A expressão evolução orgânica (ou e. biológica) pode ser utilizada em alusão a três coisas: (1) o fato da evolução; (2) as reconstituições da história das linhagens (filogenias); e (3) as mudanças que ocorrem no fundo gênico de populações.
Que não haja dúvidas: nenhum debate científico tem posto em xeque o fato da evolução (item 1). (Há quem o faça, embora isso se dê fora dos domínios da ciência, como veremos neste livro.) No âmbito científico, as controvérsias – e a biologia evolutiva é um campo fértil para isso – giram em torno tão somente dos itens 2 e 3.
Nos capítulos 3 e 4, nós trataremos de modelos filogenéticos e mecanismos causais (itens 2 e 3, acima). Antes, porém, vamos falar sobre o fato da evolução.
Evolução como fato
A evolução é um fato natural da vida. Reconhecer isto equivaleria a admitir que os organismos que hoje dividem o planeta conosco são descendentes modificados de linhagens ancestrais cujas histórias retrocedem ao passado remoto da Terra. E admitir isto independe de sabermos como, quando e por que as linhagens mudaram. Equivaleria a reconhecer a existência do Sol, mesmo que não saibamos como e por que ele brilha.
Os dicionários definem evolução como um ato ou processo de mudança. A palavra vem do latim evolutio, forma substantivada do verbo evolvere (ex-, fora + volvere, rolar, desabrochar, abrir), e evoca o ato ou efeito de abrir, desdobrar ou desenrolar algo que esteja fechado, dobrado ou enrolado.
Na linguagem cotidiana, tanto o verbo evoluir como o substantivo evolução estão associados à ideia de aperfeiçoamento ou melhora. É o que transparece em expressões como “evolução do automóvel” e “evolução do estado de saúde”.
No âmbito da literatura científica, a palavra foi usada durante muito tempo em alusão ao processo de ontogênese (leia-se desenvolvimento individual), um significado que está de acordo com as suas origens etimológicas. Em meados do século 18, por exemplo, o naturalista suíço Albrecht von Haller (1708-1777) utilizava o termo como sinônimo de desenvolvimento embrionário [1].
Já na primeira metade do século 19, no entanto, a palavra ganhou um novo significado, passando a se referir ao processo de transformação histórica de coletividades (populações, linhagens etc.).
Para a biologia moderna, o verbo evoluir é entendido como sinônimo de mudar, sem qualquer conotação envolvendo progresso ou melhoria. Em sentido amplo, a evolução orgânica (ou e. biológica) pode então ser definida como toda e qualquer mudança que ocorre no fundo gênico de uma população [2]. Não importa se tais mudanças resultam ou não em melhorias, aperfeiçoamentos ou em níveis mais elevados de complexidade.
Evidências de um fato
Como os cientistas sabem que as espécies viventes são versões modificadas de espécies já desaparecidas? Afinal, como eles conseguem provar que a evolução é um fato?
Para início de conversa, não custa lembrar: ao contrário da matemática, a biologia não lida com demonstrações ou provas definitivas. As conclusões da biologia estão ancoradas em evidências (diretas ou indiretas). E estas, sempre que possível, devem provir de experimentos controlados, como é regra nas ciências naturais. No caso da biologia, os experimentos são conduzidos em laboratório ou no campo. Resultados obtidos no laboratório às vezes são suficientes, mas nem sempre. Veja o que ocorre em áreas como paleontologia, ecologia e genética de populações, três dos pilares da biologia evolutiva e onde o trabalho de campo é insubstituível.
O xis da questão aqui é o seguinte: o rol de evidências positivas a respeito do fato da evolução é tão esmagador que a única alternativa racional que nos resta é tratá-la como tal.
Fósseis e outras evidências
Evidências diretas de como eram os seres vivos do passado e de como a história da vida se desenrolou provêm do estudo dos fósseis – restos ou vestígios, em geral petrificados, deixados por organismos que já desapareceram.
Além dos indícios deixados pelos seres vivos do passado (e.g., fósseis, moldes, pegadas e perfurações), um sem-número de evidências indiretas é usado em reconstituições históricas. E várias disciplinas contribuem e participam dessas reconstituições.
A embriologia, por exemplo, nos diz que as rotas de desenvolvimento, mesmo no caso de organismos que pouco ou nada se parecem aos nossos olhos (e.g., cangurus, morcegos e elefantes), podem seguir o mesmíssimo padrão geral; as particularidades que notamos nos animais adultos resultam de diferenças sutis durante o desenvolvimento. Por sua vez, a genética nos informa que as rotas de desenvolvimento se assemelham porque os organismos possuem genomas igualmente semelhantes, diferindo tão somente aqui e ali – seja porque cada animal abriga alguns poucos genes exclusivos, seja porque os mesmos genes estão a se expressar de modos ou em momentos algo diferentes.
Atrofia e perda de órgãos
Por estranho que pareça, a presença de itens disfuncionais, como os chamados órgãos vestigiais, é uma evidência positiva do processo evolutivo. Um órgão vestigial é a versão rudimentar de um par de estruturas homólogas, estando a versão funcional em alguma espécie afim. Há itens rudimentares em nosso corpo (Freeman & Herron 2009, p. 42; adaptado):
Temos o cóccix, um minúsculo osso remanescente da cauda. Além disso, temos músculos ligados aos nossos folículos pilosos que se contraem, fazendo nossos pelos corporais arrepiar-se quando estamos com frio ou com medo. Por isso, se fôssemos peludos, como os chimpanzés, a contração dos músculos eretores dos pelos aumentaria a superfície de nossa pelagem, mantendo-nos aquecidos ou tornando-nos aparentemente maiores e mais ameaçadores aos inimigos. Todavia, não somos peludos, portanto ficamos apenas com a pele arrepiada, o que implica que somos descendentes de ancestrais que eram mais peludos do que nós. Do mesmo modo, nossos pequenos ossos remanescentes da cauda indicam que nos originamos de ancestrais dotados de caudas.
A versão rudimentar é apenas o que sobrou daquilo que outrora já foi algo funcional. Tendo perdido a relevância, e já não mais fazendo falta na organização geral do corpo, em geral por causa de alguma mudança no contexto ecológico, o item em questão passa a ficar fora do orçamento – i.e., os recursos que eram empregados em sua construção e manutenção passam a ser alocados em outras estruturas. É a realocação que aos poucos o torna vestigial.
Por que esses penduricalhos já não desapareceram? Um dos motivos pode ser o fato de o item partilhar de uma mesma rota de desenvolvimento com alguma estrutura funcional importante, o que dificultaria a sua eliminação. Ainda que um ou outro atalho possa ser estabelecido – resultando daí o isolamento e a simplificação do item –, a rota como um todo não pode ser eliminada, sob pena de comprometer a organização geral do corpo [3].
Mas a simplificação às vezes vai além e a atrofia, de fato, se converte em perda. É o caso da falta de dentes em alguns grupos de mamíferos. Tamanduás, pangolins e cachalotes são exemplos vivos de três linhagens que passaram por processos independentes de perda. (Os primeiros mamíferos eram providos de dentes, uma condição que eles herdaram dos ancestrais reptilianos.)
A evolução da perda é um fenômeno relativamente comum, já tendo sido registrado em inúmeras linhagens, envolvendo os mais variados itens. Três exemplos adicionais: (1) lagartos que perderam os membros (comum tanto em espécies fossórias como em espécies que vivem em hábitats de vegetação herbácea densa, tendo evoluído dezenas de vezes de modo independente); (2) peixes desprovidos de olhos ou sem pigmentação sobre o corpo (comuns em espécies que vivem no interior de cavernas ou no fundo do mar; uma e outra tendo evoluído dezenas de vezes de modo independente); e (3) insetos desprovidos de asas ou que de algum outro modo perderam a capacidade de voar (comuns em espécies que vivem no topo de montanhas ou em ilhas isoladas, uma e outra tendo evoluído dezenas de vezes de modo independente).
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Notas
Artigo extraído e adaptado do livro O que é darwinismo (2019). (A versão impressa contém ilustrações e referências bibliográficas.) Para detalhes e informações adicionais sobre a obra, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato com o autor pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.
[1] O termo continua a ser usado em alusão ao desenvolvimento individual (e.g., “Larvas de Aedes só evoluem em água limpa”), o que deveria ser evitado, pois vai de encontro ao significado atual mais comum. Em alguns organismos, o desenvolvimento individual envolve uma fase de embriogênese.
[2] Fundo gênico (ing. gene pool): conjunto de todos os alelos (e genes) presentes em uma população. A palavra genofond apareceu pela primeira vez em um artigo do naturalista russo Alexander S. Serebróvski (1884-1938), em 1926; foi então traduzida para o inglês pelo geneticista estadunidense de origem russa Theodosius Dobzhansky (1900-1975).
[3] Exemplo de atrofia ligada ao sexo é a mama masculina. Embora tenha pequenos ductos e algum tecido de suporte, é desprovida de lóbulos e alvéolos, sendo incapaz de secretar leite.
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