Kathleen E. Gilligan
Nascida em 1830, de pais calvinistas, em Massachusetts, Emily Dickinson é
reconhecida como uma das maiores poetas dos Estados Unidos. Embora seus poemas
frequentemente tratem da morte, ela de fato escreveu sobre muitos assuntos.
Vida, natureza, amor, ciência, céu, inferno, religião, escrita e anseio são
apenas alguns dos tópicos que ela explorou. Em muitos casos, seus poemas
parecem ter uma mensagem direta, detalhada de um jeito que mesmo aqueles que
não estão familiarizados com poesia são capazes de perceber o seu significado.
Outras vezes, a poesia dela pode parecer confusa ou estranha, até mesmo
ao leitor mais atento. Nesses casos, é necessário esquadrinhar as pistas que ela
deixa em suas palavras, de modo a decifrar o significado oculto. Seu uso aparentemente
aleatório de letras iniciais maiúsculas, a ausência de pontuação ou a obsessão
por travessões e o uso incorreto da gramática, tudo foi feito deliberadamente,
às vezes para realçar a mensagem que, de outro modo, seria ignorada. Um poema
assim, de múltiplos significados, é “My Life had stood – a Loaded Gun –”. Para
o leitor comum, o poema personifica uma arma; diversas pistas metafóricas, no
entanto, levam a uma segunda mensagem e significado: uma mulher e suas palavras
têm um poder enorme.
Em toda a sua obra, Dickinson não parece se importar com o que é aceito
socialmente. Ela não foge de assuntos como religião e/ou céu e inferno, talvez os
mais controversos da época e que, por isso mesmo, podem ter sido evitados por
outros autores e poetas (e mulheres, em particular). Em vez de tentar ocultar sua
aversão à religião organizada, ela fez o contrário, ostentando suas concepções.
“Some keep the Sabbath going to church” e “I’m ceded – I’ve stopped being
Theirs –” são exemplos perfeitos disso. Ainda assim, alguns de seus poemas contêm significados ocultos que não
são necessariamente óbvios.
Emily Dickinson raramente publicava seus poemas, não por que tivesse receio
da crítica e sim por ter ficado insatisfeita com a edição que alguns deles sofreram
por parte daqueles a quem ela os enviara. Se não tinha receio da crítica, é
provável que ela simplesmente gostasse de criar poemas de duplo sentido. “My
Life had stood – a Loaded Gun –”, escrito em versos que alternam trímetros
iâmbicos e tetrâmetros, com as estrofes rimando em abcb ou abcd,
é ainda mais interessante pelos seus dois significados.
O tema e o narrador do
poema
O primeiro verso inclui de pronto uma cesura, armando o cenário para o
significado literal do poema em seis estrofes (1). “My life” é o tema do verso,
tornando-se posteriormente o tema do poema (1). Todavia, o narrador, ou a
persona do poema, é de fato a arma, conforme indicado após a falsa terminação do
segundo verso: “The Owner passed – identified –/And carried Me away –” (3-4). O
“Me” é a arma (4). Parafraseando, a arma permaneceu no canto até que o seu
proprietário veio e a levou.
De outro modo, se examinamos mais profundamente estes versos, poderemos conectá-los
a uma mulher e suas palavras. O “My Life” se torna a vida de uma mulher,
enquanto o “Loaded Gun” indica o potencial de perigo e poder que há na mulher.
Todas as quatro palavras iniciam com letra maiúscula e no verso, embora tenha
uma sílaba a mais, “Loaded” praticamente se torna paralela ou equivalente às
demais. A mulher permaneceu “In Corners” até que o seu “Owner”, ou esposo, a
“identified”, ou escolheu, e a “carried” consigo (2-4). Dickinson está dizendo
que as mulheres são poderosas, mas são instrumentos dos homens e frequentemente
não têm outra escolha a não ser esperar pelo casamento.
A segunda estrofe diz o que a arma personificada faz. Dickinson emprega
uma anáfora nos versos iniciais, salientando a mudança que ocorreu. “We” se
refere à arma e seu proprietário, afirmando claramente que eles “roam in
Sovreign Woods –” e “hunt the Doe –”, ou atravessam o bosque e caçam um cervo
(5-6). O verso “every time I speak to Him” alude a quando a arma dá um tiro e
“The Mountains straight reply –” é o som do tiro atingindo as montanhas e
retornando (ecoando) até a arma e seu proprietário (7-8). Este significado é
óbvio, apesar da linguagem figurativa a respeito das montanhas ecoando. Quanto
ao segundo significado, sobre as palavras de uma mulher, há alguns indícios
generosos nessa estrofe. “Sovreign” frequentemente indica alguém de autoridade
e poder supremos e nesse caso se refere aos homens (5).
O “We roam in Sovreign Woods –” alude à presença do esposo e da esposa no
mundo dos homens (5). O “We Hunt the Doe –” foi cuidadosamente formulado por
Dickinson (6). “Doe” poderia facilmente ter sido substituído por “deer” ou
“buck”, mas o escolhido foi a fêmea da espécie (6). Este verso dá a entender
que, no mundo dos homens, as fêmeas ou o poder delas são abatidos. Os homens não
podem permitir que as fêmeas se tornem poderosas demais. Quando a
fêmea “speak for Him”, “The Mountains straight reply –” (7-8). Dickinson está dizendo que quando uma mulher
toma uma decisão que normalmente é do homem, ou se aventura a escrever algo
(aventurando-se em um território que os homens têm como deles), ela nada
consegue. Poderíamos ler estes versos como se o caminho da mulher fosse
bloqueado por uma parede (“Mountains”) ou como se ela fosse imediatamente
recebida com críticas (“straight reply”) (8).
As duas interpretações prosseguem na terceira estrofe. O “smile” e a
“light” que “Upon the Valley glow –” indicam a faísca e o clarão de quando a
arma dispara (9-10). “It is as a Vesuvian face/Had let it’s pleasure through”
compara a faísca e o clarão a uma explosão súbita e violenta, como o Vesúvio em
erupção (11-12). O significado da estrofe muda se a persona é uma mulher. O
“smile” e o “cordial light” poderiam ser a máscara educada que uma mulher deve
usar no mundo dos homens, ou mesmo a aparência amável de sua poesia (9). A
“Vesuvian face” deixando “its pleasure through –”, contudo, pode ser uma alusão
a uma mulher explodindo por meio da escrita, deixando passar as suas palavras (11-12).
Um vesuviano era também um fósforo de queima lenta usado para acender charutos
e Dickinson poderia querer indicar que, uma vez liberado, o poder das palavras
de uma mulher não desvanece facilmente (“vesuvian”).
A segunda metade do
poema
Retornando à história da arma, a quarta estrofe conta o que a arma faz ao
fim do dia. Nessa estrofe do poema, mais do que em qualquer outra, Dickinson usa
aliteração, tirando partido de sons repetidos em “Day done”, “My Master’s” e
“Duck’s Deep”. No primeiro verso da estrofe, ela também flerta com a linguagem
e a estrutura, usando tanto “Night” como “Day” (13). “I guard my Master’s
Head –/’Tis better than the Eider Duck’s/Deep Pillow – to have shared –” diz
respeito à disposição da arma à noite (14-16).
A arma está acima da “Master’s Head”, talvez na parede, convencida de que
este é o melhor lugar para estar, contrapondo-se ao travesseiro de “Eider
Duck’s” que eles poderiam “have shared” (14-16). O significado alternativo
mostra que o esposo da mulher é também o seu “Master” (14). “’Tis better than
the Eider Duck’s/Deep Pillow – to have shared –” significa que a mulher está deixando
a suavidade da vida feminina e até, talvez, de compartilhar o leito com seu
esposo (15-16).
“To foe of His – I’m deadly foe –/None stir the second time –” é fácil de
compreender, conquanto acreditemos que a arma seja o narrador (17-18). A arma
protege o seu proprietário de qualquer “foe” (17). Ninguém se levanta uma
“second time”, pois todos estão mortos (18). Por que eles estão mortos? Porque
a arma lançou um “Yellow Eye”, que é a faísca no momento em que a arma dispara
e talvez a própria bala, e “an emphatic Thumb”, ou o dedo que puxa o gatilho da
arma, permitindo que ela atire (19-20). No sentido alternativo dessa estrofe, a
mulher declara “To foe of His – I’m deadly foe” (17).
O travessão está no meio do verso, o que desvirtua o significado. Em vez
de significar que a mulher é mortífera ao “The foe of His”, é como se ela quisesse
dizer ao “The foe of His” e a todos os demais que “I’m deadly foe” (17). Ela é
mortífera em razão do poder que suas palavras carregam e estas, uma vez usadas
como armamento, “None stir the second time” (18). O “Yellow Eye” poderia se
referir ao ‘olho ictérico’, quando algo é examinado com olhar negativo ou
crítico (19). O “emphatic Thumb” poderia querer se referir a tomar uma decisão
sobre algo (polegares para cima ou polegares para baixo), expressando um ponto
de vista de modo convincente (20). Juntos, “Yellow Eye” e “emphatic Thumb”, ou
as palavras críticas da mulher a respeito de algo, são irrefreáveis.
A estrofe final, embora em um tom diferente do restante da peça, preserva
o duplo sentido. Dickinson usa de aliteração quando a arma afirma que “may
longer live” e, aparentemente perturbada com a sua longevidade, insiste que “He
longer must – than I”, ou que o seu proprietário deve viver mais tempo (21-22).
A arma parece ansiar a morte que futuramente irá chegar ao proprietário, mas que
nunca irá apanhá-la, pois não é humana. Nos dois versos finais, a arma
praticamente expressa sua aversão ao seu ofício e, mais uma vez, há uma
insinuação de anseio pelo que ela nunca terá: “For I have but the power to
kill,/Without – the power to die –” (23-24).
Resistindo ao teste do
tempo
No fim das contas, a arma era apenas um instrumento a ser usado por seu proprietário
e nunca será capaz de encontrar a paz que ele terá. Nessa estrofe do poema de
Dickinson, o significado relativo à mulher é um pouco diferente. O “Though I
than He – may longer live/He longer must – than I” significa que ela percebe
que lhe é possível viver mais tempo, porém, fisicamente, ele deverá viver mais do
que ela (21-22).
A razão disso é que ela tem “the power to kill,/Without – the power to
die – ”, no sentido de que suas palavras e poesia têm o poder de matar (ou
brigar ou discutir) e não podem ser refreadas ou recolhidas, uma vez que ela as
coloque em circulação; portanto, visto que as suas palavras serão imortais, é
necessário que os homens vivam fisicamente mais do que ela, de modo que as suas
palavras estarão continuamente ao redor deles (23-24).
Poesia raramente significa o que parece significar. Há, muitas vezes, um
significado oculto ou duplo nas palavras aparentemente inocentes que são
apresentadas ao público. O lugar perfeito para esconder qualquer coisa é à
vista de todos, seja um objeto proibido ou um assunto tabu. Como dito acima,
Dickinson não tinha problema de lidar com temas difíceis, como céu, inferno ou
religião, e, portanto, os poemas não contêm significados ocultos por que ela
tinha receio da crítica.
A rigor, isso provavelmente se deu pelo simples fato de que ela apreciava
a experiência de empilhar significados, uns sobre os outros. Seus poemas podem
ser comparados a escavações arqueológicas. Há uma camada superficial, cavando-se
um pouco, porém, encontra-se outra camada. No caso de “My Life had stood – a
Loaded Gun –”, o significado superficial é a respeito de uma arma
personificada, porém, indo um pouco mais fundo no texto, as concepções de
Dickinson sobre as mulheres e a poesia talvez se revelem: uma mulher e suas
palavras são poderosas e, no mundo dos homens, elas resistirão ao teste do
tempo.
*
Notas do tradutor
[1] Eis o poema original:
My Life had stood – a Loaded Gun
Emily Dickinson
My Life had stood – a
Loaded Gun –
In Corners – till a
Day
The Owner passed –
Identified –
And carried Me away –
And now We roam in
Sovreign Woods –
And now We hunt the
Doe –
And every time I
speak for Him –
The Mountains
straight reply –
And do I smile, such
cordial light
Upon the Valley glow
–
It is as a Vesuvian
face
Had let it’s pleasure
through –
And when at Night –
Our good Day done –
I guard My Master’s
Head –
’Tis better than the
Eider-Duck’s
Deep Pillow - to have
shared –
To foe of His – I’m
deadly foe –
None stir the second
time –
On whom I lay a
Yellow Eye –
Or an emphatic Thumb
–
Though I than He –
may longer live
He longer must – than
I –
For I have but the
power to kill,
Without – the power
to die –
[2] Ao menos seis versões em português de “My Life had stood – a Loaded
Gun –“ já foram publicadas no país, em traduções de (o asterisco indica as
versões a que eu tive acesso; entre parêntesis, editora/revista e ano de
publicação): Vera das Neves Pedroso (Lidador, 1965); Aila de Oliveira Gomes (T.
A. Queiroz & Edusp, 1985); Ivo Bender (Mercado Aberto, 2002; L&PM,
2007); José Lira* (Iluminuras, 2006; ver aqui);
Antônio Carlos Queiroz (Retrato do Brasil,
2009) e Augusto de Campos* (Cult,
2014). Um levantamento dos poemas de Emily Dickinson publicados em português (no
país e alhures) pode ser consultado no sítio da Unesp (São José do Rio Preto,
SP), aqui).
[3] Registro a seguir a minha proposta de tradução, a saber:
Minha Vida
estancou – uma Arma Carregada
Emily Dickinson
Minha Vida estancou – uma Arma Carregada –
Pelos Cantos – até um Dia
O Proprietário passou – Reconheceu-me –
E para longe Me levou–
E agora Nós vagamos por Bosques Soberanos –
E agora Nós caçamos a Corça –
E toda vez que por Ele eu falo –
As Montanhas de pronto respondem –
E eu sorrio, tamanha luz cordial
Sobre o Vale irradia –
É como um rosto Vesuviano
Que expressa o prazer –
E quando à Noite – Nosso bom Dia feito –
Eu velo a Cabeça do Meu Mestre –
Isto é melhor que o Fundo Travesseiro de
Penas de Pato – ter de partilhar –
Ao inimigo Dele – sou inimigo mortífero –
Nenhum se ergue a segunda vez –
Sobre quem eu lanço um Olho Amarelo –
Ou um Polegar enfático –
Embora mais do que Ele – eu possa viver
Ele deve viver mais – do que eu –
Pois eu tenho apenas o poder de matar,
Sem – o poder de morrer –
Fonte: artigo original, “Emily Dickinson’s ‘My Life had stood – a
Loaded Gun –’: revealing the power of a woman’s words”. publicado na revista
eletrônica Student Pulse (atual Inquiries Journal), em 2011 (v.
3, n. 9). Tradução e intertítulos: F. Ponce de León.