Raimundo Correia
a noite, a cair
Poeta! Ao longe entre as
sangrentas pompas
Do crepúsculo tomba o
sol. Das flores
Exala-se a alma em
tépidos vapores...
Ouve-se além um sino,
soam trompas
De caça, latem cães...
Esta sublime
Tristeza funda,
indefinita e vaga,
Que o
coração te esmaga,
Todos a sentem, mas
ninguém a exprime!
Ninguém, poeta, exprime
esta saudade,
Que o
ambiente satura
E a
terra e os céus domina;
Esta, de fel mesclada e
de doçura,
Melancolia augusta e
vespertina,
Que, com a sombra,
avulta, cresce, invade
E enche de luto a
natureza inteira...
Esse outro bardo, o
sabiá, não trina
Nos galhos da cheirosa
laranjeira;
E, ao silêncio e ao
torpor cedendo, cerra
O dia os olhos no
Ocidente absortos;
E fuma
um negro incenso,
Que
envolve toda a Terra
– Sepultura comum, túmulo
imenso,
Dos
vivos e dos mortos...
E eu do trono das névoas,
do cimério
Sólio de ébano, aos pés
do qual, na altura,
Toda essa poeira cósmica
fulgura,
Vou já descendo; e, aos
poucos, lentamente,
Arrasto,
desdobrada
Sobre
este amplo hemisfério,
A minha solta clâmide
tamanha,
Negra, como o remorso, e
a que somente,
Da lua crescentígera e
chanfrada
Aponta da unha luminosa
arranha...
o poeta
Em vão de trevas todo o
espaço inundas!
Povoam-no lucíferos
insetos;
São terrestres estrelas
vagabundas;
São pequeninas lâmpadas
errantes;
São de um roto colar de
fogo, iriantes
Àscuas soltas; são
vividos e inquietos
Carbúnculos
alados;
São acesas safiras; são
diamantes
Da grinalda dos sóis
desengastados...
Basta à
minha pupila
O fanal dessas almas
luminosas;
E eu, nas tuas entranhas
tenebrosas,
Como uma sonda, os olhos
aprofundo,
Ó tétrica e tranquila
Noite! – e sinto em cada
átomo invisível
Latejar novo, ardente e
oculto mundo;
E o idioma
confuso,
O hino sem eco, o hosana
intraduzível
Do ser, o mais
rudimentar, traduzo,
Neste de trevas pavoroso
oceano,
Onde o
espírito imerso,
Se debate arquejante,
escuto, ansioso,
Toda a orquestra das
vozes do Universo;
Desde as dos astros
músicas supernas,
Até o salmo obscuro e
misterioso,
Que escapa, como um
monstro diluviano,
Pela estúpida boca das
cavernas...
a noite
Entre as paredes lôbregas
e frias
Do meu cárcere brônzeo e
negro – furna
De lívidos espectros
povoada
E pesadelos e visões
sombrias –
Tua alma
enferma e taciturna
Jaz encerrada.
Em vão
anseias, desta escura
Masmorra, anseias, neste
instante, em vão,
Ver a maciça abóbada
arrombada
Por
um trovão;
Em vão
anseias, nesta funda
Lapa, ver, como a luz da
redenção,
Brilhar o fulvo e
esplêndido montante
De um relâmpago enorme e
rutilante,
Que te ilumine as trevas
da loucura,
Onde
vasqueja, moribunda,
Tua
razão!
o poeta
Em vão sobre mim te
elevas
E a luz da razão me
espancas,
Ó noite! — e minha alma
trancas
Neste túmulo de trevas!
Neste túmulo, onde jaz
Meu espírito indeciso,
Brilha às vezes um
sorriso,
Treme um lampejo fugaz;
E então, do teu antro
horrendo
Vão-se os monstros, que
produzes;
Vão-se, uma por uma, as
luzes
Da fantasia acendendo;
E, às intensas vibrações
Do sol, todo
embandeirado,
Fulge, resplende o
encantado
Palácio das ilusões...
Mas dura tudo um momento;
De novo em trevas me
abismas,
Ó noite! e em mais fundas
cismas
Recai o meu pensamento.
Vão-se a esperança e o
sorrir,
– Vagas deste mar
infindo,
Praias de ouro
descobrindo,
Que tornam logo a
cobrir...
Assim sobre as cinzas
corre
Um sopro, e,
efemeramente,
Faísca a brasa latente,
Arde, arqueja e, afinal,
morre...
uma brisa da noite
Se a tua fronte a febre escalda,
Vêm refrescá-la minhas
asas. Estas
Asas as mesmas são, com
que, as florestas
Atravessando, trêmula de
amor,
Despertar, em seu ninho
de esmeralda,
As flores vou, distribuindo
Um doce beijo a cada flor.
Com estas asas o ar ferindo,
O ar silencioso, rasgo no ar
Uma torrente perfumada,
Onde bilhões de insetos,
fosforeando,
As tênues asas de ouro
vêm lavar...
É meu sopro, que, núncio
da alvorada,
Vem refrescar teu cérebro
incendido,
Brando e sutil, como é sutil
e brando.
O anélito de um anjo adormecido.
o poeta
Intangível ideal! Cruel
desejo
Insaciável! Essa, que
além vejo,
Ilusão
fugitiva,
Brilha tão longe, tão
além, que apenas
O olhar a atinge, e muito
mal a atinge;
– Ave encantada, cujas
ricas penas,
Cujas trêmulas asas, em
cambiantes,
De uma longínqua aurora,
a intensa e viva
Luz irisada, acatasola e
tinge
De cores flamejantes...
Desejo insaciável!
Inacessível sonho!
Julgo alcançá-la muitas
vezes... Trago-a
Presa na mão; exulto a
rir; suponho
Já possuí-la; apalpo-a...
e ei-la, que voa,
E me escapa e me foge...
Ei-la impalpável!
É como o
fluido, ou a água,
Por entre os dedos, que a
retêm, se escoa...
uma ilusão
Alma jamais contente!
Alma de poeta!
Atrás da pluma furta-cor,
da inquieta
Asa de uma ilusão, eis-te
a voar...
Estranhos climas e
regiões estranhas
Atravessas com ela,
afoutamente;
Desces aos vales, sobes
às montanhas
E afrontas todos os
tumultos do ar...
Alma de poeta! Alma
jamais contente!
Se ela suspende o voo, o
voo suspendes;
Abre ela as velas, e
eis-te a todo o pano,
Eis-te a
subir com ela,
Tão alto... Abaixo a
referver o oceano
Serras d’água encapela...
E sobes mais.... com ela
ao ninho ascendes
Das estrelas. No sol a
fronte abrasas,
Como o condor. Nas nuvens
e nos ventos
Bates as duras e
possantes asas,
Rompendo o bojo dos
bulcões violentos...
Por onde, em suma, ela,
inconstante e vária,
Passou, tu sempre, ousada
e temerária,
Seu
rastro ardente segues;
Mas, quando exausta cais,
ela é já tua...
Pertence-te, apanhaste-a,
é tua...
Embora!
Já do encanto, que tinha,
a vês tão nua!
Já, de perto, parece
diferente
Da que vias de longe,
essa ilusão!
Trás dela ias ansioso; e,
alfim, consegues
Tê-la presa na mão... Mas
eis, que agora
Já te aborreces, quando a
tens na mão!
Alma de poeta! Alma jamais
contente!
Em vão lutaste,
combateste em vão!
o poeta
Cada ilusão é como uma
esperança
De um bem, que tarde e
que, afinal, se alcança,
De um bem, que, um dia,
há de afinal chegar;
Enquanto este não chega e
dura aquela,
Goza-se mais com ela,
Do que depois, co’o bem,
se há de gozar.
a esperança
Vem a meus braços, vem!
Já, sobre o berço de ouro
De teus sonhos, soltar o
perfumado, louro
E fúlgido lençol de meus
cabelos vim;
Crava os olhos nos meus!
Que horizontes sem fim
Neles descobrirás! Que
abóbada infinita,
Onde, plena e perpétua, a
Primavera habita!
Que céu de nuvens limpo e
amplo, de norte a sul,
Eternamente belo,
eternamente azul!
uma estrela funesta
Mente a Esperança! Mente
a dádiva ilusória
Do Futuro! A radiante
aparição da Glória
Mente! Empós desta, em
vão, peregrinando vais
A agra região da dor!
Longe é o alto! Jamais
Da Glória estrepitante a
onda espumosa e brava
Virá rojar-te aos pés – branca
e submissa escrava;
Para o diadema real, que
sonhas, não produz
Diamantes Bisnagár, nem
pérolas Ormuz.
Cingirás de irrisão e
opróbrio uma coroa.
Tens acaso um amigo? O
amigo te atraiçoa.
A mulher culto dás?
Desdenha-te a mulher.
Não te será fiel teu
próprio cão, sequer.
Bates de porta em porta,
e vais de tenda em tenda,
Em vão! Nunca acharás uma
alma, que te entenda!
Com quem teu negro pão
compartas! que na dor
Seja a tua consocia! Uma
só nívea flor,
Entre as pedras, jamais,
brota do teu caminho...
E, andrajos arrastando,
irás, roto e mesquinho,
Pela escura existência
afora, sem ninguém,
Mudo e fitos no chão os
olhos, como quem
Já descrente, afinal, na
terra só procura
Um lugar, que lhe seja,
ao menos, sepultura;
Mísero e vil, chegando
até a recear
Que isso mesmo, também,
lhe possa ela negar!...
uma alma compassiva
Poeta! Eu te reservo,
alma que anseia e sofre,
A mais rara e melhor das
jóias dó meu cofre;
Cristalizou-a a dor, e o
seu vivaz clarão
Enche, como uma aurora, a
tua escuridão;
Brilha mais do que um
astro e mais do que um diamante.
Vou chorá-la em teu seio
ardente e palpitante;
Recebe-a; sinto-a já, trêmula
a reluzir:
Subiu do coração, dos
olhos vai cair...
Fonte (parte da primeira estrofes):
Bosi, A. 2013. História concisa da literatura brasileira, 49ª ed. SP, Cultrix. Poema – com a dedicatória ‘A
Arthur Azevedo’ – publicado em livro em 1891.