30 novembro 2013

Este é o lenço

Cecília Meireles

Este é o lenço de Marília,
pelas suas mãos lavrado,
nem a ouro nem a prata,
somente a ponto cruzado.
Este é o lenço de Marília
para o Amado.

Em cada ponta, um raminho,
preso num laço encarnado;
no meio, um cesto de flores,
por dois pombos transportado.
Não flores de amor-perfeito,
mas de malogrado!

Este é o lenço de Marília:
bem vereis que está manchado:
será do tempo perdido?
será do tempo passado?
Pela ferrugem das horas?
ou por molhado
em águas de algum arroio
singularmente salgado?

Finos azuis e vermelhos
do largo lenço quadrado,
– quem pintou nuvens tão negras
neste pano delicado,
sem dó de flores e de asas
nem do seu recado?

Este é o lenço de Marília,
por vento de amor mandado.
Para viver de suspiros
foi pela sorte fadado:
breves suspiros de amante,
– longos, de degredado!

Este é o lenço de Marília
nele vereis retratado
o destino dos amores
por um lenço atravessado:
que o lenço para os adeuses
e o pranto foi inventado.

Olhai os ramos de flores
de cada lado!
E os tristes pombos, no meio,
com o seu cestinho parado
sobre o tempo, sobre as nuvens
do mau fado!

Onde está Marília, a bela?
E Dirceu, com a lira e o gado?
As altas montanhas duras,
letra a letra, têm contado
sua história aos ternos rios,
que em ouro a têm soletrado...

E as fontes de longe miram
as janelas do sobrado.

Este é o lenço de Marília
para o Amado.

Eis o que resta dos sonhos:
um lenço deixado.

Pombos e flores, presentes.
Mas o resto, arrebatado.

Caiu a folha das árvores,
muita chuva tem gastado
pedras onde houvera lágrimas.
Tudo está mudado.

Este é o lenço de Marília
como foi bordado.
Só nuvens, só muitas nuvens
vêm pousando, têm pousado
entre os desenhos tão finos
de azul e encarnado.
Conta já século e meio
de guardado.

Que amores como este lenço
têm durado,
se este mesmo está durando?
mais que o amor representado?

Fonte: Moriconi, I., org. 2001. Os cem melhores poemas brasileirosdo século. RJ, Objetiva. Poema publicado em livro em 1945.

28 novembro 2013

Jovem camponesa


Alfred [Philippe] Roll (1846-1919). Manda Lamétrie, fermière. 1887.

Fonte da foto: The Athenaeum.

27 novembro 2013

Mau começo

Lemony Snicket

1.
Se vocês se interessam por histórias com final feliz, é melhor ler algum outro livro. Vou avisando, porque este é um livro que não tem de jeito nenhum um final feliz, como também não tem de jeito nenhum um começo feliz, e em que os acontecimentos felizes no miolo da história são pouquíssimos. E isso porque momentos felizes não são os que mais encontramos na vida dos três jovens Baudelaire cuja história está aqui contada. Violet, Klaus e Sunny Baudelaire eram crianças inteligentes, encantadoras e desembaraçadas, com feições bonitas, mas com uma falta de sorte fora do comum, que atraía toda espécie de infortúnio, sofrimento e desespero. Lamento ter que dizer isso a vocês, mas o enredo é assim, fazer o quê?
[...]

Fonte: Snicket, L. 2001. Mau começo. SP, Companhia das Letras. ‘Lemony Snicket’ é pseudônimo de Daniel Handler.

25 novembro 2013

Ars poetica

Myriam Fraga

Poesia é coisa
De mulheres.
Um serviço usual,
Reacender de fogos.

Nas esquinas da morte,
Enterrei a gorda
Placenta enxundiosa;
E caminhei serena
Sobre as brasas
Até o lado de lá
Onde o demônio habita.

Poesia é sempre assim:
Uma alquimia de fetos,
Um lento porejar
De venenos sob a pele.

Poesia é a arte
Da rapina.
Não a caça, propriamente,
Mas sempre nas mãos
Um lampejo de sangue.

Em vão,
Procuro meu destino:
No pássaro esquartejado
A escritura das vísceras.

Poesia como antojos,
Como um ventre crescendo,
A pele esticada
De úteros estalando.

Poesia é esta paixão
Delicada e perversa,
Esta umidade perolada
A escorrer de meu corpo,

Empapando-me as roupas
Como uma água de febre.

Fonte (três primeiras estrofes): Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1996.

24 novembro 2013

Base histórica

Paul J. Kramer & Theodore T. Kozlowski

Embora geralmente se admita que a moderna fisiologia das plantas se iniciou com Sachs por meados do século dezenove, os respectivos primórdios vêm realmente de muito mais longe. Sylva da autoria de John Evelyn, publicado em 1670, numa tentativa de interessar os proprietários ingleses na plantação de mais árvores, foi um dos primeiros livros que tratou das árvores. Embora no seu conteúdo pouco exista sobre a fisiologia das árvores, faz-se referência ao fluxo da seiva no vidoeiro e discutem-se as exigências relativas ao crescimento de várias espécies de árvores. Entre 1668 e 1671 foram publicados vários artigos na Proceedings of the Royal Society of London por Beale, Lister, Ray, Tonge e Willoughby tratando da ascensão da seiva nas árvores, embora se não haja chegado a conclusões satisfatórias. Nehemiah Grew, que publicou importantes trabalhos de anatomia em 1671 e 1682, descreveu com certo detalhe a anatomia dos troncos das árvores e discutiu as prováveis funções das diferentes estruturas. Um outro dos primeiros anatomistas, Malpighi (Anatomes plantarum, 1675), distinguiu o cerne e o borne e observou a formação dos anéis de crescimento anual, se bem que não haja aparentemente compreendido a função do câmbio.

O primeiro trabalho importante de fisiologia das árvores foi feito por Stephen Hales (1727), autor que realizou igualmente as primeiras medições da pressão sanguínea nos animais. Mediu a transpiração e as pressões nas raízes e nos troncos, concluiu que a água sobe pelo lenho e não pela casca e demonstrou que nas árvores não há circulação de seiva comparável à circulação do sangue nos animais. O trabalho de Hales tem importância porque pôs em relevo o método experimental e procurou explicar os processos das plantas em termos de leis físicas.
[...]

Fonte: Kramer, P. J. & Kozlowski, T. T. 1972 [1960]. Fisiologia das árvores. Lisboa, Calouste Gulbenkian.

22 novembro 2013

A árvore da morte

Vesna Krmpotic

A morte cresce em nós como uma árvore:
ramifica-se no corpo, sob a pele estremecem as folhas;
cada vez mais espessa dentro de nós cresce, pouco a pouco nos empurra.
Nós somos sempre menos, ela, sempre mais.

E nos transforma, transforma-nos em si,
a terra do nosso corpo nas flores suas;
em si nos aspira, nos recria, sem voz.
Quanto do nosso ainda permanece em nós?

E assim, sem saber, somos sempre mais ela.
Escuridão ramificada na caixa do nosso corpo.
E quando um vento desconhecido esta cabeleira agita,
pensamos que é a vida cantando.

Fonte: Freire, C. 2004. Babel de poemas: uma antologia multilíngüe. Porto Alegre, L&PM. Poema publicado em livro em 1969.

20 novembro 2013

O velho casarão


Eugen Napoleon Nicolaus (1865-1947). Det gamla slottet. 1893.

Fonte da foto: Wikipedia.

15 novembro 2013

A um moribundo

Florbela Espanca

Não tenhas medo, não! Tranqüilamente,
Como adormece a noite pelo Outono,
Fecha os teus olhos, simples, docemente,
Como, à tarde, uma pomba que tem sono...

A cabeça reclina levemente
E os braços deixa-os ir ao abandono,
Como tombam, arfando, ao sol poente,
As asas de uma pomba que tem sono...

O que há depois? Depois?... O azul dos céus?
Um outro mundo? O eterno nada? Deus?
Um abismo? Um castigo? Uma guarida?

Que importa? Que te importa, ó moribundo?
– Seja o que for, será melhor que o mundo!
Tudo será melhor do que esta vida!...

Fonte: Espanca, F. 1996. Poemas de Florbela Espanca. SP, Martins Fontes. Poema publicado em livro em 1931.

13 novembro 2013

Tentei te dizer o que sentia

Flávio Aguiar

Tentei te dizer o que sentia:
A coisa na garganta
Espalmava mãos verdes para o alto.

Cortando a cerração e a geada,
A rua, recém-úmida, secava em quadro:
Manhã de outono, quando era infância.
Juntos, hoje, somos outros.

Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.

12 novembro 2013

Sete anos e um mês no ar

F. Ponce de León

Nesta terça-feira, 12/11, o Poesia contra a guerra completa sete anos e um mês no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 228.348 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Aniversário de sete anos – foram aqui publicados pela primeira vez textos dos seguintes autores: Caldas Barbosa, Clodovis Boff, Czeslaw Milosz, Fernando Mendes Vianna, Florestan Fernandes, Jonathan Miller e Marc Chagall. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Glennray Tutor, Jean Béraud e Ralph Goings

11 novembro 2013

Nota epistemológica

Clodovis Boff

Eclesiologia é a ‘teologia da igreja’. Teologia não é um discurso religioso qualquer, como a meditação, o sermão ou a profecia. Teologia é um discurso racional, possuindo seu método rigoroso e tendendo ao sistema lógico e coerente. Teologia é uma disciplina: um saber regrado.

As ‘autoridades’ (‘citações’) na Teologia são importantes, mas não definem formalmente a Teologia. Elas constituem os princípios da prática teológica, seu material. A tarefa do teólogo não é simplesmente afirmá-las, registrá-las e organizar com elas sistemas. Seria isso ‘positivismo teológico’. O trabalho teológico consiste em produzir inteligência, compreensão. O teólogo tem de dar conta teoricamente da subsistência da fé, de seu objeto ou de sua visada.

O teólogo como tal não responde senão aos postulados da ratio fidei e não às modas culturais do tempo (tradicionais ou progressistas), nem às posições ideopolíticas de uma situação (reacionárias ou revolucionárias).
[...]

Fonte: Boff, C. 1978. Comunidade eclesial, comunidade política. Petrópolis, Vozes.

10 novembro 2013

Antes da mudança

F. Ponce de León

O armário será
arrancado da parede
e o mofo reencontrará
a luz depois de 40 anos.

Antes disso, encontro
a neta mal-humorada
desfilando pelo apartamento
sem olhar para os lados.

(Foi até a sala
e – diante de telas e
teclados – mergulhou
em seu silencioso vazio.)

Vinda lá de baixo,
a agonia barulhenta
dos automóveis inúteis
atravessa o meu ouvido.

Juntos, também chegam
o vento úmido e quente
e o brilho das folhas
da tarde que me confortam.

04 novembro 2013

Jovem atravessando a rua


Jean Béraud (1849-1935). Jeune femme traversant le boulevard. s/d.

Fonte da foto: Art Renewal Center.

02 novembro 2013

Lundum de cantigas vagas

Caldas Barbosa

Xarapim eu bem estava
Alegre nest’aleluia,
Mas para fazer-me triste
Veio Amor dar-me na cuia.

Não sabe, meu Xarapim,
O que amor me faz passar,
Anda por dentro de mim
De noite e dia a ralar.

Meu Xarapim, já não posso
Aturar mais tanta arenga,
O meu gênio deu à casca
Metido nesta moenga.

Amor comigo é tirano,
Mostra-me um modo bem cru,
Tem-me mexido as entranhas
Qu’estou todo feito angu.

Se visse o meu coração
Por força havia ter dó,
Porque o Amor o tem posto
Mais mole que quingombó.

Tem nhanhá certo nhonhó,
Não temo que me desbanque,
Porque eu sou calda de açúcar
E ele apenas mel do tanque.

Nhanhá cheia de chulices,
Que tantos quindins afeta,
Queima tanto a quem a adora
Como queima a malagueta.

Xarapim tome o exemplo
Dos casos que vê em mim,
Que se amar há de lembrar-se
Do que diz seu Xarapim.

[Estribilho]

Tenha compaixão
Tenha dó de mim,
Porqu’eu lho mereço
Sou seu Xarapim.

Fonte (exceto estribilho): Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 2. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1826.

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