.
[...]

Fonte: Freitas, A. C. 1988. O método axiomático em matemática. In: Leite, M. C. et al. Pensar a ciência. Lisboa, Gradiva.

25 fevereiro 2013

Eu

Chairil Anwar

Se chegar a minha hora,
Não quero que ninguém fique triste,
Nem que saiba tampouco.

Não vale a pena lamentar.

Sou um animal selvagem,
Fora do bando.

Embora a bala me tenha perfurado a pele,
Permaneço enraivecido para atacar de novo.

O ferimento, o veneno, me obriga a fugir,
Fugir...
Até que desapareça tão doloroso acontecimento.

E não mais me preocuparei,
Quero viver mil anos mais.

Fonte: Freire, C. 2004. Babel de poemas: uma antologia multilíngüe. Porto Alegre, L&PM. Poema originalmente publicado em 1943.

23 fevereiro 2013

Canção de agora

Lila Ripoll

Ontem meu peito chorava,
hoje, não.
Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.

Estava ontem sozinha,
tendo a meu lado, sombria,
minha própria companhia.
Hoje, não.

Morreu de tanto morrer
a pena que em mim vivia.
Morreu de tanto esperar.
Eu não.

Relógios do tempo andaram
marcando o tempo em meu rosto.
A vida perdeu seu tempo.
Eu não.

Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.

Fonte: Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1961.

21 fevereiro 2013

Banquete em celebração da paz


Bartholomeus van der Helst (1613-1670). De schuttersmaaltijd in de Voetboog- of St. Jorisdoelen te Amsterdam ter viering van het sluiten van de vrede van Munster, 18 juni 1648. 1648. 

Fonte da foto: Wikipedia.

19 fevereiro 2013

Rêve oublié


Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irreflectido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti

Agora na superfície da luz a procurar a sombra
agora encostado ao vidro a sonhar a terra
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba
e depois matar-te e dar-te vida eterna

Continuar a dar tiros e modificar a posição dos astros
continuar a viver até cristalizar entre neve
continuar a contar a lenda duma princesa sueca
e depois fechar a porta para tremermos de medo

Contar a vida pelos dedos e perdê-los
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada

Abrir-se a janela para entrarem estrelas
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o tecto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha
E no cimo disto tudo uma montanha de ouro

E no fim disto tudo um Azul-de-Prata.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1952.

17 fevereiro 2013

Mors

Emiliano Perneta

Nesse risonho lar,
A dor caiu neste momento,
Como se fosse a chuva, o vento,
O raio, e bate sem cessar...
Bate e estala,
Como uma louca,
De boca em boca,
De sala em sala...
Somente tu, flor delicada,
Como quem veio
Fatigada
De um passeio,
Tombaste ali, silenciosa,
Sobre o sofá,
No abandono,
Pálido rosa,
De um longo sono,
De que ninguém te acordará!

Fonte: Ricieri, F., org. 2008. Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira. SP, Ibep. Poema publicado em livro em 1911.

15 fevereiro 2013

Composição e estrutura da atmosfera

Roger G. Barry & Richard J. Chorley

A atmosfera, vital à vida terrestre, envolve a Terra em uma espessura de apenas 1% do raio do planeta. Ela evoluiu à sua atual forma e composição há pelo menos 400 milhões de anos, quando uma considerável cobertura vegetal já havia se desenvolvido sobre o solo. Em sua base, atmosfera repousa sobre a terra e a superfície do oceano, o qual, atualmente, cobre aproximadamente 71% da superfície do globo. Embora o ar e a água compartilhem de propriedades físicas um tanto semelhantes, eles diferem em um aspecto importante – o ar é compressível, ao passo que a água é basicamente incompressível.
[...]

O ar é uma mistura mecânica de gases, e não um composto químico. O ar seco, em volume, é composto em mais de 99% de nitrogênio e oxigênio [...]. Observações realizadas com foguetes mostram que esses gases são misturados em proporções constantes até aproximadamente 100 km de altitude. Apesar de sua predominância, esses gases são de pouca importância climática.
[...]

Os gases atmosféricos obedecem algumas leis simples em resposta a mudanças na pressão e temperatura. A primeira, a lei de Boyle, postula que, em uma temperatura constante, o volume (V) de uma massa de gás varia inversamente à sua pressão (P), isto é,

P = k1 / V,

(k1 é uma constante); e a segunda, a lei de Charles, diz que, em uma pressão constante, o volume varia diretamente com a temperatura absoluta (T) medida em graus Kelvin [...]:

V = k2 x T.

Essas leis implicam que as três qualidades da pressão, temperatura e volume são completamente interdependentes, de modo que qualquer mudança em uma delas causará uma mudança de compensação em uma ou nas outras duas.
[...]

A atmosfera pode ser dividida de maneira conveniente em diversas camadas horizontais diferenciadas, com base principalmente na temperatura [...]. As evidências dessa estrutura vêm de balões meteorológicos, pesquisas com ondas de rádio e, mais recentemente, de sistemas de sondagem em foguetes e satélites. [...]

Fonte: Barry, R. G. & Chorley, R. J. 2013. Atmosfera, tempo e clima, 6ª edição. Porto Alegre, Bookman.

13 fevereiro 2013

Lembrança


Sopra o nordeste,
O mais grato dos ventos:
Grato a mim porque é cálido, e aos marujos
Porque promete fácil travessia.
Eia, saúda agora
O formoso Garona
E os jardins de Bordéus!
Lá coleia na íngreme ribeira
A vereda, e no rio
Se despenha o regato; mas acima
Olha o par generoso
De álamos e carvalhos.

Ainda me lembro bem e como
As largas copas curva
O olmedo sobre o moinho.
No pátio há uma figueira.
E nos dias feriados,
Pisando o chão sedoso
Passeiam mulheres morenas
No mês de março
Quanto o dia é igual à noite
E nos lentos caminhos
De áureos sonhos pejados
Sopram brisas embaladoras.

Mas estenda-me alguém,
Da escura luz repleto
O aromado copo
Para que eu possa descansar; pois doce
Seria o sono à sombra.
Também não fora bem
Privar-se de mortais
Pensamentos, que bom
É conversar, dizer
O que se sente, ouvir falar de amores,
De coisas passadas.

Porém que é dos amigos? Belarmino
E o companheiro? Muitos
Têm medo de ir à fonte.
É que a riqueza principia
No mar. Ora, eles
Reúnem como pintores
As belezas da terra e não desprezam
A alada guerra não,
Nem desdenham morar anos a fio
Sob o mastro sem folhas, onde à noite
Não há as luminárias da cidade,
Nem dança e música nativa.

Mas hoje aos índios
Foram-se os homens,
Ali, na extremidade
Das montanhas cobertas de vinhas
Donde baixa o Dordonha,
Acaba o rio no Garona
Largo como o Oceano. Todavia
O mar toma e devolve a lembrança.
O amor também demora a olhar debalde.
O que perdura porém, fundam-no os poetas.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema publicado em livro em 1846.

12 fevereiro 2013

Seis anos e quatro meses no ar

F. Ponce de León

Nesta terça-feira, 12/2, o Poesia contra a guerra completa seis anos e quatro meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 195.677 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Setenta e cinco meses no ar – foram aqui publicados pela primeira vez textos dos seguintes autores: Abgar Renault, Eduardo Guimaraens, Félix Guattari, George Dennison, Jane Austen, José Elói Ottoni, Stephen Budiansky e Yahya Kemal. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Aubrey Beardsley, Giuseppe Maria Crespi e John William Waterhouse.

10 fevereiro 2013

A saia de pavão


Aubrey Beardsley (1872-1898). The peacock skirt. 1893.

Fonte da foto: Wikipedia.

08 fevereiro 2013

Cantiga sem regresso

Cassiano Ricardo

Um cacto me pergunta: quando?
O horizonte me interroga: onde?
Só o meu coração é quem sabe...
E este bate, mas não responde.

A paisagem se torna escassa
quanto mais longo é o meu caminho.
O céu é que vai aumentando
as suas tardes de ouro e vinho.

De quando em quando, de onde em onde,
paro: Só pára quem duvida.
O que é rápido vai-se embora.
Passa sem pensar na vida.

O desencontro desta viagem,
por onde passo, fica impresso.
Não há esperança de chegada
e muito menos de regresso.

De quando em quando, de onde em onde,
faço do cacto a minha prece.
Do horizonte faço o meu leito
ensangüentado, se anoitece.

Regressar? já não é possível.
Seguir? já não é necessário.
Resta-me, no último horizonte,
o último cacto solitário.

O destino que me vence
é aquele de que sou oriundo.
Não é amar o que me pertence,
mas o que pertence ao mundo.

A viagem sem querer da vida,
pontilhada de agrestes luas,
me reduziu a duas palavras
espectrais, totalmente nuas:

Uma de pé, como um cacto: quando?
(a que ninguém me responde)
Outra, deitada no chão duro,
como um horizonte: onde?

Fonte: Ricardo, C. 2003. Melhores poemas de Cassiano Ricardo. SP, Global. Poema publicado em livro em 1947.

06 fevereiro 2013

Orgulho e preconceito

Jane Austen

1.
É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de esposa.

Por pouco que os sentimentos ou as opiniões de tal homem sejam conhecidos ao se fixar numa nova localidade, essa verdade se encontra de tal modo impressa nos espíritos das famílias vizinhas que o rapaz é desde logo considerado a propriedade legítima de uma das suas filhas.
[...]

Fonte: Austen, J. 1982 [1813]. Orgulho e preconceito. SP, Abril.

04 fevereiro 2013

A nova escola do futuro

George Dennison

[Apêndice]
Uma das poucas particularidades animadoras nos Estados Unidos, hoje em dia, é o desejo consciente de se ter uma vida comunitária entre certos jovens radicais. Foram-se os dias em que se endereçavam petições a políticos indiferentes e ignorantes. A própria pessoa é que tem de agir e (espera-se) arrastar consigo os “líderes”. O mesmo poder-se-ia dizer de muitos pais que desejam desesperadamente um ambiente humano para os filhos nas escolas. Ouvimos agora mais freqüentemente sobre pais que se reúnem e procuram professores para iniciarem suas próprias pequenas escolas. Não há sinais de que exista um movimento, mas há muitos sinais de que poderia haver um. Uma das importantes considerações a esse respeito é que as necessidades de tais pais provocam profunda reação nos melhores jovens radicais que vêem nas pequenas escolas libertárias, orientadas para a comunidade, um significativo incremento de um mundo melhor. E gostaria, portanto, de escrever sucintamente como se organizou a First Street School a fim de que outros possam ter idéia de como proceder; e direi depois algumas palavras (antes, transcreverei as palavras de outros professores mais experientes) sobre materiais, isto é, sobre como despender os pouquíssimos dólares geralmente à disposição.
[...]

Fonte: Dennison, G. 1976 [1969]. A nova escola do futuro. SP, Ibrasa.

02 fevereiro 2013

Infância


Há muito, arquiteturas corrompidas,
Frustrados amarelos e o carmim
De altas flores à noite se inclinaram
Sobre o peixe cego de um jardim.
Velavam o luar da madrugada
Os panos do varal dependurados;
Usávamos mordaças de metal
Mas os lábios se abriam se beijados.
Coados em noturna claridade,
Na copa, os utensílios da cozinha
Falavam duas vidas diferentes,
Separando da vossa a vida minha.
Meu pai tinha um cavalo e um chicote;
No quintal dava pedra e tangerina;
A noite devolvia o caçador
Com a perna de pau, a carabina.
Doou-me a pedra um dia o seu suplício.
A carapaça dos besouros era dura
Como a vida – contradição poética –
Quando os assassinava por ternura.
Um homem é, primeiro, o pranto, o sal,
O mal, o fel, o sol, o mar – o homem.
Só depois surge a sua infância-texto,
Explicação das aves que o comem.
Só depois antes aparece ao homem.
A morte é antes, feroz lembrança
Do que aconteceu, e nada mais
Aconteceu; o resto é esperança.
O que comigo se passou e passa
É pena que ninguém nunca o explique:
Caminhos de mim para mim, silvados,
Sarçais em que se perde o verde Henrique.
Há comigo, sem dúvida, a aurora,
Alba sangüínea, menstruada aurora,
Marchetada de musgo umedecido,
Fauna e flora, flor e hora, passiflora,

Espaço afeito a meu cansaço, fonte,
Fonte, consoladora dos aflitos,
Rainha do céu, torre de marfim,
Vinho dos bêbados, altar do mito.
Certeza alguma tive muitos anos,
Nem mesmo a de ser sonho de uma cova,
Senão de que das trevas correria
O sangue fresco de uma aurora nova.
Reparte-nos o sol em fantasias
Mas à noite é a alma arrebatada.
A madrugada une corpo e alma
Como o amante unido à sua amada.
O melhor texto li naquele tempo,
Nas paredes, nas pedras, nas pastagens,
No azul do azul lavado pela chuva,
No grito das grutas, na luz do aquário,
No claro-azul desenho das ramagens,
Nas hortaliças do quintal molhado
(Onde também floria a rosa brava)
No topázio do gato, no be-bop
Do pato, na romã banal, na trava
Do caju, no batuque do gambá,
No sol-com-chuva, já quando a manhã
Ia lavar a boca no riacho.
Tudo é ritmo na infância, tudo é riso,
Quando pode ser onde, onde é quando.

A besta era serena e atendia
Pelo suave nome de Suzana.
Em nossa mão à tarde ela comia
O sal e a palha da ternura humana.
O cavalo Joaquim era vermelho
Com duas rosas brancas no abdômen;
À noite o vi comer um girassol;
Era um cavalo estranho feito um homem.
Tínhamos pombas que traziam tardes
Meigas quando voltavam aos pombais;
Voaram para a morte as pombas frágeis
E as tardes não voltaram nunca mais.
Sorria à toa quando o horizonte
Estrangulava o grito do socó
Que procurava a fêmea na campina.
Que vida a minha vida! E ria só.

Que âncora poderosa carregamos
Em nossa noite cega atribulada!
Que força de destino tem a carne
Feita de estrelas turvas e de nada!
Sou restos de um menino que passou.
Sou rastros erradios num caminho
Que não segue, nem volta, que circunda
A escuridão como os braços de um moinho.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema publicado em livro em 1951.

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