A inundação
Armando da Silva Carvalho
O mar invade Lisboa mas por dentro
enquanto o vento enfeita
as filhas dos polícias
e há um vago frio nos olhos
mais dementes
destas tardes.
As crianças vestem
coloridamente
seu mórbido e inesperado
séquito.
Mas nas ruas da Baixa
nota-se uma abundância
palpável
um rio vagamente doloroso
um mar por dentro.
Nas lojas de fazendas
na menina da caixa
no fastio amarfanhado
dos porteiros.
Gotas marítimas notavam-se
no brilhos das pulseiras
de uma amante
líquido miúdo mas brilhante
até nas varizes das peixeiras.
Há quem diga do sol
um sol insólito é bem certo
mas nota-se até na cauda dos insectos
piedosas solícitas gotas de humi(l)dade.
O mar invade tudo mas por dentro.
Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1965.