Fagundes Varela
Eras na vida a pomba
predileta
Que sobre um mar de
angústias conduzia
O ramo da esperança. – Eras
a estrela
Que entre as névoas do
inverno cintilava
Apontando o caminho ao
pegureiro.
Eras a messe de um
dourado estio.
Eras o idílio de um amor
sublime.
Eras a glória, – a
inspiração, – a pátria,
O porvir de teu pai! –
Ah! no entanto,
Pomba, – varou-te a
flecha do destino!
Astro, – engoliu-te o
temporal do norte!
Teto, caíste! – Crença,
já não vives!
Correi, correi, oh!
lágrimas saudosas,
Legado acerbo da ventura
extinta,
Dúbios archotes que a
tremer clareiam
A lousa fria de um sonhar
que é morto!
Correi! Um dia vos verei
mais belas
Que os diamantes de Ofir
e de Golconda
Fulgurar na coroa de
martírios
Que me circunda a fronte
cismadora!
São mortos para mim da
noite os fachos,
Mas Deus vos faz brilhar,
lágrimas santas,
E à vossa luz caminharei
nos ermos!
Estrelas do sofrer, – gotas
de mágoa,
Brando orvalho do céu! – Sede
benditas!
Oh! filho de minh’alma! Última
rosa
Que neste solo ingrato
vicejava!
Minha esperança
amargamente doce!
Quando as garças vierem
do ocidente
Buscando um novo clima
onde pousarem,
Não mais te embalarei
sobre os joelhos,
Nem de teus olhos no
cerúleo brilho
Acharei um consolo a meus
tormentos!
Não mais invocarei a musa
errante
Nesses retiros onde cada
folha
Era um polido espelho de
esmeralda
Que refletia os fugitivos
quadros
Dos suspirados tempos que
se foram!
Não mais perdido em
vaporosas cismas
Escutarei ao pôr do sol,
nas serras,
Vibrar a trompa sonorosa
e leda
Do caçador que aos lares
se recolhe!
Não mais! A areia tem
corrido, e o livro
De minha infanda história
está completo!
Pouco tenho de andar! Um
passo ainda
E o fruto de meus dias,
negro, podre,
Do galho eivado rolará
por terra!
Ainda um treno, e o
vendaval sem freio
Ao soprar quebrará a
última fibra
Da lira infausta que nas
mãos sustenho!
Tornei-me o eco das
tristezas todas
Que entre os homens
achei! O lago escuro
Onde ao clarão dos fogos
da tormenta
Miram-se as larvas
fúnebres do estrago!
Por toda a parte em que
arrastei meu manto
Deixei um traço fundo de
agonias!...
Oh! quantas horas não
gastei, sentado
Sobre as costas bravias
do Oceano,
Esperando que a vida se
esvaísse
Como um floco de espuma,
ou como o friso
Que deixa n’água o lenho
do barqueiro!
Quantos momentos de
loucura e febre
Não consumi perdido nos
desertos,
Escutando os rumores das
florestas,
E procurando nessas vozes
torvas
Distinguir o meu cântico
de morte!
Quantas noites de
angústias e delírios
Não velei, entre as
sombras espreitando
A passagem veloz do gênio
horrendo
Que o mundo abate ao
galopar infrene
Do selvagem corcel?... E
tudo embalde!
A vida parecia ardente e
douda
Agarrar-se a meu ser!...
E tu tão jovem,
Tão puro ainda, – ainda
n’alvorada,
Ave banhada em mares de
esperança,
Rosa em botão, crisálida
entre luzes,
Foste o escolhido na
tremenda ceifa!
Ah! quando a vez primeira
em meus cabelos
Senti bater teu hálito
suave;
Quando em meus braços te
cerrei, ouvindo
Pulsar-te o coração
divino ainda;
Quando fitei teus olhos
sossegados,
Abismos de inocência e de
candura,
E baixo e a medo
murmurei: meu filho!
Meu filho! frase imensa,
inexplicável,
Grata como o chorar de
Madalena
Aos pés do Redentor...
ah! pelas fibras
Senti rugir o vento
incendiado
Desse amor infinito que
eterniza
O consórcio dos orbes que
se enredam
Dos mistérios do ser na
teia augusta
Que prende o céu à terra
e a terra aos anjos!
Que se expande em
torrentes inefáveis
Do seio imaculado de
Maria!
Cegou-me tanta luz!
Errei, fui homem!
E de meu erro a punição
cruenta
Na mesma glória que
elevou-me aos astros,
Chorando aos pés da cruz
hoje padeço!
O som da orquestra, o
retumbar dos bronzes,
A voz mentida de rafeiros
bardos,
Torpe alegria que
circunda os berços
Quando a opulência
doura-lhes as bordas,
Não te saudaram ao sorrir
primeiro,
Clícia mimosa rebentada à
sombra!
Mas, ah! se pompas,
esplendor faltaram-te,
Tiveste mais que os
príncipes da terra!
Templos, altares de
afeição sem termos!
Mundos de sentimento e de
magia!
Cantos ditados pelo
próprio Deus!
Oh! quantos reis que a
humanidade aviltam,
E o gênio esmagam dos
soberbos tronos,
Trocariam a púrpura
romana
Por um verso, uma nota,
um som apenas
Dos fecundos poemas que
inspiraste!
Que belos sonhos! Que
ilusões benditas!
Do cantor infeliz
lançaste à vida,
Arco-íris de amor! Luz da
aliança,
Calma e fulgente em meio
da tormenta!
Do exílio escuro a cítara
chorosa
Surgiu de novo e às
virações errantes
Lançou dilúvios de
harmonia! – O gozo
Ao pranto sucedeu. As
férreas horas
Em desejos alados se
mudaram.
Noites fugiam, madrugadas
vinham,
Mas sepultado num prazer
profundo
Não te deixava o berço
descuidoso,
Nem de teu rosto meu
olhar tirava,
Nem de outros sonhos que
dos teus vivia!
Como eras lindo! Nas
rosadas faces
Tinhas ainda o tépido
vestígio
Dos beijos divinais, –
nos olhos langues
Brilhava o brando raio
que acendera
A bênção do Senhor quando
o deixaste!
Sobre teu corpo a chusma
dos anjinhos,
Filhos do éter e da luz,
voavam,
Riam-se alegres, das
caçoilas níveas
Celeste aroma te vertendo
ao corpo!
E eu dizia comigo: – teu
destino
Será mais belo que o
cantar das fadas
Que dançam no arrebol, – mais
triunfante
Que o sol nascente
derribando ao nada
Muralhas de negrume!...
Irás tão alto
Como o pássaro-rei do
Novo Mundo!
Ai! doudo sonho!... Uma
estação passou-se,
E tantas glórias, tão
risonhos planos
Desfizeram-se em pó! O
gênio escuro
Abrasou com seu facho
ensanguentado
Meus soberbos castelos. A
desgraça
Sentou-se em meu solar, e
a soberana
Dos sinistros impérios de
além-mundo
Com seu dedo real
selou-te a fronte!
Inda te vejo pelas noites
minhas,
Em meus dias sem luz
vejo-te ainda,
Creio-te vivo, e morto te
pranteio!...
Ouço o tanger monótono
dos sinos,
E cada vibração contar
parece
As ilusões que murcham-se
contigo!
Escuto em meio de
confusas vozes,
Cheias de frases pueris,
estultas,
O linho mortuário que
retalham
Para envolver teu corpo!
Vejo esparsas
Saudades e perpétuas, – sinto
o aroma
Do incenso das igrejas, –
ouço os cantos
Dos ministros de Deus que
me repetem
Que não és mais da terra!...
E choro embalde.
Mas não! Tu dormes no
infinito seio
Do Criador dos seres! Tu
me falas
Na voz dos ventos, no
chorar das aves,
Talvez das ondas no
respiro flébil!
Tu me contemplas lá do
céu, quem sabe,
No vulto solitário de uma
estrela.
E são teus raios que meu
estro aquecem!
Pois bem! Mostra-me as
voltas do caminho!
Brilha e fulgura no azulado
manto,
Mas não te arrojes,
lágrima da noite,
Nas ondas nebulosas do
ocidente!
Brilha e fulgura! Quando
a morte fria
Sobre mim sacudir o pó
das asas,
Escada de Jacó serão teus
raios
Por onde asinha subirá
minh’alma.
Fonte (primeira, segunda
e parte da última estrofe): Cereja, W. R. & Magalhães, T. C. 1995. Literatura brasileira. SP, Atual. Poema
– com a dedicatória “À memória de meu Filho morto a 11 de dezembro de 1863” –
publicado em livro em 1865.