A história da humanidade se confunde com a história das guerras. Deveríamos lutar para que se confundisse apenas com a história da literatura.
31 julho 2009
O pasto
Robert Frost
Eu vou limpar a nascente do pasto; Juntar as folhas todas de uma vez (E ver a água clarear, talvez): Eu não demoro – Você vem?
Vou até lá ver a pequena rês Junto da mãe, e tão recém-nascida Que cambaleia quando é lambida. Eu não demoro – Você vem? Fonte: Bennett, W. J., org. 1997. O livro das virtudes para crianças. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1914.
Filha: Papá, por que é que as coisas se desarrumam?
Pai: O que queres dizer com isso? Coisas? Se desarrumam?
Filha: Bem, as pessoas gastam muitíssimo tempo a arrumar coisas, mas nunca parecem que gastem tempo a desarrumá-las. As coisas parece que se desarrumam por si próprias. E depois as pessoas têm de as arrumar outra vez.
Pai: Mas as coisas desarrumam-se se tu não lhes tocares?
Filha: Não, não se ninguém lhes tocar. Mas se tu lhes tocares – ou se alguém lhes tocar –, elas desarrumam-se ainda mais se não for eu a tocar-lhes.
Pai: Pois é! É por isso que eu bem tento evitar que mexas nas coisas da minha secretária. Porque as minhas coisas ficam ainda mais desarrumadas se alguém que não seja eu lhes mexer.
Filha: Mas as pessoas desarrumam sempre as coisas das outras pessoas? Por que é que fazem isso, pai?
Pai: Bem, espera um pouco. Não é assim tão simples. Primeiro que tudo, que queres dizer com ‘desarrumar’?
Filha: Quero dizer que não consigo encontrar as coisas e, portanto, parece tudo desarrumado. É como quando não está nada no lugar certo.
Pai: Bom, mas tens a certeza de que com ‘desarrumado’ queres dizer o mesmo que qualquer outra pessoa?
Filha: Mas, pai, claro que tenho a certeza, porque não sou uma pessoa muito arrumada e, se eu disser que as coisas estão desarrumadas, bom, tenho a certeza de que toda a gente concorda comigo.
Pai: Pronto, está bem, mas achas que queres dizer o mesmo com ‘arrumado’ que as outras pessoas? Se a mãe arrumar as tuas coisas, sabes encontra-las?
Filha: Bem... algumas vezes, porque, sabes, eu sei onde ela põe as coisas quando faz arrumações. [...] Fonte: Bateson, G. 1989 [1972]. Metadiálogos. Lisboa, Gradiva.
4. [...] As pessoas precisam dos insetos para sobreviver, mas os insetos não precisam de nós. Se toda a humanidade desaparecesse amanhã, não teríamos, é provável, a extinção de uma única espécie de insetos, exceto três formas de piolhos que se aninham na cabeça e no corpo humanos. Mesmo assim, continuaria a existir o piolho-dos-gorilas, uma espécie bem próxima do parasita humano, que permaneceria disponível para perpetuar pelo menos algo próximo da antiga linhagem. Dentro de dois ou três séculos, se o ser humano já tivesse desaparecido, os ecossistemas do mundo iriam se regenerar, voltando ao rico estado de quase-equilíbrio existente cerca de 10 mil anos atrás – menos, é claro, as muitas espécies que nós levamos à extinção. [...] Fonte: Wilson, E. O. 2008. A criação. SP, Companhia das Letras.
e essa mitologia de tias solteironas que trocam as gorduras dos pentes do sobrinho: na guerra: na fronteira: tias que penteiam: tias que sem objeto nem destino: babas como lamê: lassas: se oxidam: e assim ‘flutuam’: flutuam assim, como es- ses pentes que na guerra as tias desses garotos limpam: de- sensebam, depilam: sem objeto: nos escapulários esse púbis enrolado de um menino que morreu na fronteira, com o quepe torcido; e nas fotos os rictos dos meninos no poço da fron- teira entre as balas bélicas e o olhar melancólico das tias: nos pentes: engordurados, rijos, como as babas que as tias desovam sobre o pente do garoto que vai para a guerra e re- toca o topete: e elas pensam: que o pente engordurado pelos pêlos do púbis desse garoto morto pelas balas de um amor fronteiriço guarda também os pêlos das mãos do garoto que morto na fronteira dessa guerra amorosa se toucava: o to- pete; e que os pêlos, sujos, desse garoto, como um caracol de púbis nos escapulários, no banheiro apanhados pela veloz parteira, pegos no bidê, na hora em que eles, solitários, que recordam suas tias que morreram nos campos cruzados da guerra, retocam: os topetes: e as tias que morrem com o pente do garoto que foi morto nas garras do vício frontei- riço entre os dentes: mordem: desdentadas o gel degustam dos cabelos do pente dos rapazes que partem para a morte na fronteira, pentelhos despenteados. Fonte: Costa, H. 1992. Antologia de poesia hispano-americana atual. Revista USP 13: 186-205. Poema publicado em livro em 1991.
[Introdução] Observando a natureza que nos rodeia, imediatamente a dividimos num mundo inorgânico, não-vivo, e num mundo de seres vivos, representado por uma enorme variedade de animais, plantas e microrganismos. Exteriormente são muito diferentes; contudo, notamos logo que há entre todos eles alguma coisa de comum que os distingue dos objectos do mundo inorgânico, e somos compelidos a incluir no simples conceito de ‘seres vivos’ o cão e a árvore, a baleia e o insignificante insecto ou uma folha de erva, o Homem e a bactéria que só é visível ao microscópio. Há qualquer coisa de comum inerente a todos estes seres, alguma coisa a que chamamos vida.
Mas qual é a essência deste ‘qualquer coisa’? Qual é a essência da vida? Sem uma solução, cientificamente fundamentada, desta questão, é impossível construir um panorama do mundo que reflita correctamente a realidade objectiva. [...] Fonte: Oparin, A. I. s/d [1968]. Gênese e evolução inicial da vida na Terra. Lisboa, Livros do Brasil.
O pássaro sem vôo, solto na sala, ficou sendo um brinquedo de criança Que lhe importa a manhã?
Por que saudá-la, Se a cantiga desperta a mão que o alcança? De que lhe vale o canto? O canto é apenas alegria de estranhos
Não é tudo. O canto é inútil como são as penas. O pássaro sem vôo, cantando, é mudo. Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial.
Por onde andamos nós, poetas, vendo o que não vemos? Por onde, apenas somos conscientes e retemos, medindo o que se mede fundo? Não basta o ermo, a noite da cidade, esse marulho oceânico que se propaga e que nos prende a um fio de prumo? Acaso entende quem amor nos pede se o além nos serve? Gastos sapatos em idas e vindas. Os meus passos voltam aos meus passos. Encontro-me comigo. E só lastimo quem me contempla, quem desvenda, julgando consolar-me, a minha face, meus símbolos gastos. E não entendo a voz dos animais quando se aclara feroz, mordente e tão desesperada a matutina imagem do país de origem. Eu só percebo que enterro o meu cão! Ó raça de pêlo fulvo, de focinho húmido meu cão metido n’água, latindo fundo ao mar que nos separa da estirpe-raiz! Meu cão de caça que, de repente, farejou gazelas onde as não havia. Teu o mundo mítico que alcançaste ao fim de anos de ausência. Mundo de ventos sibilando, prados secos, ermos, canaviais e montes separando os homens do longínquo espaço. Teu o mundo anunciado pela morte! Assim a vida quando o amor desperta, os passos levitam, a face enrubesce, a voz se precipita. Mundo real anunciado! Festa solitária! Solene, o acto! Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado – com a indicação ‘Para Domingos Arouca’ – em 1973.
Neste domingo, 12/7, o Poesia contra a guerra completa dois anos e nove meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 71.635 visitas haviam sido registradas.
Desde o balanço mensal anterior – Trinta e dois meses no ar – foram ao ar textos dos seguintes autores: Adão Ventura, Chacal, Chuang-Tzu, Elias José, Henri Bergson, Jean Ladrière, John Fogerty, Rubén Darío e Tom Cutler. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Nicolaes Berchem, Nicolaes Maes e Pieter de Hooch.
1. A existência de que estamos mais seguros e que melhor conhecemos é incontestavelmente a nossa, pois de todos os demais objetos temos noções que poderemos julgar exteriores e superficiais, ao passo que percebemo-nos por dentro, profundamente. E que verificamos? Que vem a ser, nesse caso privilegiado, o sentido preciso da palavra ‘existir’? [...]
Primeiro verifico que passo de um estado a outro. Sinto calor ou frio, estou alegre ou triste, trabalho ou nada faço, penso no que me cerca ou em coisa diferente. Sensações, sentimentos, volições, representações, eis as modificações entre as quais minha existência se divide e que a matizam alternadamente. Portanto, estou mudando incessantemente. Mas isso não é tudo. A mudança é muito mais radical do que se acreditaria a princípio. [...] Assim é que nossa personalidade avança, aumenta, amadurece sem cessar. Cada um de seus momentos é novidade que se acrescenta ao que era antes. Sigamos mais além: não se trata apenas da novidade, mas da imprevisibilidade. [...] Ora, tal é o caso de cada um de nossos estados, encarado como um momento de uma história que se desenrola: é simples, não pode ter sido percebido, dado que concentra em sua indivisibilidade, em acréscimo, todo o percebido com o que o presente lha adiciona. É um momento original de uma história não menos original. [...] Fonte: Bergson, H. 1979 [1907]. A evolução criadora. RJ, Zahar.
1. No meio das tabas de amenos verdores, Cercadas de troncos – cobertos de flores, Alteiam-se os tetos da altiva nação; São muitos seus filhos, nos ânimos fortes, Temíveis na guerra, que em densas coortes Assombram das matas a imensa extensão.
São rudos, severos, sedentos de glória, Já prélios incitam, já cantam vitória, Já meigos atendem à voz do cantor; São todos Timbiras, guerreiros valentes! Seu nome lá voa na boca das gentes, Condão de prodígios, de glória e terror!
As tribos vizinhas, sem forças, sem brio, As armas quebrando, lançando-se ao rio, O incenso aspiraram dos seus maracás: Medrosos das guerras que os fortes acendem, Custosos tributos ignavos lá rendem, Aos duros guerreiros sujeitos na paz.
No centro da taba se estende um terreiro, Onde ora se aduna o concílio guerreiro Da tribo senhora, das tribos servis: Os velhos sentados praticam d’outrora, E os moços inquietos, que a festa enamora, Derramam-se em torno dum índio infeliz.
Quem é? – ninguém sabe: seu nome é ignoto, Sua tribo não diz: – de um povo remoto Descende por certo – dum povo gentil; Assim lá na Grécia ao escravo insulano Tornavam distinto do vil muçulmano As linhas corretas do nobre perfil.
Por casos de guerra caiu prisioneiro Nas mãos dos Timbiras: – no extenso terreiro Assola-se o teto, que o teve em prisão; Convidam-se as tribos dos seus arredores, Cuidosos se incumbem do vaso das cores, Dos vários aprestos da honrosa função.
Acerva-se a lenha da vasta fogueira, Entesa-se a corda da embira ligeira, Adorna-se a maça com penas gentis: A custo, entre as vagas do povo da aldeia Caminha o Timbira, que a turba rodeia, Garboso nas plumas de vário matiz.
Entanto as mulheres com lêda trigança, Afeitas ao rito da bárbara usança, O índio já querem cativo acabar: A coma lhe cortam, os membros lhe tingem, Brilhante enduape no corpo lhe cingem, Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.
2. Em fundos vasos da alvacenta argila Ferve o cauim; Enchem-se as copas, o prazer começa, Reina o festim.
O prisioneiro, cuja morte anseiam, Sentado está, O prisioneiro, que outro sol no ocaso Jamais verá!
A dura corda, que lhe enlaça o colo, Mostra-lhe o fim Da vida escura, que será mais breve Do que o festim!
Contudo os olhos de ignóbil pranto Secos estão; Mudos os lábios não descerram queixas Do coração.
Mas um martírio, que encobrir não pode, Em rugas faz A mentirosa placidez do rosto Na fronte audaz!
Que tens, guerreiro? Que temor te assalta No passo horrendo? Honra das tabas que nascer te viram, Folga morrendo.
Folga morrendo; porque além dos Andes Revive o forte, Que soube ufano contrastar nos medos Da fria morte.
Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva, Lá murcha e pende: Somente ao tronco, que devassa os ares, O raio ofende!
Que foi? Tupã mandou que ele caísse, Como viveu; E o caçador que o avistou prostrado Esmoreceu!
Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes Revive o forte, Que soube ufano contrastar os medos Da fria morte.
3. Em larga roda de novéis guerreiros Ledo caminha o festival Timbira, A quem do sacrifício cabe as honras. Na fronte o canitar sacode em ondas, O enduape na cinta se embalança, Na destra mão sopesa a ivirapema, Orgulhoso e pujante. – Ao menor passo Colar d’alvo marfim, insígnia d’honra, Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme, Como que por feitiço não sabido Encantadas ali as almas grandes Dos vencidos Tapuias, inda chorem Serem glória e brasão d’imigos feros.
“Eis-me aqui”, diz ao índio prisioneiro; “Pois que fraco, e sem tribo, e sem família, “As nossas matas devassaste ousado, “Morrerás morte vil da mão de um forte.”
Vem a terreiro o mísero contrário; Do colo à cinta a muçurana desce; “Dize-nos quem és, teus feitos canta, “Ou se mais te apraz, defende-te.” Começa O índio, que ao redor derrama os olhos, Com triste voz que os ânimos comove.
4. Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo Tupi.
Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci: Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi.
Já vi cruas brigas, De tribos imigas, E as duras fadigas Da guerra provei; Nas ondas mendaces Senti pelas faces Os silvos fugaces Dos ventos que amei.
Andei longes terras, Lidei cruas guerras, Vaguei pelas serras Dos vis Aimorés; Vi lutas de bravos, Vi fortes – escravos! De estranhos ignavos Calcados aos pés.
E os campos talados, E os arcos quebrados, E os piagas coitados Já sem maracás; E os meigos cantores, Servindo a senhores, Que vinham traidores, Com mostras de paz.
Aos golpes do imigo Meu último amigo, Sem lar, sem abrigo Caiu junto a mi! Com plácido rosto, Sereno e composto, O acerbo desgosto Comigo sofri.
Meu pai a meu lado Já cego e quebrado, De penas ralado, Firmava-se em mi: Nós ambos, mesquinhos, Por ínvios caminhos, Cobertos de espinhos Chegamos aqui!
O velho no entanto Sofrendo já tanto De fome e quebranto, Só queria morrer! Não mais me contenho, Nas matas me embrenho, Das frechas que tenho Me quero valer.
Então, forasteiro, Caí prisioneiro De um troço guerreiro Com que me encontrei: O cru dessossego Do pai fraco e cego, Enquanto não chego, Qual seja, – dizei!
Eu era o seu guia Na noite sombria, A só alegria Que Deus lhe deixou: Em mim se apoiava, Em mim se firmava, Em mim descansava, Que filho lhe sou.
Ao velho coitado De penas ralado, Já cego e quebrado, Que resta? – Morrer. Enquanto descreve O giro tão breve Da vida que teve, Deixa-me viver!
Não vil, não ignavo, Mas forte, mas bravo, Serei vosso escravo: Aqui virei ter. Guerreiros, não coro Do pranto que choro; Se a vida deploro, Também sei morrer.
5. Soltai-o! – diz o chefe. Pasma a turba; Os guerreiros murmuram: mal ouviram, Nem pode nunca um chefe dar tal ordem! Brada segunda vez com voz mais alta, Afrouxam-se as prisões, a embira cede, A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo. – Timbira, diz o índio enternecido, Solto apenas dos nós que o seguravam; És um guerreiro ilustre, um grande chefe, Tu que assim do meu mal te comoveste, Nem sofres que, transposta a natureza, Com olhos onde a luz já não cintila, Chore a morte do filho o pai cansado, Que somente por seu na voz conhece. – És livre; parte.
– E voltarei. – Debalde.
– Sim, voltarei, morto meu pai.
– Não voltes!
É bem feliz, se existe, em que não veja, Que filho tem, qual chora: és livre; parte! – Acaso tu supões que me acobardo, Que receio morrer!
– És livre; parte!
– Ora não partirei; quero provar-te Que um filho dos Tupis vive com honra, E com honra maior, se acaso o vencem, Da morte o passo glorioso afronta.
– Mentiste, que um Tupi não chora nunca, E tu choraste!... parte; não queremos Com carne vil enfraquecer os fortes.
Sobresteve o Tupi: – arfando em ondas O rebater do coração se ouvia Precipite. – Do rosto afogueado Gélidas bagas de suor corriam: Talvez que o assaltava um pensamento... Já não... que na enlutada fantasia, Um pesar, um martírio ao mesmo tempo, Do velho pai a moribunda imagem Quase bradar-lhe ouvia: – Ingrato! Ingrato! Curvado o colo, taciturno e frio, Espectro d’homem, penetrou no bosque!
6. – Filho meu, onde estás?
– Ao vosso lado; Aqui vos trago provisões; tomai-as, As vossas forças restaurar perdidas, E a caminho, e já!
– Tardaste muito! Não era nado o sol, quando partiste, E frouxo o seu calor já sinto agora!
– Sim, demorei-me a divagar sem rumo, Perdi-me nestas matas intrincadas, Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo; Convém partir, e já!
– Que novos males Nos restam de sofrer? – que novas dores, No outro fado pior Tupã nos guarda? – As setas da aflição já se esgotaram, Nem para novo golpe espaço intacto Em nossos corpos resta.
– Mas tu tremes!
– Talvez do afã da caça...
– Oh filho caro Um quê misterioso aqui me fala, Aqui no coração; piedosa fraude Será por certo, que não mentes nunca! Não conheces temor, e agora temes? Vejo e sei: é Tupã que nos aflige, E contra o seu querer não valem brios. Partamos!... –
E com mão trêmula, incerta Procura o filho, tateando as trevas Da sua noite lúgubre e medonha. Sentindo o acre odor das frescas tintas, Uma idéia fatal correu-lhe à mente... Do filho os membros gélidos apalpa, E a dolorosa maciez das plumas Conhece estremecendo: – foge, volta, Encontra sob as mãos o duro crânio, Despido então do natural ornato!... Recua aflito e pávido, cobrindo Às mãos ambas os olhos fulminados, Como que teme ainda o triste velho De ver, não mais cruel, porém mais clara Daquele exício grande a imagem viva Ante os olhos do corpo afigurada. Não era que a verdade conhecesse Inteira e tão cruel qual tinha sido; Mas que funesto azar correra o filho, Ele o via; ele o tinha ali presente; E era de repetir-se a cada instante. A dor passada, a previsão futura E o presente tão negro, ali os tinha; Ali no coração se concentrava, Era num ponto só, mas era a morte! – Tu prisioneiro, tu?
– Vós o dissestes.
– Dos índios?
– Sim.
– De que nação?
– Timbiras.
– E a muçurana funeral rompeste, Dos falsos manitôs quebraste a maça...
– Nada fiz... aqui estou.
– Nada! – Emudecem,
Curto instante depois prossegue o velho: – Tu és valente, bem o sei; confessa, Fizeste-o, certo, ou já não foras vivo! – Nada fiz; mas souberam da existência De um pobre velho, que em mim só vivia... – E depois?...
– Eis-me aqui.
– Fica essa taba?
– Na direção do sol, quando transmonta.
– Longe?
– Não muito.
– Tens razão; partamos!
– E quereis ir?...
– Na direção do ocaso.
7. “Por amor de um triste velho, Que ao termo fatal já chega, Vós, guerreiros, concedestes A vida a um prisioneiro. Ação tão nobre vos honra, Nem tão alta cortesia Vi eu jamais praticada Entre os Tupis – e mais foram Senhores em gentileza. “Eu porém nunca vencido, Nem nos combates por armas Nem por nobreza nos atos; Aqui venho, e o filho trago. Vós o dizeis prisioneiro, Seja assim como dizeis; Mandai vir a lenha, o fogo, A maça do sacrifício E a muçurana ligeira: Em tudo o rito se cumpra! E quando eu for só na terra, Certo acharei entre os vossos, Que tão gentis se revelam, Alguém que meus passos guie; Alguém, que vendo o meu peito Coberto de cicatrizes, Tomando a vez de meu filho, De haver-me por pai se ufane!”
Mas o chefe dos Timbiras, Os sobrolhos encrespando, Ao velho Tupi guerreiro Responde com torvo acento:
– Nada farei do que dizes: É teu filho imbele e fraco! Aviltaria o triunfo Da mais guerreira das tribos Derramar seu ignóbil sangue: Ele chorou de cobarde; Nós outros, fortes Timbiras, Só de heróis fazemos pasto. – Do velho Tupi guerreiro A surda voz na garganta Faz ouvir uns sons confusos, Como os rugidos de um tigre, Que pouco a pouco se assanha!
8. “Tu choraste em presença da morte? Na presença de estranhos choraste? Não descende o cobarde do forte; Pois choraste, meu filho não és! Possas tu, descendente maldito De uma tribo de nobres guerreiros, Implorando cruéis forasteiros, Seres presa de vis Aimorés.
“Possas tu, isolado na terra, Sem arrimo e sem pátria vagando, Rejeitado da morte na guerra, Rejeitado dos homens na paz, Ser das gentes o espectro execrado; Não encontres amor nas mulheres, Teus amigos, se amigos tiveres, Tenham alma inconstante e falaz!
“Não encontres doçura no dia, Nem as cores da aurora te ameiguem, E entre as larvas da noite sombria Nunca possas descanso gozar: Não encontres um tronco, uma pedra, Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos, Padecendo os maiores tormentos, Onde possas a fronte pousar.
“Que a teus passos a relva se torre; Murchem prados, a flor desfaleça, E o regato que límpido corre, Mais te acenda o vesano furor; Suas águas depressa se tornem, Ao contacto dos lábios sedentos, Lago impuro de vermes nojentos, Donde fujas com asco e terror!
“Sempre o céu, como um teto incendido, Creste e punja teus membros malditos E o oceano de pó denegrido Seja a terra ao ignavo Tupi! Miserável, faminto, sedento, Manitôs lhe não falem nos sonhos, E do horror os espectros medonhos Traga sempre o cobarde após si.
“Um amigo não tenhas piedoso Que o teu corpo na terra embalsame, Pondo em vaso d’argila cuidoso Arco e frecha e tacape a teus pés! Sê maldito, e sozinho na terra; Pois que a tanta vileza chegaste, Que em presença da morte choraste, Tu, cobarde, meu filho não és.”
9. Isto dizendo, o miserando velho A quem Tupã tamanha dor, tal fado Já nos confins da vida reservara, Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias Da sua noite escura as densas trevas Palpando. – Alarma! Alarma! – O velho pára! O grito que escutou é voz do filho, Voz de guerra que ouviu já tantas vezes Noutra quadra melhor. – Alarma! Alarma! Esse momento só vale apagar-lhe Os tão compridos transes, as angústias, Que o frio coração lhe atormentaram De guerreiro e de pai: – vale, e de sobra. Ele que em tanta dor se contivera, Tomado pelo súbito contraste, Desfaz-se agora em pranto copioso, Que o exaurido coração remoça.
A taba se alborota, os golpes descem, Gritos, imprecações profundas soam, Emaranhada a multidão braveja, Revolve-se, enovela-se confusa, E mais revolta em mor furor se acende. E os sons dos golpes que incessantes fervem. Vozes, gemidos, estertor de morte Vão longe pelas ermas serranias Da humana tempestade propagando Quantas vagas de povo enfurecido Contra um rochedo vivo se quebravam. Era ele, o Tupi; nem fora justo Que a fama dos Tupis – o nome, a glória, Aturado labor de tantos anos, Derradeiro brasão da raça extinta, De um jacto e por um só se aniquilasse.
– Basta! clama o chefe dos Timbiras, – Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste, E para o sacrifício é mister forças.
O guerreiro parou, caiu nos braços Do velho pai, que o cinge contra o peito, Com lágrimas de júbilo bradando: “Este sim, que é meu filho muito amado! “E pois que o acho enfim, qual sempre o tive, “Corram livres as lágrimas que choro, “Estas lágrimas, sim, que não desonram.”
10. Um velho Timbira, coberto de glória, Guardou a memória Do moço guerreiro, do velho Tupi! E à noite, nas tabas, se alguém duvidava Do que ele contava, Dizia prudente: – “Meninos, eu vi!
“Eu vi o brioso no largo terreiro Cantar prisioneiro Seu canto de morte, que nunca esqueci: Valente, como era, chorou sem ter pejo; Parece que o vejo, Que o tenho nest’hora diante de mi. “Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo! Pois não era, um bravo; Valente e brioso, como ele, não vi! E à fé que vos digo: parece-me encanto Que quem chorou tanto, Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"
Assim o Timbira, coberto de glória, Guardava a memória Do moço guerreiro, do velho Tupi. E à noite nas tabas, se alguém duvidava Do que ele contava, Tornava prudente: “Meninos, eu vi!” Fonte: Dias, G. 2003. I-Juca-Pirama. Os Timbiras. Outros poemas. SP, Martin Claret. Poema originalmente publicado em 1851.
vai ter uma festa que eu vou dançar até o sapato pedir pra parar. aí eu paro, tiro o sapato e danço o resto da vida Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.
No céu, a Lua, bola toda tonta, põe luzes e sonhos naquela noite de festa, naquela noite tão fria, naquela festa tão quente.
A música dos instrumentos sai de dentro das gentes.
As cores das flores e bandeirinhas têm o calor das gentes.
Os doces nos cestos e panelas têm o mel de toda a gente.
Árvores e flores e frutos, gentes e bichos e até peixes e objetos, iluminados, dançam felizes.
E São João, alegre e vaidoso, sorri no seu mastro e manda beijos pra todos. Fonte: edição No. 202 (junho de 2009) da revista Ciência Hoje das Crianças. Poema originalmente publicado em 2006.