29 novembro 2015

Impressões de teatro

Artur Azevedo

Que dramalhão! Um intrigante ousado,
Vendo chegar da Palestina o conde,
Diz-lhe que a pobre da condessa esconde
No seio o fruto de um amor culpado.

Naturalmente o conde fica irado:
– O pai quem é? – pergunta. Eu!, lhe responde
Um pajem que entra. – Um duelo – Sim! Quando? Onde?
No encontro morre o amante desgraçado.

Folga o intrigante... Porém surge um mano,
E, vendo morto o irmão, perde a cabeça:
Crava um punhal no peito do tirano!

É preso o mano, mata-se a condessa,
Endoidece o marido... e cai o pano
Antes que outra catástrofe aconteça.

Fonte: Bosi, A. 2013. História concisa da literatura brasileira, 49ª edição. SP, Cultrix. Poema – com a dedicatória ‘A Guimarães Passos’ – publicado em livro em 1876.

27 novembro 2015

Mentiras

Francisco Nesi

Quase sempre digo mentiras,
            conto histórias
            invento fatos,
fora algumas poucas verdades
que comandam os meus dias,
valorizam os meus atos.

Algumas mentiras não contam,
são apenas fantasias.
Algumas se justificam:
as piedosas,
as críticas,
as ditas no exercício da profissão,
para aliviar uma dor,
para afirmar uma paixão.

Eu crio brigas de mentirinha,
dou como bom o que é mau,
digo que corda é linha,
digo que pedra é pau.
Existem mentiras de noite,
que são verdades de dia.
Umas mentiras eu nego,
outras eu prego.
Umas são ditas pra longe,
outras são ditas pra perto.

Eu confesso dizer mentiras,
só não sei o que é ao certo.

Fonte: Kuri et al. 2004. AdVersos. RJ, Atlântica Editora.

25 novembro 2015

A primeira grande transição

Clive Ponting

Durante aproximadamente dois milhões de anos, os seres humanos viveram da colheita, do pastoreio e da caça. Depois, no espaço de tempo de alguns milhares de anos, emergiram para um modo de vida radicalmente diferente, baseado em importante alteração de ecossistemas naturais, objetivando a produção de grãos e de pasto para os animais. Esse sistema de produção de alimentos mais intensiva foi desenvolvido separadamente em três regiões importantes do mundo – o sudoeste da Ásia, a China e a América Central – e marcou a transição mais importante da história humana. Como esse sistema oferecia quantidades muito maiores de alimentos, tornou possível a evolução de sociedades estabelecidas, complexas e hierarquizadas e um ritmo de crescimento muito mais acelerado da população humana. Há cerca de 10.000 anos, antes da evolução da agricultura, a população mundial era de aproximadamente quatro milhões de habitantes, aumentando muito lentamente até chegar a cinco milhões por volta de 5.000 a.C. Depois, no período crucial em que as sociedades estabelecidas desenvolveram-se em escalas aceleradas depois de 5.000 a.C., começou a dobrar a cada milênio, até alcançar 50 milhões em 1.000 a.C., passando a 100 milhões nos 500 anos seguintes e a 200 milhões no ano 200 d.C. Essa tendência ascendente continuou a partir de então, embora não acontecesse em um ritmo estável, sendo frequentemente interrompida pelas consequências da fome e de doenças, sendo que, atualmente, a agricultura sustenta uma população mundial de mais de cinco bilhões de habitantes.
[...]

Fonte: Ponting, C. 1995 [1991]. Uma história verde do mundo. RJ, Civilização Brasileira.

23 novembro 2015

Assim

Samih Al-Qasim

Como se planta uma palmeira no deserto,
Como minha mãe imprime, sobre minha dura testa, um beijo,
Como meu pai tira a capa beduína
E soletra as letras do alfabeto ao meu irmão,
Como lança os capacetes de guerra um pelotão,
Como a haste do trigo se alça na terra estéril,
Como ri uma estrela ao apaixonado,
Como seca a brisa o rosto fatigado do operário,
Como um grupo de amigos começa a cantar,
Como um estranho ao outro sorri afetuosamente,
Como um pássaro volta ao ninho da amada,
Como um menino porta sua pasta,
Como o deserto nota a fertilidade,
Assim pulsa em minha alma o arabismo!

Fonte: Freire, C. 2004. Babel de poemas: uma antologia multilíngüe. Porto Alegre, L&PM.

21 novembro 2015

Entrevista

Felix Guattari & Lula

FG – O PMDB tenta atualmente exercer um tipo de chantagem sobre o corpo eleitoral, com sua campanha dita do ‘voto útil’, proclamando que o PT não tem maturidade suficiente e que seus dirigentes não têm competência real que justifique sua pretensão de gerir os negócios do país. Este tipo de argumento poderá ter impacto sobre a opinião pública?

Lula – Eu acredito que este argumento possa ter um certo peso de influência sobre o eleitorado. Em primeiro lugar, porque a experiência de participação política de nosso povo ainda é muito restrita. Ao longo de toda a nossa vida, e isso desde a proclamação da República, temos sido tratados como massa de manobra. O povo sempre foi induzido a acreditar que não existia para ele nenhuma possibilidade de se autogovernar e que seria preciso alguém que o dirigisse. Em segundo lugar, devido aos preconceitos de classe existentes em nosso país. Muitos setores das camadas médias, em particular as camadas médias altas, e o conjunto da burguesia nacional consideram que a capacidade das pessoas é medida pela quantidade de diplomas ou pelo acúmulo de renda que têm nos bancos, ou por suas propriedades, seus títulos de comércio etc. Uma das grandes tarefas do PT é, precisamente, desmistificar este erro histórico, segundo o qual nós só servimos para trabalhar. E provar que a administração de um Estado não é uma questão técnica, mas sim política.
[...]

Fonte: Guattari, F. 1982. Felix Guattari entrevista Lula. SP, Brasiliense.

19 novembro 2015

Helena de Troia


Gaston Bussière (1862-1928). Hélène de Troie. 1895.

Fonte da foto: Wikipedia.

17 novembro 2015

Reminiscências

Belmiro Braga

Ao meu irmão Domingos Braga.

Nesta em que vivo triste soledade,
os olhos rasos d’água, o peito em ânsia,
recordo-me com mágoa e com saudade
da quadra tão feliz da minha infância.

E entre o viver de agora e essa áurea idade,
que triste, que cruel, que erma distância!...
E a manhã que passou voltar não há de
recendente de tépida fragrância?...

Serras virentes, que não mais transponho,
na retina fiel ainda eu vos tenho
e revejo através de um brando sonho

a casa onde nasci, as mansas reses,
a várzea, o laranjal, a horta, o engenho
e a cruz onde rezei por tantas vezes!...

Fonte: Braga, B. 2011 [1902]. Montezinas (primeiros versos). (Seleção, estudo crítico e organização de Leila Maria Fonseca Barbosa & Marisa Timponi Pereira Rodrigues.) Juiz de Fora, Funalfa.

15 novembro 2015

Olhos verdes


Eles verdes são:
E têm por usança,
Na cor esperança,
E nas obras não.
Cam. Rim.

São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança,
Uns olhos por que morri;
            Que ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
            Depois que os vi!

Como duas esmeraldas,
Iguais na forma e na cor,
Têm luz mais branda e mais forte,
Diz uma – vida, outra – morte;
Uma – loucura, outra – amor.
            Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
            Depois que os vi!

São verdes da cor do prado,
Exprimem qualquer paixão,
Tão facilmente se inflamam,
Tão meigamente derramam
Fogo e luz do coração;
            Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
            Depois que os vi!

São uns olhos verdes, verdes,
Que podem também brilhar;
Não são de um verde embaçado,
Mas verdes da cor do prado,
Mas verdes da cor do mar.
            Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
            Depois que os vi!

Como se lê n’um espelho
Pude ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma
Também refletem os céus;
            Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
            Depois que os vi!

Dizei vós, oh meus amigos,
Se vos perguntam por mim,
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos cor de esperança,
De uns olhos verdes que vi!
            Que ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
            Depois que os vi!

Dizei vós: Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos da cor do mar:
Eram verdes sem espr’ança,
Davam amor sem amar!
Dizei-o vós, meus amigos,
            Que ai de mim!
Não pertenço mais à vida
            Depois que os vi!

Fonte: Dias, G. 2003. I-Juca-Pirama. Os Timbiras. Outros poemas. SP, Martin Claret. Poema publicado em livro em 1851.

14 novembro 2015

Nove anos e um mês no ar

F. Ponce de León

Na última quinta-feira, 12/11, o Poesia contra a guerra completou nove anos e um mês no ar. Ao longo desse período, e até o fim do expediente daquele dia, o contador instalado no blogue registrou 281.279 visitas.

Desde o balanço anterior – Aniversário de nove anos – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Adrian M. Wenner, Allan Larson, Célio Apolinário, Cleveland P. Hickman Jr., Geraldo Pinto Rodrigues, Guerra Junqueiro, João Soares de Paiva, Larry S. Roberts, Miguelángel Meza, Thomas Hardy e Tomás Pinto Brandão. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Olga Boznańska, Władysław Podkowiński e Wojciech Gerson.

10 novembro 2015

Copo de água

Alberto de Lacerda

Que maravilha um copo de água!
Que transparência saborosa!
Penetra a luz nos nossos lábios
Como nos olhos uma rosa.

Ó material, imaterial
Incandescência, ponte clara!
Brasão da terra, misterioso,
Da terra boa, terra amara.

Ó doçura que nos inunda
Como um clarão vindo de tudo,
Ó água que vais abrigando
Neste copo teu riso mudo!

Mudo? Não sei. Talvez caudal
Já tenhas sido, eco celeste,
Céu que te abres ao corpo súplice,
Seda que a sede humana veste!

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia dapoesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1961.

08 novembro 2015

In tenebris

Thomas Hardy

Percussus sum sicut foenum, et aruit cor meum.
[Salmos 101: 5.]

            Wintertime nighs;
But my bereavement-pain
It cannot bring again:
            Twice no one dies.

            Flower-petals flee;
But, since it once hath been,
No more that severing scene
            Can harrow me.

            Birds faint in dread:
I shall not lose old strength
In the lone frost’s black length:
            Strength long since fled!

            Leaves freeze to dun;
But friends can not turn cold
This season as of old
            For him with none.

            Tempests may scath;
But love can not make smart
Again this year his heart
            Who no heart hath.

            Black is night’s cope;
But death will not appal
One who, past doubtings all,
            Waits in unhope.

Fonte (última estrofe): Carpeaux, O. M. 2011. História da literatura ocidental, vol. 3. Brasília, Senado Federal.

06 novembro 2015

Menina com crisântemos


Olga Boznańska (1865-1940). Dziewczynka z chryzantemami. 1894.

Fonte: Wikipedia.

04 novembro 2015

A marca criativa do jornal

Célio Apolinário

Aprendi bem cedo no Binômio, pois era muito jovem quando cheguei lá, que nada podia ser burocrático e rotineiro no jornal. O Wander, editor-chefe, me deu uma verdadeira bronca quando surgi na redação com a foto de um mendigo dormindo na calçada, que pensei que fosse formidável, mas que era igual a milhares de outras publicadas por aí.

– Olha, disse o Wander. Vá lá e faz dez vezes o trabalho e vê se traz alguma coisa diferente. Se não conseguir, é melhor nem aparecer mais.

Fui e melhorei muito o material, mas mesmo assim não foi publicado, pois entenderam que ainda não estava bom.

Esse primeiro teste foi decisivo para mim. Eu tinha [de] estudar muito, pesquisar muito, se quisesse ser um bom fotógrafo. Felizmente, no Binômio, todos colaboravam, era um esforço coletivo, fosse na fotografia ou em qualquer outra área. O que aprendi lá nunca esqueci. Tudo tinha a marca criativa do jornal.

Fonte: Rabêlo, J. M. 1997. Binômio: edição histórica. BH, Armazém de Idéias & Barlavento Grupo Editorial.

02 novembro 2015

Um frio susto corre pelas veias

Basílio da Gama

Um frio susto corre pelas veias
De Caitutu, que deixa os seus no campo;
E a irmã por entre as sombras do arvoredo
Busca co’a vista, e teme d’encontrá-la.
Entram enfim na mais remota e interna
Parte do antigo bosque, escuro e negro,
Onde ao pé de uma lapa cavernosa,
Cobre uma rouca fonte, que murmura,
Curva latada de jasmins e rosas.
Este lugar delicioso e triste,
Cansada de viver, tinha escolhido
Para morrer a mísera Lindóia.
Lá reclinada, como que dormia,
Na branda relva e nas mimosas flores,
Tinha a face na mão, e a mão no tronco
De um fúnebre cipreste, que espalhava
Melancólica sombra. Mais de perto
Descobrem que se enrola no seu corpo
Verde serpente, e lhe passeia e cinge
Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.
Fogem de a ver assim sobressaltados,
E param cheios de temor ao longe;
E nem se atrevem a chamá-la, e temem
Que desperte assustada, e irrite o monstro,
E fuja, e apresse no fugir a morte.
Porém o destro Caitutu, que treme
Do perigo da irmã, sem mais demora
Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes
Soltar o tiro, e vacilou três vezes
Entre a ira e o temor. Enfim sacode 
O arco e faz voar a aguda seta,
Que toca o peito de Lindóia, e fere
A serpente na testa, e a boca e os dentes
Deixou cravados no vizinho tronco.
Açoita o campo co’a ligeira cauda
O irado monstro, e em tortuosos giros
Se enrosca no cipreste, e verte envolto
Em negro sangue o lívido veneno.
Leva nos braços a infeliz Lindóia
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
Conhece, com que dor! no frio rosto
Os sinais do veneno, e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito.
Os olhos, em que Amor reinava, um dia,
Cheios de morte; e muda aquela língua,
Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes
Contou a larga história de seus males.
Nos olhos Caitutu não sofre o pranto,
E rompe em profundíssimos suspiros,
Lendo na testa da fronteira gruta
De sua mão já trêmula gravado
O alheio crime e a voluntária morte.
E por todas as partes repetido
O suspirado nome de Cacambo.
lnda conserva o pálido semblante
Um não sei quê de magoado, e triste,
Que os corações mais duros enternece.
Tanto era bela no seu rosto a morte!

Fonte (versos 4, 10-20, 58): Martins, W. 1977. História da inteligência brasileira, vol. 1. SP, Cultrix & Edusp. Poema – trecho do Canto IV de O Uraguai (cinco cantos) – publicado em livro em 1769.

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