31 maio 2011

A vingança de Cambises

Júlia Cortines

Disseram – diz o rei a Prexaspes – que o vinho
Sobe presto à cabeça em denso torvelinho
De vapores, e a febre, o delírio produz,
Que irradiam no olhar uma sinistra luz.
Ou, pouco a pouco, pelo organismo se entorna,
Qual onda de torpor, voluptuosa e morna?
Disseram; e tu tens a ousadia de vir
Em face de teu rei palavras repetir
De estultos, e afirmar que o vinho afrouxa braços
Que fazem, como os meus, os reinos em pedaços?
Ao contrário; verás; (e bêbado entesou
No arco a flecha) porém é preciso que aponte
Um alvo; – o coração de teu filho.
E atirou,
Da criança, que nele o doce olhar fitava,
– Olhar que o etéreo azul do infinito espelhava, –
Varando lado a lado o peito e o coração.
E o pai disse, curvando humildemente a fronte:
– “Nem de Apolo é mais firme e mais certeira a mão.”

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 4. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1894.

29 maio 2011

Hurricane

Bob Dylan & Jacques Levy

Pistol shots ring out in the barroom night
Enter Patty Valentine from the upper hall.
She sees a bartender in a pool of blood,
Cries out, “My God, they killed them all!”
Here comes the story of the Hurricane,
The man the authorities came to blame
For somethin’ that he never done.
Put in a prison cell, but one time he could’ve been
The champion of the world.

Three bodies lyin’ there does Patty see
And another man named Bello movin’ around mysteriously.
“I didn’t do it”, he says, and he throws up his hands
“I was only robbin’ the register, I hope you understand.
I saw them leavin’”, he says, and he stops
“One of us had better call up the cops”.
And so Patty calls the cops
And they arrive on the scene with their red lights flashin’
In the hot New Jersey night.

Meanwhile, far away in another part of town
Rubin Carter and a couple of friends are drivin’ around.
Number one contender for the middleweight crown
Had no idea what kinda shit was about to go down
When a cop pulled him over to the side of the road
Just like the time before and the time before that.
In Paterson that’s just the way things go.
If you’re black you might as well not show up on the street
’Less you wanna draw the heat.

Alfred Bello had a partner and he had a rap for the cops.
Him and Arthur Dexter Bradley were just out prowlin’ around
He said, “I saw two men runnin’ out, they looked like middleweights
They jumped into a white car with out-of-state plates”.
And Miss Patty Valentine just nodded her head.
Cop said, “Wait a minute, boys, this one’s not dead”
So they took him to the infirmary
And though this man could hardly see
They told him that he could identify the guilty men.

Four in the mornin’ and they haul Rubin in,
Take him to the hospital and they bring him upstairs.
The wounded man looks up through his one dyin’ eye
Says, “Wha’d you bring him in here for? He ain’t the guy!”
Yes, here’s the story of the Hurricane,
The man the authorities came to blame
For somethin’ that he never done.
Put in a prison cell, but one time he could-a been
The champion of the world.

Four months later, the ghettos are in flame,
Rubin’s in South America, fightin’ for his name
While Arthur Dexter Bradley’s still in the robbery game
And the cops are puttin’ the screws to him,
Lookin’ for somebody to blame.
“Remember that murder that happened in a bar?”
“Remember you said you saw the getaway car?”
“You think you’d like to play ball with the law?”
“Think it might-a been that fighter
That you saw runnin’ that night?”
“Don’t forget that you are white”.

Arthur Dexter Bradley said, “I’m really not sure”.
Cops said, “A boy like you could use a break
We got you for the motel job
And we’re talkin’ to your friend Bello
Now you don’t wanta have to go back to jail,
Be a nice fellow.
You’ll be doin’ society a favor.
That sonofabitch is brave and getting’ braver.
We want to put his ass in stir
We want to pin this triple murder on him
He ain’t no Gentleman Jim”.

Rubin could take a man out with just one punch
But he never did like to talk about it all that much.
It’s my work, he’d say, and I do it for a pay
And when it’s over I’d just as soon go on my way
Up to some paradise
Where the trout streams flow and the air is nice
And ride a horse along the trail.
But then they took him to the jailhouse
Where they try to turn a man into a mouse.

All of Rubin’s cards were marked in advance
The trial was a pig-circus, he never had a chance.
The judge made Rubin’s witnesses
Drunkards from the slums
To the white folks who watched
He was a revolutionary bum
And to the black folks he was just a crazy nigger.
No one doubted that he pulled the trigger.
And though they could not produce the gun,
The DA said he was the one who did the deed
And the all-white jury agreed.

Rubin Carter was falsely tried
The crime was murder “one”,
Guess who testified?
Bello and Bradley and they both baldly lied
And the newspapers, they all went along for the ride.
How can the life of such a man
Be in the palm of some fool’s hand?
To see him obviously framed
Couldn’t help but make me feel ashamed
To live in a land
Where justice is a game.

Now all the criminals in their coats and their ties
Are free to drink martinis and watch the sun rise
While Rubin sits like Buddha in a ten-foot cell
An innocent man in a living hell.
That’s the story of the Hurricane,
But it won’t be over till they clear his name
And give him back the time he’s done.
Put in a prison cell, but one time he could-a been
The champion of the world.

Fontes: álbum Desire (1976), de Bob Dylan, e o livro A estrada revisitada (1992), de Isabel Bing.

27 maio 2011

Maré de azar


Frederick McCubbin (1855-1917). Down on his luck. 1889.

Fonte da foto: Art Renewal Center.

25 maio 2011

Carvão mineral e petróleo

Emico Okuno, Iberê L. Caldas & Cecil Chow

Um exame detalhado de um pedaço de carvão mostra que ele contém pedaços de madeira, raízes e folhas. Em terra seca, as plantas mortas, constituídas principalmente de carbono, hidrogênio e oxigênio, se decompõem pela combinação com o oxigênio da atmosfera para formar dióxido de carbono e água, isto é, apodrecem. Em locais pantanosos, a matéria morta é coberta pela água, ficando portanto protegida contra a ação oxidante do ar. Nesse caso, a planta é atacada por bactérias anaeróbicas (bactérias que não precisam de oxigênio livre para sobreviver), há eliminação de hidrogênio e de oxigênio, aumentando gradualmente a concentração do carbono. O produto final é uma substância molhada (cerca de 90% de água), rica em carbono, chamada turfa. Com o passar do tempo, a turfa é coberta por areia, barro e lodo. Os sedimentos comprimem a turfa, forçando os gases para fora e aumentando mais ainda a proporção de carbono. Dessa forma, a turfa é convertida em linhita ou carvão marrom. Com o aumento das camadas sedimentares e a conseqüente compressão, a linhita se transforma em carvão betuminoso ou carvão mole. Devido ao aumento da temperatura e da pressão das camadas da crosta terrestre, a água e os compostos voláteis são removidos, transformando o carvão betuminoso em antracito, o carvão duro.
[...]

O processo pelo qual o petróleo (ou simplesmente óleo) e o gás natural se formam é mais complexo que o da formação do carvão. O óleo consiste basicamente de materiais biológicos, incluindo organismos marinhos, em grande parte plantas que vivem próximo à superfície da água. Quando esses organismos morrem e se acumulam em bacias onde a água fica estagnada, eles são protegidos contra a oxidação. Como no caso da formação do carvão, o material orgânico é decomposto por bactérias. Oxigênio, nitrogênio e outros elementos são eliminados, permanecendo principalmente o carbono e o hidrogênio. Esse material é enterrado por sedimentos que destroem as bactérias. O aumento das camadas de sedimentação fornece calor e pressão que convertem os hidrocarbonetos em óleo líquido, sólido e gás natural. Com o contínuo depósito de sedimentos, a pressão aumenta e força o deslocamento do óleo líquido e do gás para regiões vizinhas porosas, por exemplo, regiões arenosas. Gradualmente, o gás e o óleo migram através da areia até a superfície ou até atingir um teto impermeável de rochas argilosas.
[...]

Fonte: Okuno, E; Caldas, I. L. & Chow, C. 1982. Física para ciências biológicas e biomédicas. SP, Harbra.

23 maio 2011

Elegia a Jacques Roumain no céu de Haiti

Nicolás Guillén

Grave a voz possuía.
Era triste, era forte.
De lua e de aço. O porte
Todo ressoava e ardia.

Envolto em luz seguia.
Mas caiu. Desta sorte
Falou: – “É a morte.” A morte!
(Ainda era sonho o dia.)

Viste passar a sua
Fronte morena, a suave
Sombra, haitiano, viste?

Homem de aço e de lua.
Possuía a voz grave.
Era severo e triste.

Aí, bem sei, bem sabemos que está morto!
Morto. Confiadamente morto. Morto
Já sem remédio. Morto
Como se morre em toda parte. Morto.
De morte natural. Tenaz e morto.
Morto de terra. Morto
Com o morto riso de caveira. Morto
Deitado, longo, seco, puro... Morto
Sem roupa nem mortalha. Morto morto,
Desfeito o corpo morto:
Lisamente, singelamente morto!
Sem embargo, recordo.
Recordo, por exemplo,
Sua sobrecasaca
De prócer quotidiano:
A de Paris
De fumo gris,
De persistente gris
A de Paris,
E outra, de fumo azul, do trajo haitiano.
Recordo os seus sapatos
Que ainda eram franceses,
Certa calça listada que trazia
Numa fotografia
Como cônsul no México.
Recordo
Seu cigarro policial
De fogo perspicaz;
Recordo a sua escrita
De letras desligadas,
Independentes, tímidas,
Duras, de pé, pendidas para a esquerda;
A caneta-tinteiro curta, preta,
Grossa,
“Pelikan”,
De guta-percha e ouro;
Recordo
Seu cinto de fivela
Com duas letras.
(Ou uma? Não sei... Me falha
Neste ponto um pouco a memória:
Era uma só talvez, um grande R,
Mas não estou seguro...)
Recordo
Suas gravatas e meias e lenços;
Recordo
Seu porta-chaves,
Seus livros,
Sua carteira
(Uma carteira de Ministro,
Ambiciosa, de couro.)
Recordo
Seus poemas inéditos
Seus escritos polêmicos
E os seus apontamentos sobre negros...
Talvez também tudo isso haja morrido,
Ou, quando mais, são coisas de museu
Familiar. Conserva-as tu, Nicole?
Sim, conserva-as. Estão
Por aí... Guardo-as, sim, quero dizer
Que as recordo.

E o resto, o resto, Jacques
De que tanto falávamos?
Aí, o resto não muda, isso não muda!
Aí está, permanece
Como uma grande página de pedra
Que todos lêem, lêem, lêem;
Como uma grande página
Sabida e ressabida
Que todos dizem de memória,
Que ninguém dobra nem arranca
Desse tremendo livro aberto haitiano,
Desse tremendo livro aberto
Por essa mesma haitiana página sangrenta,
Por essa mesma única aberta página
Sinistra haitiana faz trezentos anos!

Sangue nas espáduas do negro inicial.
Sangue no pulmão de Louverture.
Sangue nas mãos de Leclerc,
Tremulosas de febre.
Sangue no látego de Rochambeau,
Com os seus cães sedentos.
Sangue no Pont-Rouge.
Sangue na Citadelle.
Sangue na bota dos ianques.
Sangue no punhal de Trujillo.
Sangue no mar, no céu, na montanha.
Sangue nos rios, nas árvores.
Sangue no ar.
(Esquecia dizer que justamente
Jacques, a personagem
Deste poema, murmurava às vezes
– O Haiti é uma esponja
Empapada de sangue!)
Quem espremerá essa esponja, essa insaciável
Esponja? Talvez ele,
Com seus dedos de sonho. Talvez ele,
Com seu poder celeste...
Talvez!

Ele, Monsieur Jacques Roumain,
Falando em nome
Do negro Imperador,
Do negro Rei,
Do negro Presidente,
E de todos os negros
Que nunca foram mais que
Jean
Pierre
Victor
Candide
Jules
Charles
Stephen
Raymond
André...

Negros de pé no chão no Champs de Mars,
Ou no morno mulato caminho de Pétionville,
Ou mais acima, no já frio branco caminho de Kenskoff:
Negros ainda não instalados,
Sombras zumbis,
Lentos fantasmas do café, da cana,
Carne febril, dilacerante,
Primária, pantanosa, vegetal!
Ele vai espremer a esponja.

Há de então ver o sol duro antilhano
Qual se estalasse telúrica veia,
Enrubescer o pávido oceano.
E flutuar sem baraço e sem cadeia
Colos puros em turba, num queixume
De corpos relembrando a dura peia!
Móvel incêndio de afiado lume
Virá lamber com a língua prometida
Desde a planície até o nublado cume.
Oh aurora dos tempos, incendida!
Oh mar de sangue, mar que desbordou!
O passado passado não passou.
A nova vida espera nova vida.

Ora bem: a coisa é esta, Jacques nunca esquecido.
Não porque hajas morrido,
Não porque te levaram, melhor dito,
Não porque te fecharam o caminho,
Parou ninguém, ninguém parou, longínquo amigo.
Muitas vezes faz frio,
É certo. Alguma vez um estampido
Nos ensurdece, e sobrevêm horas de ar líquido,
Lacrimosas, de estertor e gemido.
De quando em quando logra um rio
Destroçar uma ponte... Mas de cada suspiro
Nasce um novo menino.
Todos os dias pare a noite um sol maciço
E otimista, que fecunda o baldio.
Mói sua dura colheita o moinho.
Levanta-se, cresce a espiga do trigo.
Cobrem-se de rubras bandeiras os hinos.
Olhai! Chegam envoltos em pó e farrapos os primeiros vencidos!
O dia inicial inicia a grande luz de verão.
Venha o meu morto, grave, suave, haitiano irmão,
E erga outra vez, feita punho tempestuoso, a mão.
Cantemos juntos, amigo, a nossa fraterna canção.

Eis que floresce a velha lança.
Arde em nossas mãos a esperança.
A aurora é lenta, mas avança.

Cantemos em face dos séculos frescos recém-despertados,
Sob a estrela madura suspensa na noturna fragrância,
E ao longo de todos os caminhos rasgados
Na distância!
Cantemos, pois, querido,
Pisando o látego caído
Do punho do senhor vencido,
Um canto que ninguém tenha cantado:
(Eis que floresce a velha lança.)
Úmida canção estendida
(Arde em nossas mãos a esperança.)
De tua garganta em sombras, do outro lado da vida,
(A aurora é lenta, mas avança.)
Ao meu terrestre clarim de cobre ensangüentado!

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema publicado em livro em 1958.

21 maio 2011

Metempsicose

Antero de Quental

Ausentes filhas do prazer, dizei-me!
Vossos sonhos quais são, depois da orgia?
Acaso nunca a imagem fugidia
Do que fostes, em vós se agita e freme?

Noutra vida e outra esfera, aonde geme
Outro vento, e se acende um outro dia,
Que corpo tínheis? que matéria fria
Vossa alma incendiou, com fogo estreme?

Vós fostes nas florestas bravas feras,
Arrastando, leoas ou panteras,
De dentadas de amor um corpo exangue...

Mordei pois esta carne palpitante,
Feras feitas de gaze flutuante...
Lobas! leoas! sim, bebei meu sangue!

Fonte: Quental, A. 2004. Melhores poemas. SP, Global. Poema publicado em livro em 1872.

19 maio 2011

Rua inglesa


Natalia Chernogolova (1954-). Beatty Drive, Congleton. 2005.

Fonte: Wikipedia.

17 maio 2011

Cromossomos sexuais

M. J. D. White

Naqueles organismos em que os dois sexos se acham reunidos em um só indivíduo, como nos animais hermafroditas (isto é, fascíolas e tênias, minhocas e caracóis) e na maioria das espécies de vegetais superiores, não existem cromossomos sexuais especiais no cariótipo. A formação das células germinativas masculinas e femininas (ou dos grãos de pólen e magásporos, no caso das plantas) ocorre em tais casos através de um processo de diferenciação histológica e os tecidos germinativos masculinos e femininos diferem da mesma maneira que, por exemplo, os tecidos do rim e do fígado em um mesmo indivíduo.

Por outro lado, nas espécies bissexuais (dióicas), em geral estão presentes mecanismos genéticos de determinação do sexo. Eles, porém, são de vários tipos diferentes. No verme marinho Dinophilus, foi relatado um mecanismo citoplasmático de determinação sexual (isto é, um sistema em que há dois tipos de ovos que diferem quanto ao citoplasma e um tipo origina o macho e o outro a fêmea); em certas cochonilhas, ainda que os sexos difiram quanto à constituição cromossômica, o mecanismo primário da determinação sexual pode depender de um evento citoplasmático. No verme marinho Bonellia, fatores ambientais (um ‘hormônio’ fabricado pela [probóscide] da fêmea) desempenha um papel principal na determinação do sexo, porém, é provável que também atuem fatores genéticos. A situação nos insetos da ordem [Hymenoptera] e em alguns outros grupos em que os machos são haplóides e se originam de ovos não fertilizados (determinação sexual haplodiplóide) será tratada o próximo capítulo.

A existência de um mecanismo genético de determinação do sexo não implica necessariamente na presença de cromossomos sexuais distinguíveis, embora isso usualmente ocorra. O tipo mais comum de mecanismo de determinação do sexo é aquele em que um sexo é heterozigoto (‘heterogamético’) quanto a certos loci gênicos, em relação aos quais o outro sexo é homozigoto (‘homogamético’). [...]

Fonte: White, M. J. D. 1977 [1973]. Os cromossomos. SP, Nacional & Edusp.

15 maio 2011

Reencontro

Luís Filipe de Castro Mendes

E foi teu corpo ou tu quem encontrei?
Que lembrámos, sem ver, entre sorrisos?
A memória dos versos que te dei,
o feixe de outros lumes mais antigos?

Não foi meu corpo que nos versos dei
nem os gestos de amor que me sobraram:
porque era só do tempo a nossa lei
e há rugas nas carícias que ficaram.

Não te encontrei a ti nem à lembrança:
mas o que se fez corpo neste encontro
foi desejo ou memória? Como dança
que se larga e concentra num só ponto

diz-me o teu corpo que nenhum desejo
deixou de arder no lume em que te vejo.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1998.

13 maio 2011

Já são 55 meses no ar

F. Ponce de León

Nessa quinta-feira, 12/5, o Poesia contra a guerra completou quatro anos e sete meses no ar. Ao fim do expediente de anteontem, o contador instalado no blogue indicava que foram feitas 130.662 visitas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Quatro anos e meio no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: André Gill, Bernardo Vilhena, Charles-Marie de La Condamine, José Jorge Letria, June Goodfield, Leon Festinger, Nick Cave e Raimundo Correia. Além de outros autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Childe Hassam, Fernando Fader e John William Godward.

10 maio 2011

Quem sou eu?

Ferreira Gullar

Quem sou eu dentro da minha boca?
Quem sou eu nos meus dentes
detrás dos dentes
na língua que se move
presa no fundo da garganta? que nome tenho
na escuridão do esôfago?
no estômago
na química
dos intestinos?

Quem em mim secreta
saliva? excreta
fezes?
quem embranquece em meus cabelos
e vira pus nas gengivas?

Quem sou eu
ao lado da Biblioteca Nacional
tão frágil, meu deus, na noite
sob as estrelas?
e no entanto impávido!
(a mexer no armário de roupas
num apartamento da rua Tenente Possolo
em 1952
vivo a história do homem).

J’irai sous la terre
et toi, tu marcheras dans le soleil.

Tudo o que sobrará de mim
é papel impresso.
Com um pouco de manhã
engastado nas sílabas, é certo, mas
que é isso
em comparação com meu corpo real? meu
corpo
onde a alegria é possível
se mãos lhe tocam os pêlos
se uma boca o beija
o saliva
o chupa com dois olhos brilhantes?

E sou então
praia vento floresta
resposta sem pergunta
o eixo do corpo
na saliva dourada
giro
e giramos
com o verão que se estende por todo o hemisfério sul.

Como dizer então: pouco
me importa a morte?
E sobretudo se existem as histórias em quadrinhos
e os programas de televisão
que continuarão a passar noite após noite
no recesso dos lares
numa terça-feira que antecede à quarta
numa quinta-feira que antecede à sexta
ou num sábado
ou num domingo.
Como dizer
pouco me importa?

Fonte: Gullar, F. 1991 [1980]. Toda poesia, 5ª edição. RJ, José Olympio.

08 maio 2011

Brincando de Deus

June Goodfield

6.
[...]
Desde 1971 um jovem pesquisador de câncer, Robert [Elliot] Pollack, já havia expressado particularmente ao Dr. Paul Berg a sua preocupação a respeito do DNA recombinante, mas a parte pública da história começa realmente em 1973. Em janeiro desse ano foi realizada uma reunião de um pequeno grupo de cientistas no Massachusetts Institute of Technology (MIT), reunião essa que é agora chamada pelos cientistas de Asimolar I. Segundo as palavras de Berg, nessa ocasião ficou reconhecido “quão pouco nós realmente sabemos”. Medidas mais concretas começaram a ser tomadas mais tarde, nesse mesmo ano, conforme detalhes fornecidos a mim pela Dra. Maxine Singer, chefe do Departamento de Ácido Nucléico e Enzimas, do Laboratório de Bioquímica do Instituto Nacional do Câncer, e uma das principais organizadoras da Conferência de Asilomar. Todos os anos é realizada uma convenção, conhecida pelo nome de Gordon Conference. Maxine Singer foi um dos presidentes na reunião de 1973, durante a qual foram descritas pela primeira vez as experiências de recombinação. Foi um momento muito dramático. As pessoas perceberam logo que maravilhoso instrumento seria esse novo processo, e ouviam tudo, fascinadas. “Meu Deus”, comentou uma delas, “a gente vai poder combinar qualquer coisa que quiser”. Para alguns as perspectivas eram fantásticas, mas outros não tardaram a mostrar sua preocupação. Os problemas éticos e morais criados pela decisão de se introduzirem qualidades desejáveis em organismos complexos, ou de se realizarem experimentos que poderiam ameaçar a segurança de outros, tornaram-se imediatamente aparentes para muitos cientistas; e naqueles tempos de grande militância social não poderiam ser ignorados.

Quando a conferência chegou ao fim, várias pessoas tinham procurado Maxine Singer e o outro presidente, Dieter Soll, da Universidade de Yale, a fim de expressarem suas objeções, tendo ficado decidido, após alguma discussão, que na manhã da última sessão seriam reservados quinze minutos para comentários. Ao mesmo tempo, foram incitados a discutir o assunto à noite, na ‘hora do bar’. No dia seguinte, ao se darem conta de que o tempo era curto demais, os participantes da convenção decidiram por votação – com poucas vozes discordantes – que seria enviada uma carta à Academia Nacional de Ciências chamando atenção para o fato de ter sido levantada uma questão que devia ser estudada.

Houve um desentendimento um pouco mais sério, entretanto, com a sugestão seguinte, que era de ‘ir ao público’ e enviar a carta para a revista Science, também. Nessa fase – e na verdade em qualquer outra – muitos dos cientistas já estavam em guarda contra o envolvimento público. Para eles, ‘ir a público’ era – e ainda é – um convite a manifestações hostis à Ciência; na sua opinião, há algumas coisas que devem ser feitas em silêncio. Atendendo, porém, à vontade da maioria, a carta foi publicada em Science, na edição de 21 de [setembro] de 1973.
[...]

Fonte: Goodfield, J. 1981. Brincando de Deus. BH & SP, Itatiaia & Edusp.

06 maio 2011

Curral de cabras


Fernando Fader (1882-1935). Corral de cabras. 1926.

Fonte: Wikipedia.

04 maio 2011

Telma

Bernardo Vilhena

Eu sou o sonho dos homens
a eternidade
Sou a nuvem que passa
a poeira que levanta
a fumaça dos cigarros

Se me quiser vem me pegar no vôo
pra me largar bem rápido

Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.

02 maio 2011

Plena nudez

Raimundo Correia

Eu amo os gregos tipos de escultura,
Pagãs nuas no mármore entalhadas,
Não essas produções que a estufa escura
Das modas cria, tortas e enfezadas.

Quero um pleno esplendor, viço e frescura
Os corpos nus; as linhas onduladas
Livres; da Carne exuberante e pura
Todas as saliências destacadas...

Não quero a Vênus opulenta e bela
De luxuriantes formas, entrevê-la
Da transparente túnica através;

Quero vê-la sem pejos, sem receios,
Os braços nus, o dorso nu, os seios,
Nua... toda nua, da cabeça aos pés!

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 4. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1883.

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