29 novembro 2011

Eu rio do pernóstico velhaco

Heinrich Heine

Eu rio do pernóstico velhaco,
De bode, me encarando a noite inteira;
Eu rio da raposa sorrateira
Que fuça em busca do meu ponto fraco.

Eu rio do acadêmico macaco,
Que arrota regras e vomita asneira;
Eu rio dessa víbora embusteira,
Querendo me emboscar de seu buraco.

Pois quando nos atinge a mão irada
Do acaso, e a nossa vida se estilhaça,
E os cacos vão caindo pelo chão;

E quando em nosso peito o coração
Se rasga, dilacera e despedaça –
Nos resta uma sonora gargalhada.

Fonte: o soneto acima, parte de uma série de nove intitulada “Sonetos-afrescos”,  integra o livro Heine, hein? (2011, Perspectiva) e foi aqui publicado com o devido consentimento do tradutor, André Vallias, a quem agradeço pela cortesia. O poema original foi publicado em 1821.

27 novembro 2011

Senhor, fazei de mim uma luz

Matilda Betham-Edwards

Senhor, fazei de mim uma luz.
Luzinha no mundo a brilhar;
Mínima chama que sempre reluz
Aonde quer que vá.

Senhor, fazei de mim um botão
Que, humilde, sob a folhagem
Floresce em seu pequenino torrão
E espalha a felicidade.

Senhor, fazei de mim um cajado
Para todos os que já se cansaram;
Que com minha saúde e boa vontade
Aos irmãos eu dê amparo.

Fonte: Bennett, W. J., org. 1997. O livro das virtudes para crianças. RJ, Nova Fronteira. O poema original, com cinco estrofes e intitulado “Hymn for a little child”, foi publicado em 1873. A versão acima corresponde às estrofes 1, 2 e 4.

25 novembro 2011

Uma questão de escala

Stephen H. Schneider

Você se lembra das famosas fotografias que os astronautas tiraram no espaço no final da década de 1960, fotos que transformaram a consciência global a respeito da Terra? Nuvens brancas circulavam em torno de uma bola azul com calotas de gelo brancas e desertos avermelhados. Os padrões em espiral das tormentas destacavam-se como características salientes que ocupavam regiões do tamanho do estado da Nova Inglaterra – aproximadamente 1.000 quilômetros de extensão. Esta é uma maneira de observar a atmosfera. O passageiro de um avião em vôo turbulento pode pensar que a ação atmosférica está na escala das centenas de metros à medida que o aeroplano é sacudido nos céus. Um balonista que observa gotículas individuais de chuva ou flocos de neve carregados lentamente pelo ar pode concluir que a atmosfera deve ser compreendida na microescala dos milímetros. Estas observações, em um certo sentido, são todas “corretas”. Elas dependem do que você está procurando ou observando.

Podemos olhar para um céu tempestuoso, por exemplo, e ver as nuvens se movendo do leste para o oeste. Isso significa que a tormenta que se desenrola sobre as nossas cabeças está se movendo do leste para o oeste? Imagine que o mapa enviado pelo satélite no boletim meteorológico desta noite na tevê mostrasse que, embora os ventos locais que circulam naquele instante estivessem de fato se movendo do leste para o oeste, a tempestade como um todo estivesse na verdade se deslocando do oeste para o leste. Não haveria nada de errado com as nossas observações locais, apenas com a nossa hipótese em uma escala maior; precisaríamos de uma visão mais abrangente para determinar as relações de grande escala corretamente. Ou, como o ecólogo matemático Simon Levin, da [Universidade de] Princeton, afirmou certa vez, o mundo parece ser muito diferente, dependendo do tamanho da janela através da qual você estiver olhando.
[...]

Fonte: Schneider, S. H. 1998. Laboratório Terra. RJ, Rocco.

23 novembro 2011

Carpintaria


Gustav Wentzel (1859-1927). Snekkerverksted. 1881.

Fonte da foto: Wikipedia.

21 novembro 2011

Estatística não-paramétrica

Sidney Siegel

1.
O estudante das ciências do comportamento cedo se acostuma a empregar palavras usuais com significações que se lhe são, inicialmente, estranhas. Assim é, por exemplo, que, quando se fala em sociedade, não se tem em vista aquele grupo de pessoas cujos nomes figuram nas colunas sociais dos jornais. O termo personalidade pouco ou nada tem em comum com o significado que lhe atribuem os jovens: embora um ginasiano possa demonstrar certo desprezo por um colega que “não tenha personalidade”, o cientista dificilmente poderá conceber tal situação; o estudante sabe que cultura, no sentido científico, abrange muito mais do que um simples refinamento estético; e ele jamais dirá que um vendedor “usa” a psicologia para persuadir um cliente a adquirir seus produtos.

Analogamente, o estudante logo descobrirá que o campo da estatística é assaz diverso da concepção que usualmente se tem. Nos jornais e revistas não-científicos, o estatístico é considerado como aquele que coleta grande volume de informações quantitativas para, em seguida, extrair desses dados determinadas informações representativas. Ninguém duvida de que a determinação do salário médio de uma indústria ou do número médio de filhos na família urbana americana é função do estatístico. Mas é apenas uma de suas atribuições. Logo de início, o estudante se conscientizará de que a descrição é apenas uma das funções da estatística.

Um tópico central da moderna estatística é a inferência estatística. A inferência estatística aborda dois tipos de problemas fundamentais: a estimação de parâmetros de uma população, e a prova de hipóteses. É das provas de hipóteses que trataremos primordialmente neste livro.
[...]

Fonte: Siegel, S. 1981 [1956]. Estatística não-paramétrica. SP, McGraw-Hill.

19 novembro 2011

Monte Castelo

Renato Russo

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.

É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
O amor é bom, não quer o mal.
Não sente inveja ou se envaidece.

O amor é o fogo que arde sem se ver.
É ferida que dói e não se sente.
É um contentamento descontente.
É dor que desatina sem doer.

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.

É um não querer mais que bem querer.
É solitário andar por entre a gente.
É um não contentar-se de contente.
É cuidar que se ganha em se perder.

É um estar-se preso por vontade.
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata a lealdade.
Tão contrário a si é o mesmo amor.

Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem.
Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face.

É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria.

Fonte: Cereja, W. R. & Magalhães, T. C. 2005. Português: Linguagens, 5ª edição. SP, Atual. Canção gravada no álbum As quatro estações (1989), do Legião Urbana. O soneto de Camôes, parcialmente aproveitado na letra acima, está aqui.

17 novembro 2011

Sete experimentos que podem mudar o mundo

Rupert Sheldrake

[Prefácio]
Durante anos, senti-me fascinado por algumas das questões discutidas neste livro – no caso dos pombos-correio, desde a mais remota infância. Também despendi mais de 25 anos em pesquisa científica, adquirindo grande respeito pela força da abordagem experimental. Vi, por mim mesmo, que mediante experimentos bem-elaborados podemos fazer perguntas sobre a natureza e obter respostas.

Impressionou-me igualmente a maneira com que se pode fazer uma pesquisa fundamental sem um grande orçamento. No curso de meus estudos científicos em Cambridge, deparei com inúmeros exemplos da tradição “econômica” da ciência britânica. E convivi diretamente com essa tradição por vários anos, como Research Fellow da Royal Society, quando dividi um laboratório no Departamento de Bioquímica da Universidade de Cambridge com o falecido Robin Hill, chefe das pesquisas sobre fotossíntese, cujos demorados experimentos custavam menos que a verba costumeiramente destinada a estudantes de primeiro ano de graduação.

Na Índia, onde passei mais de cinco anos fazendo pesquisas agrícolas, notei que os cientistas do país, premidos pela necessidade, haviam aperfeiçoados meios engenhosos de conduzir pesquisas de campo com um mínimo de gastos. No instituto internacional onde eu trabalhava, perto de Hiderabade, adotei e desenvolvi esses métodos locais, empregando principalmente camponeses, e achei bastante produtivo esse tipo de pesquisa. Meus colegas e eu desenvolvemos, por exemplo, um novo sistema de colheitas múltiplas para o feijão-guandu que está sendo amplamente adotado pelos fazendeiros na Índia e vem contribuindo para o aumento da produção de alimentos.
[...]

Fonte: Sheldrake, R. 1999 [1995]. Sete experimentos que podem mudar o mundo. SP, Cultrix.

15 novembro 2011

Paixão

Kathleen Raine

Então o céu me falou em linguagem límpida,
mais familiar ao coração do que o amor mais íntimo.
O céu disse à minha alma: “Tens o que desejas!

“Aprende que nasceste junto com esses ventos,
nuvens, estrelas, mares sempre em movimento,
e habitantes da floresta. Essa é a tua natureza.

“Ergue de novo teu coração sem receio,
dorme na tumba, ou respira com enleio,
este mundo que com a flor e o tigre partilhas”.

Fonte: Dawkins, R. 2000. Desvendando o arco-íris. SP, Companhia das Letras. Poema publicado em livro em 1943.

13 novembro 2011

No tempo da vovó


Thomas Eakins (1844-1916). In grandmother’s time. 1876.

Fonte da foto: Art Renewal Center.

12 novembro 2011

Sessenta e um meses no ar

F. Ponce de León

Neste sábado, 12/11, o Poesia contra a guerra completa cinco anos e um mês no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 151.984 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Aniversário de cinco anos – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: André Gide, Pe. Antônio Vieira, Carlos Queiroz Telles, Francis Jammes, François Aubral, Hermann Weyl, Júlio Salusse, Luís Archer, Manuel Gusmão e Xavier Delcourt. Além de outros autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Jean Eugène Buland, Léon Bonnat e Lilla Cabot Perry.

10 novembro 2011

Estória do aparelho azul-pombinho


Minha bisavó – que Deus a tenha em bom lugar –
inspirada no passado
sempre tinha o que contar.
Velhas tradições. Casos de assombração.
Costumes antigos. Usanças de outros tempos.
Cenas da escravidão.
Cronologia superada
onde havia bangüês.
Mucamas e cadeirinhas.
Rodas e teares. Ouro em profusão,
posto a secar em couro de boi.
Crioulinho vigiando de vara na mão
pra galinha não ciscar.
Romanceiro. Estórias avoengas...
Por sinal que uma delas embalou minha infância.

Era a estória de um aparelho de jantar
que tinha sido encomendado de Goiás
através de uma rede de correspondentes
como era norma, naquele tempo.
Encomenda levada numa carta
em nobre estilo amistoso-comercial.
Bem notada. Fechada com obreia preta.

Carta que foi entregue de mão própria
ao correspondente na Corte
que tinha morada e loja de ferragem
na Rua do Sabão.
O considerado lusitano – metódico e pontual –,
o passou para Lisboa.
Lisboa passou para Luanda.
Luanda no usual
passou para Macau.
Macau se entendeu com mercadores chineses.

E um fabricante-loiceiro,
artesão de Cantão,
laborou o prodígio (no dizer de minha bisavó).

Um aparelho de jantar – 92 peças.
Enorme. Pesado, lendário.
Pintado, estoriado, versejado,
de loiça azul-pombinho.
Encomenda de um senhor cônego
de Goiás
para o casamento de seu sobrinho e afilhado
com uma filha de minha bisavó.

O cônego-tio e padrinho
pelo visto, relatado,
fazia gosto naquele matrimônio.
E o aparelho era para as bodas contratadas.
Um carro de boi –
15 juntas, 30 bois –
bem fornido e rejuntado
para viagem longa,
partiu de Goiás, no século passado,
do meado, pouco mais.
Levava seis escravos escolhidos
e um feitor de confiança.
Mantimentos para a viagem.
E mais, oitavas de ouro,
disfarçadas no fundo de um berrante,
para os imprevistos da delonga.

E o antigo carro
por ano e meio quase
rodou, sulcou, cantou e levantou poeira
rechinando
por caminhos e atalhos,
vilas e cidades, campos, sarobais.
Atravessou rios em balsas.
Vadeou lameiros, tremedais.
Varou Goiás – fim de mundo.
Cortou o sertão de Minas.
O planalto de São Paulo.

Foi receber o aparelho e mais sedas e xailes-da-índia
em Caçapava –
ponta dos trilhos da Dão Pedro Segundo –
ali por volta de 1860 e tantos.
Durou essa viagem, ir e voltar,
dezesseis meses e vinte e dois dias.
– As bodas em suspenso.

Enquanto se esperava, escravas de dentro
fiavam na roda e urdiam no tear.
Mucamas compenetradas, mestreadas por rica-dona,
sentadas nas esteiras, nos estrados de costura,
desfiavam, bordavam, crivavam,
repolegavam
o bragal de minha avó.
Sinhazinha de catorze anos – fermosura.
Prendada. Faceira.
Muito certa na Doutrina.
Entendida do governo de uma casa
e analfabeta.
Diziam os antigos educadores:
“– Mulher saber ler e escrever não é virtude”.

Afinal, muito esperado,
chegou a Goiás, sem novidades ou peça quebrada,
o aparelho encomendado
através de uma rede de correspondentes.
Embarcado num veleiro,
no porto de Macau.

As bodas marcadas
se fizeram com aparato.
Fartas comezainas.
Vinho do Espinho – Portugal –
da parte do correspondente.
Aparelhos de loiça da China.
Faqueiros e salvas de prata
Compoteiras e copos de cristal.
Na sobremesa minha bisavó exultava...
Figurava uma pinha de iludição.

Toda ela de cartuchos de papel verde calandrado,
cheios de confeitos de ouro em filigrana.
Mimo aos convidados graduados:
Governador da Província,
Cônegos, Monsenhores, Padres-Mestres,
Capitão-Mor.
Brigadeiros. Comendadores.
Juízes e Provedores.
Muita pompa e toda parentela.
Por amor e grandeza desse fasto
– casamento da sinhazinha Honória
com o sinhô-moço Joaquim Luís –
dois velhos escravos, já pintando,
receberam chorando
suas cartas de alforria.

Ficou mais, assentado e prometido
em palavra de rei testemunhado,
que o crioulinho
que viesse ao mundo
com o primogênito do casal
seria forro sem tardança na pia batismal.

E se criaria em regalia
com o senhorzinho,
nato fosse ele, em hora e dia.

Um rebento do casal veio ao mundo
no fim de nove meses.
e na senzala do quintal
nascia de uma escrava
um crioulinho.
Conforme o prometido – libertado
alforriado
na pia batismal.

(Na pia batismal, era, naquele tempo,
forma legal e usual de se alforriar um escravo).
Toda essa estória
por via de um aparelho de loiça da China,
destinado a Goiás.
Laborado de um oleiro, loiceiro de Cantão.
Embarcado num veleiro
no porto de Macau.

Cartas com obreias.
Correspondentes antigos.
Cartuchos de confeitos de ouro.
Alforrias de escravos.
Bodas de meu avô.
Bragal da minha avó.
Roda e tear, marafundas e repolegos.
Coisas do passado...
E – dizia  minha bisavó –
tudo se deu como o contado.

Fonte: Coralina, C. 2004. Melhores poemas, 2ª edição. SP, Global. Poema publicado em livro em 1965.

08 novembro 2011

Desencanto

Júlio Salusse

A minha vida é a planta, que as procelas
sacudiram, torcendo-lhe a raiz...
Tive ambições e a mais ardente delas
foi a da glória – e a glória não me quis!

Vi, como sombras, poéticas donzelas,
sombras que se apagaram, como o giz...
Os sonhos meus eram batéis sem velas!
Perdi-os todos... Fui, talvez, feliz!

Sempre o destino olhei com tédio e medo,
pois vim ao mundo muito tarde ou cedo...
Rosas plantei e a flor do mal colhi!

Ainda que pudesse, eu não quisera
voltar à Mocidade, à primavera
de um tempo, que passou, mas não vivi!

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 4. SP, Cultrix & Edusp. Poema datado de 1947.

06 novembro 2011

Contra a nova filosofia

François Aubral & Xavier Delcourt

[Prefácio]
Um vento novo de obscurantismo sopra sobre a cena de nossa sociedade em crise. “O cadáver de Deus”, ao que parece, “mexe-se ainda”, Moon e Monsenhor Lefebvre faturam, e gurus, tão convencionais quanto frustrantes, cativam um público falto de sortilégios, revelações e previsões. Madame Soleil distribui pelo rádio o pão cotidiano de seu otimismo piegas, enquanto Guy Lux e Philippe Bouvard partilham entre si as brincadeiras do circo. Os OVNI chovem do céu. Os extraterrestres entram no jornal falado. De todos os lados, parte-se em busca do desconhecido, do extravagante e do sensacional. Alguns esperam o êxtase ou sonham com a grande viagem. Outros querem reviver um estado de natureza imaginário e entregam-se a práticas higiênicas pretensamente ecológicas. Confusão por toda a parte.

Os meios de comunicação de massa, a poder de imagens e de comentários, amplificam a tal ponto esse concerto de matracas que se torna urgente discernir quais são os interesses políticos em jogo.

Nessa paisagem de feiticeiras e de magos, rádios e jornais funcionam como caixa de ressonância para um rumor vindo não se sabe de onde, anunciando o nascimento de uma suposta “nova filosofia”. Será que a filosofia, levada pela borrasca, acaba de se juntar ao cortejo dos anacoretas newlook? Para dizer a verdade, aqueles que trazem colado o rótulo “nova filosofia” parecem totalmente estranhos à filosofia contemporânea, aliás bem viva.
[...]

Fonte: Aubral, F. & Delcourt, X. 1979. Contra a nova filosofia. RJ, Paz & Terra.

04 novembro 2011

Sermão do Bom Ladrão

Pe. António Vieira

Domine, memento mei, cum veneris in Regnum tuum:
Hodie mecum eris in Paradiso.

1.
Este Sermão, que hoje se prega na Misericórdia de Lisboa, e não se prega na Capela Real, parecia-me, a mim, que lá se havia de pregar, e não aqui. Daquela pauta havia de ser e não desta. E por quê? Porque o Texto em que se funda o mesmo sermão, todo pertence à majestade daquele lugar, e nada à piedade deste. Uma das coisas que diz o Texto, é que foram sentenciados em Jerusalém dois ladrões, e ambos condenados, ambos executados, ambos crucificados e mortos, sem lhes valer procurador, sem embargos. Permite isto a Misericórdia de Lisboa? Não. A primeira diligência que faz, é eleger por procurador das cadeias um irmão de grande autoridade, poder e indústria; e o primeiro timbre deste procurador, é fazer honra de que nenhum malfeitor seja justiçado em seu tempo. Logo esta parte da história não pertence à Misericórdia de Lisboa. A outra parte (que é a que tomei por tema) toda pertence ao Paço e à Capela Real. Nela se fala com o rei: Domine; nela se trata do seu reino: cum veneris in Regnum tuum; nela se lhe apresentam memórias: memento mei; e nela os despacha o mesmo rei logo, e sem remissão, a outros tribunais: hodie mecum eris in Paradiso. O que me podia retrair de pregar sobre esta matéria, era não dizer a doutrina com o lugar. Mas deste escrúpulo, em que muitos pregadores não reparam, mo livrou a pregação de Jonas. Não pregou Jonas no Paço, senão pelas ruas de Nínive; cidade de mais longes que esta nossa; e diz o Texto sagrado que logo a sua pregação chegou aos ouvidos do rei: Pervenit verbum ad Regem. Bem quisera eu, que o que hoje determino pregar, chegara a todos os reis, e mais ainda aos estrangeiros que aos nossos. Todos devem imitar ao Rei dos Reis; e todos têm muito que aprender nesta última ação de sua vida. Pediu o bom ladrão a Cristo, que se lembrasse dele no seu reino: Domine, memento mei, cum veneris in Regnum tuum. E a lembrança que o Senhor teve dele, foi que ambos se vissem juntos no Paraíso: Hodie mecum eris in Paradiso. Esta é a lembrança que devem ter todos os Fiéis, e a que eu quisera lhes persuadissem os que são ouvidos de mais perto. Que se lembrem não só de levar os ladrões ao Paraíso, senão de os levar consigo: Mecum. Nem os Reis podem ir ao Paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os Reis. Isto é o que hei de pregar. Ave Maria.
[...]

Fonte: Vieira, A. 2004. Sermões escolhidos. SP, Martin Claret. Pregado na Igreja da Misericórdia de Lisboa, em 1655.

02 novembro 2011

Menina adormecida



Léon [Joseph Florentin] Bonnat (1833-1922). Fillette endormie. 1852.

Fonte da foto: Wikipedia.

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