30 maio 2020

Parasitos, patógenos, infecção e doença

Michael Begon, Colin R. Townsend & John L. Harper

No Capitulo 9, definimos um parasito como um organismo que obtém seus nutrientes de um ou de muito poucos indivíduos hospedeiros, normalmente provocando dano, mas sem causar morte imediata. [...]

Quando os parasitos colonizam um hospedeiro, diz-se que este abriga uma infecção. Somente se a infecção ocasiona sintomas claramente prejudiciais ao hospedeiro pode-se dizer que este tem uma doença. Para muitos parasitos, existe a suposição de que o hospedeiro possa sofrer algum dano, mas, como ainda não foi identificado qualquer sintoma especifico, não há doença. Patógeno é o termo que pode ser aplicado a qualquer parasito que provoca uma doença (ou seja, ele é ‘patogênico’).

Fonte: Begon, M.; Townsend, C. R. & Harper, J. L. 2007. Ecologia, 4ª ed. Porto Alegre, Artmed.

28 maio 2020

Los ciclos minerales

Edward S. Deevey Jr.

La tabla periódica incluye más de 100 elementos; a pesar de ello, los ecólogos han definido a la biosfera como el lugar de interacción de solamente cuatro de ellos: hidrógeno, carbono, nitrógeno y oxígeno. En la tabla periódica estos cuatro elementos llevan los números 1, 6, 7 y 8. Esta definición, aunque abarca la mayor parte de la química de la vida, resulta demasiado restringida; pero cuando la ampliamos para incluir el fósforo y el azufre, como hacemos aqui, no llegamos más que al elemento número 16 de la tabla. De esto se deduce que ningún elemento más ligero que el azufre debe ser ignorado, ni por los ecólogos ni por otros. El hecho es que gran parte de los problemas humanos – todos los ambientales al menos – surgen de la excepcional reactividad de seis de los 16 elementos más ligeiros.

Fonte: Deevey, E. S., Jr. 1972 [1970]. In: Scientific American, org. La biosfera. Madri, Alianza.

26 maio 2020

O desenvolvimento da crítica

Thomas Burton Bottomore

A crítica social, de uma forma ou de outra, tem tido seu lugar na maioria das sociedades humanas. Mesmo nas primeiras sociedades, mesmo nas mais simples sociedades tribais dos tempos modernos, havia, provavelmente, ocasiões em que a maneira de organizar uma caça ou uma festa, uma cerimônia religiosa ou um casamento, provocava crítica da parte de um indivíduo ou de um grupo social. Mas em sociedades desse tipo o âmbito da crítica é necessariamente limitado. A força do costume e da tradição é muito grande, a vida é totalmente precária e difícil, e os padrões estabelecidos de comportamento não devem ser sequer levemente alterados ou perturbados, por se temer um desastre total. Qualquer crítica segura do funcionamento da sociedade só é possível nas sociedades que conhecem e utilizam o alfabeto, possuem reservas econômicas, desenvolveram uma vida urbana e, de certa forma, uma classe intelectual profissional.

Fonte: Bottomore, T. B. 1970 [1967]. Críticos da sociedade. RJ, Zahar.

24 maio 2020

A tentação de santo Antônio


Félicien Rops (1833-1898). La Tentation de saint Antoine. 1878.

Fonte da foto: Wikipedia.

22 maio 2020

Garota oculta

Shyima Hall

1.
Todo mundo tem um momento decisivo na vida. Para alguns, é o dia em que se casam ou em que têm um filho. Para outros, é quando finalmente atingem um objetivo muito almejado. Minha vida, no entanto, mudou drasticamente de rumo no dia em que meus pais me venderam como escrava. Eu tinha 8 anos.

Fonte: Hall, S. 2014. Garota oculta. SP, Vergara & Riba.

20 maio 2020

A pandemia e a lenta agonia de um país desgovernado


Felipe A. P. L. Costa

[Apresentação]
Esta compilação reúne 11 artigos publicados no Jornal GGN, entre 2/4 e 19/5/2020. Como a urgência e a pressa geradas pela crise em curso – aliadas a uma miopia mal corrigida – costumam resultar em erros de digitação, passei a publicar versões corrigidas (ou com menos erros) no blogue Poesia Contra a Guerra. Incorporei aqui essas correções. Além disso, no processo de edição, corrigi erros adicionais (sempre que os detectei) e promovi ajustes pontuais. Não alterei o conteúdo, mas removi certos trechos que aqui soariam excessivamente redundantes. O objetivo foi tão somente facilitar a leitura.

*

Nota: A compilação pode ser capturada (na íntegra) na página do autor no portal Research Gate, AQUI.

18 maio 2020

Como entramos e como iremos sair da crise. II. A tragédia e a farsa


Felipe A. P. L. Costa [*]

1. Breve recapitulação e situação de momento.

Em 21 de janeiro, a OMS (Organização Mundial de Saúde) divulgou um primeiro alerta mundial a respeito de um novo e misterioso tipo de pneumonia. Os primeiros casos foram detectados em Wuhan, capital da província de Hubei, na região central da China. Após ter se espalhado por todas as províncias chinesas, o coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (Sars-CoV-2) foi exportado para outros países – para detalhes adicionais e referências, ver artigo anterior (aqui e aqui).

Em 11/3, diante da escalada nas estatísticas, a epidemia da doença do coronavírus 2019 (Covid-19), até então classificada pela OMS como uma emergência de saúde pública de interesse internacional, passou a ser referida e caracterizada como uma pandemia.

Em números absolutos, os 20 países mais afetados concentram agora 84% dos casos (de um total de 4.769.177) e 91% das mortes (de um total de 316.898) [1]. As estatísticas continuam a escalar, mas a um ritmo declinante. Em termos globais, muitos países já passaram pelo topo da curva e estão a descer o outro lado do morro [2].

No que segue, vou concentrar a minha atenção em dois países, Estados Unidos e Brasil.

2. A pandemia chega ao Novo Mundo.

Os primeiros casos nos Estados Unidos e no Brasil, de acordo com as autoridades sanitárias dos dois países, foram registrados na primeira e na segunda quinzena de fevereiro, respectivamente. Até meados de março, no entanto, a opinião pública ainda não tinha se dado conta de que já estávamos pisando em terreno minado. No Brasil, por exemplo, ninguém sequer aventou a possibilidade de suspender o Carnaval (21-25/2) (mas ver aqui) – exceto a posteriori...

Entre nós, brasileiros, diante de uma expansão aparentemente morosa (embora, os números subterrâneos já estivessem a escalar), muita gente passou a imaginar que a Covid-19 de fato não representaria uma ameaça séria à saúde pública.

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FIGURA. A figura que ilustra este artigo mostra o crescimento no número de casos da Covid-19 em cinco países (eixo vertical; em escala logarítmica, desde 1 até 10 milhões), entre 15/2 e 16/5. Estados Unidos, Rússia, Brasil e Reino Unido lideram a lista dos países mais afetados; a Itália foi o primeiro epicentro ocidental da pandemia. A taxa de crescimento diário no número de novos casos está abaixo de 3% em três desses países (Itália, 1,7%; EUA, 2,1%, e Reino Unido, 2,9%), mas ainda é relativamente alta nos outros dois (Brasil, 6,3%, e Rússia, 5,9%). (Compare com a figura que ilustra o artigo ‘O mundo, o país e a atropelada russa’.)

*

Mas a origem do problema – i.e., das estatísticas exageradamente elevadas com as quais passamos a conviver nas últimas semanas – tem muito a ver com a inércia e a má-fé dos mandatários maiores dos dois países. Donald Trump e Jair Bolsonaro ainda não se cansaram de fazer declarações públicas pondo em dúvida a relevância e o impacto da pandemia. Logo no início, Trump passou a usar o rótulo ‘chinês(a)’ em relação ao vírus e à doença (ver aqui), enquanto Bolsonaro insistia em caracterizar a Covid-19 como uma ‘gripezinha’ (ver aqui).

Trabalho duro que é bom, nada. Tanto é que pouco ou nada parece ter sido feito em termos de prevenção, notadamente no caso brasileiro. Quando a epidemia ultrapassou os 100 primeiros casos registrados (3/3, nos EUA; 14/3, no Brasil), ainda havia quem acreditasse que a adoção de medidas de mitigação seria algo desnecessário. Ou que as medidas seriam de aplicação apenas pontual e, de resto, bastante passageira. Ainda hoje, declarações evasivas, quando não abertamente mentirosas, continuam a inundar a opinião pública dos dois países.

3. Dois ilusionistas egocêntricos.

Em 19/3, os EUA ultrapassaram os 10 mil casos registrados (13.898, em 19/3). O discurso de Trump só experimentaria uma reviravolta no final daquele mês, quando o país ultrapassou os 100 mil casos (105.217, em 27/3). Em 30/3, ele disse que seria um “trabalho muito bom” (ver aqui) se os EUA saíssem da pandemia com ‘apenas’ 100 mil mortes. Em 23/4, ao que parece querendo demonstrar preocupação e interesse pela luta contra a Covid-19, ele aventou a possibilidade de que a administração de desinfetantes (por via oral ou por injeção) talvez fosse capaz de ‘limpar’ o interior do corpo, livrando assim os indivíduos infectados do vírus (ver aqui). A insanidade presidencial teve consequências... Nos dias que se seguiram, a imprensa reportou que cidadãos de diferentes estados do país estavam sendo hospitalizados após terem ingerido desinfetantes. Trump, por sua vez, tratou de dizer que não assumia nenhuma responsabilidade pelos desdobramentos de sua fala (ver aqui).

As falas do presidente brasileiro são igualmente desencontradas e insanas. Em 28/4, tendo o país ultrapassado a marca de 5 mil mortes (e mais de 70 mil casos), Bolsonaro foi questionado por um repórter sobre a escalada dos números, ao que ele respondeu “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias [um dos sobrenomes dele], mas não faço milagre” (ver aqui).

Os dois presidentes não estão pessoalmente preocupados com a pandemia. Muito longe disso. Ambos têm outras preocupações: ambos são candidatos à reeleição – em 2020, nos EUA; em 2022, no Brasil. Razão mais do que suficiente – aos olhos deles e de seus respectivos gurus e conselheiros – para não se colocar a mão dentro de uma cumbuca. (Na Rússia, curiosamente, Vladimir Putin segue o mesmo receituário, embora não pelos mesmos motivos.)

Em resumo, se envolver com problemas (em especial, os espinhosos) – razão pela qual, aliás, os políticos são eleitos nas chamadas sociedades democráticas – pode comprometer algo verdadeiramente sério e importante: a reeleição.

4. Coda.

Trump e Bolsonaro ignoram os mortos. Ignoram os hospitais congestionados e mal equipados. Ignoram os problemas sociais.

Ambos preferem se envolver com ilusionismo. Afinal, foi o ilusionismo (e doses generosas de ‘crimes dentro da lei’) que os conduziu até a presidência. Ambos têm equipes (numerosas e caras) especializadas em promover a ‘luta política virtual’. E o uso corriqueiro de redes sociais ocupa a maior parte da agenda desse pessoal, seja para fins de autopromoção, seja para alertar os seguidores (bem menos numerosos do que eles próprios alardeiam) a respeito de novos e perigosos inimigos, como o ‘vírus chinês’ ou o ‘vírus comunista’.

E eles não vão abandonar o roteiro que adotaram. Lembrando que, como bem resumiu o linguista e ativista estadunidense Noam Chomsky (ver aqui), “Trump é tragédia, Bolsonaro é farsa”.

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Notas.

[*] Para detalhes e informações sobre o livro mais recente do autor, O que é darwinismo (2019), inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros livros e artigos, ver aqui.

[1] As estatísticas são de hoje (18) à tarde. Os 20 primeiros países da lista podem ser arranjados em cinco grupos: (a) Acima de 1 milhão de casos – Estados Unidos; (b) Entre 200 e 500 mil – Rússia, Brasil, Reino Unido, Espanha e Itália; (c) Entre 100 e 200 mil – França, Alemanha, Turquia, Irã e Índia; (d) Entre 50 e 100 mil – Peru, China, Canadá, Arábia Saudita e Bélgica; e (e) Entre 40 e 50 mil – México, Chile, Países Baixos e Paquistão. Desde o início, estou a acompanhar as estatísticas mundiais em dois painéis, ‘Mapping 2019-nCov’ (Johns Hopkins University, EUA) e ‘Worldometer: Coronavirus’ (Dadax, EUA). Mais recentemente, passei a acompanhar as estatísticas nacionais também por meio de um painel do Ministério da Saúde.

[2] Para uma introdução ao estudo dos padrões de crescimento, ver as duas primeiras partes do artigo ‘Corpos, gentes, epidemias e... dívidas’ (aqui e aqui).

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16 maio 2020

Gaivota entre juncos


Karl Wilhelm Diefenbach (1851-1913). Möwe im Schilf. 1899.

Fonte da foto: Wikipedia.

14 maio 2020

Uma nota de retificação



Resumo. Esta nota ajusta o conteúdo de artigo – Covid-19 – Como entramos e como iremos sair da crise. I. Um apanhado geral e uma sugestão de guia – publicado hoje (14) neste Jornal GGN. Mais especificamente, esta nota atualiza as estatísticas e corrige uma parte crucial das análises apresentadas naquele artigo. Passou da hora de os governantes soarem o alerta e acenderem o sinal vermelho.

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Levando em conta as estatísticas divulgadas pelo Ministério da Saúde (aqui) nas últimas 24 horas, ontem (13) e hoje (14), minha interpretação dos resultados (item 4 do artigo anterior, ‘Construindo um gráfico’) deve ser revista.

Minha interpretação de momento – incluindo a figura que acompanha esta nota – é a que segue.

Atualizando o gráfico.

Quando os valores de β (para detalhes, ver artigo anterior) são colocados em um gráfico, sete agregados de pontos podem ser identificados (elipses A-G na figura que acompanha esta nota).

A interpretação dos cinco primeiros agregados (A-E) segue inalterada, a saber:

(A) Entre 21 e 30/3, intervalo durante o qual a taxa de crescimento declinou desde β = 27,8% até β = 7,6% (houve um excepcional 37%, em 22/3, mas aí se trata de um ‘ponto fora da curva’);

(B) Entre 31/3 e 6/4, quando, após uma inesperada e significativa escalada (30-31/3), a taxa tornou a declinar, dessa vez desde β = 24,8% até β = 8,3%;

(C) Entre 7 e 14/4, quando, após uma segunda e significativa escalada (6-7/4), a taxa tornou a declinar uma terceira vez, agora desde β = 16,1% até β = 5,5%;

(D) Entre 15 e 20/4, quando, após uma terceira escalada (14-15/4), a taxa tornou a declinar uma quarta vez, variando desde β = 12,1% até β = 5%; e

(E) Entre 21 e 30/4, intervalo durante o qual – pela primeira vez! – a taxa oscilou para cima, variando entre β = 5,8% e β = 10,4%.

Mas a interpretação dos dois últimos agregados deve ser alterada, a saber:

(F) Entre 1 e 9/5, quando, após uma queda significativa (30/4-1/5), a taxa tornou a oscilar para cima uma segunda vez, variando entre β = 4,9% e β = 9,2%; e

(G) Entre 10 e 14/5, quando, após uma nova queda significativa (9-10/5), a taxa tornou a oscilar para cima, agora variando entre β = 3,5% e β = 7,4%.

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FIGURA. A figura que acompanha esta nota ilustra a variação na taxa de crescimento diário no número de novos casos da Covid-19 na população brasileira (eixo vertical; β expresso em porcentagem), entre 21/3 e 14/5. Sete agregados de pontos podem ser identificados (A-G), o último dos quais (G) ainda está em formação (para detalhes, ver o texto). As setas estariam a representar algo como a direção e o sentido da força dominante dentro de cada agregado: setas pretas empurram para baixo e as vermelhas, para cima. A linha tracejada representa algo como a trajetória média de todos os pontos. (Em termos de análise estatística, basta dizer que os resultados são expressivos e bastante significativos.) Em alaranjado, os resultados de março; em verde, os de abril; em roxo, os de maio; os quadrados em azul correspondem a domingos. O gráfico menor no canto superior direito ilustra a variação no tempo de duplicação (TD) no número de casos, no mesmo intervalo de tempo do gráfico maior. (O eixo vertical indica o valor de TD, em dias.) Os valores extremos da série (ignorando o resultado de 22/3 – ver texto) foram 3,1 (31/3) e 20,4 (11/5), indicando que (a) mantido o valor de β obtido para 31/3, seriam necessários 3,1 dias para dobrar o número de casos; e (b) mantido o valor de 11/5, seriam necessários 20,4 dias para dobrar o número de casos. Em meio a uma sucessão de oscilações, é possível notar uma lenta escalada da curva.

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Coda.

O comportamento geral da taxa de crescimento, portanto, poderia ser resumido da seguinte maneira: após quatro intervalos de oscilações para baixo (A-D, na figura), o valor de β passou a oscilar para cima e assim tem sido há três intervalos (E-G), já incluindo aí os resultados de ontem e hoje (13-14/5).

De momento, caberia dizer apenas o seguinte: Passou da hora de os governantes soarem o alerta e acenderem o sinal vermelho.

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13 maio 2020

Como entramos e como iremos sair da crise. I. Um apanhado geral e uma sugestão de guia



1. Breve recapitulação histórica.

Em 21 de janeiro, a OMS (Organização Mundial de Saúde) divulgou um alerta mundial [1] a respeito de um novo e misterioso tipo de pneumonia. O alerta informava que os primeiros casos haviam sido detectados em Wuhan, capital da província de Hubei, na região central da China [2]. Relatava ainda que, em 7/1, autoridades chinesas haviam anunciado a identificação do agente etiológico da doença [3].

coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (Sars-CoV-2) rapidamente se espalhou por todas as províncias chinesas. Não levou muito tempo e o vírus ganhou o mundo [4]. Em 12/2, havia 45.171 casos da Covid-19, 44.730 na China e 441 em outros 24 países. Em menos de três semanas havia registros em todos os continentes (exceto a Antártida). Em 1/3, já eram 87.137 casos, 79.968 na China e 7.169 em outros 58 países.

Em 11/3, diante da escalada nas estatísticas, a epidemia da doença do coronavírus 2019 (Covid-19), até então classificada pela OMS como uma emergência de saúde pública de interesse internacional, passou a ser referida e caracterizada como uma pandemia [5].

2. Quando o vírus chegou ao Brasil?

A pandemia teria chegado ao país no início de fevereiro, talvez um pouco antes. Segundo as estatísticas do Ministério da Saúde (aqui), porém, o primeiro caso só foi identificado em 26/2. A posição do ministério deve ser alterada nos próximos dias, sobretudo diante dos recentes achados em torno do assunto [6].

O xis da questão aqui seria o seguinte: de fins de fevereiro até meados de março, os números permaneceram em patamares bem baixos (levando em conta as estatísticas do MS). E isso parece ter tido efeitos entorpecentes em parcelas expressivas da opinião pública. Diante de preocupações mais urgentes impostas pela crise política que já estávamos a enfrentar, a chegada de um surto dessa nova ‘gripe’ passou a soar como algo improvável e, por isso mesmo, irrelevante. (O tal surto não chegava! Só estava no noticiário e o noticiário, como o nosso iluminado presidente não se cansa de dizer, é um amontoado de mentiras.)

Em meados de março, a opinião pública – e muitos dos técnicos envolvidos com o problema – ainda não tinha se dado conta de que já estávamos pisando em terreno minado. Com uma expansão até então aparentemente morosa (embora, os números subterrâneos já estivessem a escalar – ver [6]), muita gente graúda (incluindo aí jornalistas e formadores de opinião) passou a imaginar que de fato a Covid-19 não representaria uma ameaça séria aos brasileiros [7]. Ou que a pandemia não nos atingiria para valer, ao menos não com a força que estava a atingir países como a China e a Itália, os dois primeiros epicentros.

Por parte dos governantes, pouco ou nada parece ter sido feito em termos de prevenção. Com a pandemia batendo à porta – antes de derrubá-la –, ainda havia quem acreditasse que a adoção de medidas de mitigação seria algo desnecessário. Ou que as medidas seriam de aplicação apenas pontual e, de resto, bastante passageira – aqui e ali, por uma ou duas semanas.

E assim chegamos aos 10 casos, em 14/3. (Mas ainda sem mortes, segundo as estatísticas do MS.) Sem barreiras de contenção, o vírus continuou a circular livremente. Os contágios aumentaram, a doença se alastrou e as estatísticas começaram a escalar. Uma semana mais tarde, coincidindo com o fim do verão, ultrapassamos a marca dos primeiros mil casos (21/3). Outras duas semanas e batemos na casa dos 10 mil casos (4/4). O ritmo então arrefeceu – a exemplo do que já tinha ocorrido em outros países [8]. Foram necessárias mais quatro semanas para chegamos aos 100 mil casos (3/5) [9].

3. Um guia confiável.

Quando falo em ritmo ou velocidade da pandemia, estou a me referir ao comportamento momentâneo da taxa de crescimento diário no número de novos casos. É um parâmetro bastante confiável. E é relativamente simples e de fácil acesso a qualquer um que esteja interessado em monitorar coisas que estão a crescer ou a se expandir, como é o caso das epidemias [10].

Por definição, o valor da taxa de crescimento (simbolizada aqui pela letra grega minúscula β) pode oscilar de um dia para o outro. E a oscilação pode ser de cima para baixo (quando então dizemos que o parâmetro declinou) ou de baixo para cima (dizemos que o parâmetro escalou).

A taxa de crescimento, assim como fiz em artigos anteriores [11], foi definida como β = ln [Y(t + 1) / Y(t)], onde Y(t + 1) é o número de casos no dia (t + 1), Y(t) é o número de casos no dia anterior, e ln indica logaritmo natural.

Monitorar o comportamento da taxa de crescimento no número de casos tem se revelado um modo bastante simples e confiável de descrever o comportamento da pandemia [12]. Eu diria mesmo que se trata de um guia capaz de nos levar ao outro lado da ponte.

4. Construindo um gráfico.

Quando os valores de β são colocados em um gráfico, sete agregados de pontos podem ser identificados (elipses A-G na figura que acompanha este artigo), a saber:

(A) Entre 21 e 30/3, intervalo durante o qual a taxa de crescimento declinou desde β = 27,8% até β = 7,6% (houve um excepcional 37%, em 22/3, mas aí se trata de um ‘ponto fora da curva’);

(B) Entre 31/3 e 6/4, quando, após uma inesperada e significativa escalada (30-31/3), a taxa tornou a declinar, dessa vez desde β = 24,8% até β = 8,3%;

(C) Entre 7 e 14/4, quando, após uma segunda e significativa escalada (6-7/4), a taxa tornou a declinar uma terceira vez, agora desde β = 16,1% até β = 5,5%;

(D) Entre 15 e 20/4, quando, após uma terceira escalada (14-15/4), a taxa tornou a declinar uma quarta vez, variando desde β = 12,1% até β = 5%;

(E) Entre 21 e 30/4, intervalo durante o qual – pela primeira vez! – a taxa oscilou para cima, variando entre β = 5,8% e β = 10,4%;

(F) Entre 1 e 5/5, intervalo durante o qual a taxa oscilou sem direção definida (pela primeira vez), variando entre β = 4,9% e β = 6,9%; e

(G) Entre 6 e 12/5, quando, após uma quarta escalada (5-6/5), a taxa tornou a declinar uma quinta vez, agora desde β = 9,2% até β = 3,5%.

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FIGURA. A figura que acompanha este artigo ilustra a variação na taxa de crescimento diário no número de novos casos da Covid-19 na população brasileira (eixo vertical; β expresso em porcentagem), entre 21/3 e 12/5. Sete agregados de pontos podem ser identificados (A-G), o último dos quais (G) ainda está em formação (para detalhes, ver o texto). As setas estariam a representar algo como a direção e o sentido da força dominante dentro de cada agregado e a linha tracejada, algo como a trajetória média de todos os pontos. (Em termos de análise estatística, basta dizer que os resultados são expressivos e bastante significativos.) Em alaranjado, os resultados de março; em verde, os de abril; em vermelho, os de maio; os quadrados em azul correspondem a domingos. O gráfico menor no canto superior direito ilustra a variação no tempo de duplicação (TD) no número de casos, no mesmo intervalo de tempo do gráfico maior. (O eixo vertical indica o valor de TD, em dias.) Os valores extremos da série (ignorando o resultado de 22/3 – ver texto) foram 3,1 (31/3) e 20,4 (11/5), indicando que (a) mantido o valor de β obtido para 31/3, seriam necessários 3,1 dias para dobrar o número de casos; e (b) mantido o valor de 11/5, seriam necessários 20,4 dias para dobrar o número de casos. Em meio a uma sucessão de oscilações, é possível notar uma lenta escalada da curva.

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5. Construindo um segundo gráfico.

Outra maneira de expressar a variação referida acima é usar os valores de β para calcular o chamado tempo de duplicação. Trata-se de um parâmetro que nos diz em quantos dias o número de casos irá dobrar, mantida a taxa de crescimento no número de novos casos.

No âmbito deste artigo, o tempo de duplicação (TD) foi definido como TD = ln 2 / β ≈ 0,6931 / β, onde β é a taxa de crescimento (como definida antes) e ln indica logaritmo natural.

Como o leitor já deve ter percebido, TD é um parâmetro inversamente proporcional à taxa de crescimento. (Quanto mais acelerado o ritmo de uma pandemia, menor será o tempo de duplicação no número de casos; quanto mais lento o ritmo, maior o tempo de duplicação.) A rigor, estamos aqui a documentar o mesmo fenômeno, apenas de um jeito talvez um pouco mais compreensível.

Pois bem, o pequeno gráfico que está embutido no canto superior direito da figura que acompanha este artigo mostra a variação ocorrida em TD, no mesmo intervalo em que o gráfico principal retrata o que ocorreu com a taxa de crescimento. Não é difícil perceber que quando um sobe, o outro desce, e vice-versa.

6. Coda.

Em se tratando de epidemias que se propagam por contágio (não é o caso da dengue, por exemplo, que se propaga por meio de um vetor), devemos ter em mente o seguinte: há sempre um intervalo de tempo entre a chegada do patógeno (um vírus, no caso da Covid-19) em um lugar novo e a identificação do primeiro caso naquele lugar. Assim como há um intervalo entre a infecção de um indivíduo não infectado e a identificação dele como um novo caso.

Tal distinção é particularmente preocupante em se tratando da pandemia em curso, pois há suspeitas de que a maior parcela dos portadores (parcela cujas dimensões ainda são desconhecidas) é dita ser assintomática. A questão ganhou o imaginário popular sob o rótulo de subnotificações. Este é de fato um problema sério, mas não pelos motivos que alguns estão a imaginar. Não cabe aqui entrar em detalhes, mas o xis da questão (em termos metodológicos) seria o seguinte. Com exceção talvez da Coreia do Sul e de alguns países insulares, as estatísticas reais são desconhecidos. (E como tal deverão permanecer.) Todavia, isso não quer dizer que os números ruins ou errados sejam inúteis. Pois não são.

Na verdade, números ruins podem ser muito úteis (mesmo porque eles podem ser ajustados ou corrigidos). Para entendermos esta última afirmativa, devemos atentar para dois pontos. É fato que as subnotificações (tanto no número de casos como no de mortes) embaçam e distorcem a imagem que estamos a construir da realidade. Em termos puramente metodológicos, no entanto, o que de fato preocupa é a distorção sistemática (não aleatória) dos dados. Se os erros são aleatórios, ainda é possível obter padrões informativos (evidentemente, desde que existam tais padrões).

E é exatamente isso o que os técnicos, pesquisadores e estudiosos devem fazer em um momento de crise: obter e processar os dados disponíveis (o mais rapidamente possível), de modo a produzir informações confiáveis que possam municiar e eventualmente orientar o público, os gestores e os governantes a respeito do rumo que as coisas estão a tomar.

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Notas.

[*] Para detalhes e informações sobre o livro mais recente do autor, O que é darwinismo (2019), inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros livros e artigos, ver aqui.

[1] No sítio da OMS (aqui), ver Situation report – 1. Em 21/1, havia 282 casos confirmados da Covid-19: 278 na China (258 em Hubei, 14 na província de Guangdong, cinco em Pequim e um em Xangai) e outros quatro fora do país (dois na Tailândia, um no Japão e um na Coreia do Sul). Todos estes quatro casos foram exportados de Wuhan.

[2] Wuhan é uma grande metrópole, com mais de 11 milhões de habitantes. E o mais importante: anos atrás, a cidade foi designada pelo governo chinês como um dos polos de desenvolvimento econômico do país – ver Zongwei, X. 2018. China unveils national central city strategy. ChinaWatch.

[3] O primeiro registro de um indivíduo hospitalizado data de 12/12/2019 – ver Wu, F. & mais 18. 2020. A new coronavirus associated with human respiratory disease in China. Nature 579: 265-9.

[4] Ver Du, Z & mais 6. 2020. Proactive social distancing mitigates COVID-19 outbreaks within a month across 58 mainland China cities. medRxiv 2020.04.22.20075762; doi: https://doi.org/10.1101/2020.04.22.20075762.

[5] No sítio da OMS (aqui), role a página e vá até o informe do dia 11/3.

[6] Uma data provável seria 4/2 – ver Delattore, E & mais 3. 2020. Tracking the onset date of the community spread of SARS-CoV-2 in Western Countries. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz doi: 10.1590/0074-02760200183.

[7] Houve quem dissesse – e ainda há quem diga – que o vírus seria imobilizado, enfraquecido ou destruído pelos raios de sol (e.g., aqui). Como estamos em um país predominantemente tropical, nós (ou quase todos nós) estaríamos a salvo.

[8] No início de uma epidemia, o número de casos tende a crescer de modo exponencial. Foi o que se viu entre nós e em outros países – ver aqui. Mas esse ritmo é facilmente contido por meio da adoção de medidas de contenção. Na China, por exemplo, o ritmo exponencial foi quebrado em poucos dias – ver Maier, B. F. & Brockmann, D. 2020. Effective containment explains subexponential growth in recente confirmed COVID-19 cases in China. Science 10.1126/science.abb4557.

[9] Hoje (13/5), de acordo com as estatísticas do Ministério da Saúde (aqui), chegamos aos 188.974 casos. Já são 13.149 mortes.

[10] Sobre padrões de crescimento numérico, ver as duas primeiras partes do artigo ‘Corpos, gentes, epidemias e... dívidas’ (aqui e aqui).

Estou a acompanhar as estatísticas mundiais em dois painéis, Mapping 2019-nCov (Johns Hopkins University, EUA) e Worldometer: Coronavirus (Dadax, EUA). Mas a fonte das estatísticas brasileiras é o painel do Ministério da Saúde (aqui).
Vejamos um exemplo de como calcular o valor de β. Considere o total de casos registrados em todo o mundo entre os dias 29/2 e 5/3, a saber: 86.604, 88.585, 90.443, 93.016, 95.314 e 98.425. Podemos calcular o valor de β para os dias 1-5/3. Para o dia 1/3, o valor seria β = ln (88.585 / 86.604) ≈ ln 1,0229 ≈ 0,0226. Para os outros quatro dias, os valores seriam os seguintes: 0,0208 (= ln 90.443 / 88.585); 0,0280 (= ln 93.016 / 90.443); 0,0244 (= ln 95.314 / 93.016); e 0,0321 (= ln 98.425 / 95.314).
Os resultados acima são então usados para calcular os respetivos valores do tempo de duplicação. Para o dia 1/3, por exemplo, o valor seria TD = 0,6931 / 0,0226 ≈ 30,7 dias. Para os outros quatro dias, os valores seriam 33,3 dias (= 0,6931 / 0,0208); 24,8 (= 0,6931 / 0,028); 28,4 (= 0,6931 / 0,0244); e 21,6 (= 0,6931 / 0,0321).

[12] Para exemplos e detalhes técnicos, ver (a) Scarabel, F. & mais 3. 2020. Canada needs to rapidly escalate public health interventions for its COVID-19 mitigation strategies. SSRNhttp://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3559929 [postado em 24/3/2020]; (b) Pellis, L. & mais 16. 2020. Challenges in control of Covid-19: short doubling time and long delay to effect of interventions. medRxiv 2020.04.12.20059972; doi: https://doi.org/10.1101/2020.04.12.20059972 [postado em 15/4/2020]; e (c) Xu, S. & mais 3. 2020. Estimating the growth rate and doubling time for short-term prediction and monitoring trend during the COVID-19 pandemic with a SAS macro. medRxiv 2020.04.08.20057943; doi: https://doi.org/10.1101/2020.04.08.20057943 [postado em 20/4/2020].

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12 maio 2020

Treze anos e sete meses no ar

F. Ponce de León

Nesta terça-feira, 12/5, o Poesia contra a guerra completa 13 anos e sete meses no ar.

Desde o balanço anterior – ‘Treze anos e meio no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Karl Sax, Marcos Nascimento Magalhães e Yone Rodrigues. Além de outros que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: František Kupka, Mariquita Jenny Moberly e Zach Weinersmith & três colegas (Maggie Koerth, Laura Bronner e Jasmine Mithani).

10 maio 2020

Valor esperado

Marcos Nascimento Magalhães

Neste capítulo, vamos apresentar o conceito de valor esperado ou média de uma variável aleatória. Essa quantidade é frequentemente utilizada como resumo do comportamento da variável e serve com parâmetro para vários modelos como Poisson e Normal. Veremos, também, como calcular o valor esperado de funções de variáveis aleatórias. Em contextos mais formais, o valor esperado também é denominado de esperança matemática. Usaremos os três nomes de forma indistinta, ao longo do capítulo.

Fonte: Magalhães, M. N. 2011. Probabilidade e variáveis aleatórias, 3ª ed. SP, Edusp.

08 maio 2020

A escala amarela


František Kupka (1871-1957). La Gamme jaune. 1907.

Fonte da foto: Wikipedia. Há um segundo quadro do pintor com o mesmo título.

06 maio 2020

Reparos a uma matéria da Folha: A tendência no Brasil não está pior do que já esteve na Itália, Espanha e EUA




Resumo. Além de reiterar a advertência que fiz anteriormente, argumentando que uma matéria publicada na Folha de S. Paulo (e reproduzida em outros lugares) carecia de reparos, este artigo dimensiona o tamanho do problema. A situação da pandemia no país é grave e exige medidas sérias e urgentes, algo que parece definitivamente fora dos planos do Palácio do Planalto. Todavia, ao contrário do que alardeou a matéria da FSP, a expansão da covid-19 em terras brasileiras não está pior (leia-se mais acelerada) do que já esteve (ou ainda está) na Itália, na Espanha e nos Estados Unidos.

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Em 29/4, a Folha de S. Paulo publicou uma matéria intitulada ‘Com aceleração da Covid-19, Brasil tem tendência pior que Itália, Espanha e EUA’, de Diana Yukari, Fábio Takahashi & Guilherme Garcia.

O assunto, claro, é dos mais pertinentes e relevantes. O texto da reportagem, no entanto, abriga erros e mal-entendidos graves. A começar pelo título. Os termos ‘aceleração’ e ‘tendência pior’, por exemplo, não correspondem às estatísticas (nem antes nem agora) e, portanto, não deveriam ter sido usados.

1. Onde e por que a FSP errou?

Como eu havia alertado em artigo anterior (aqui), a matéria carece de ajustes e correções. Não sou assinante da FSP, mas visito o sítio do jornal todos os dias e não notei a publicação de qualquer tipo de reparo. (É bem possível que os reparos tenham sido publicados em local fora do meu alcance. No entanto, mantenho contato com alguns jornalistas – incluindo colegas que trabalham na Folha – e nenhum deles me chamou a atenção para tal correção.)

São dois erros principais. O mais óbvio deles está na conclusão. O menos óbvio está na metodologia.

Em primeiro lugar, cabe registrar o seguinte: o ritmo da pandemia em terras brasileiras não está (ou ainda não está) mais acelerado do que já esteve nos três países citados. Em segundo lugar, se estivesse mais acelerado, o modo de detectar isso não seria o modo sugerido pela reportagem [1].

É um erro, por exemplo, querer estabelecer paralelos com base tão somente na cronologia de um surto epidêmico – e.g., dividir o surto em semanas, pressupondo que as estatísticas de uma dada semana (5ª, 10ª, 20ª etc.) serão equivalentes em diferentes lugares (países). Pois foi o que fizeram os repórteres da Folha. Em vez de promover comparações com base em analogias cronológicas, mais acertado seria olhar para a velocidade de disseminação da doença em diferentes lugares. Por exemplo, quanto tempo as estatísticas levaram para saltar de 1 mil para 10 mil registros ou de 10 mil para 100 mil?

Pois bem. Com base nas estatísticas dos nove países que hoje integram o Grupo dos 100 mil (ver adiante), apresento a seguir um modo de como tal comparação poderia ser levada a termo.

2. Efetivos populacionais e a pandemia.

No domingo (3/5), o Brasil passou a integrar o Grupo dos 100 mil – são hoje nove países, cada um deles a contabilizar mais de 100 mil casos da covid-19 [2].

É uma notícia desagradável e preocupante. Mas não é bem uma surpresa. Por vários motivos. Um deles é o fato óbvio de que o país é um dos 10 mais populosos do mundo [3].

Tal ponderação não implica dizer que a parte de cima da lista dos países afetados pela pandemia não nos revele algumas surpresas. Pois revela.

Em primeiro lugar, é notável a ausência de alguns dos países mais populosos do mundo. A Índia, por exemplo, o segundo país mais populoso, está em 15º da lista. Paquistão (5º mais populoso) é o 24º. Indonésia (4º) é o 36º e Bangladesh (8º), o 37º. A Nigéria (7º) está ainda mais atrás. A China, ainda o país mais populoso e o primeiro epicentro da pandemia, parece ter controlado o surto da doença dentro do seu território.

A parte de cima da lista também chama a atenção pela presença de países que abrigam populações bem menores que a do Brasil (ainda que em todos eles a densidade demográfica seja bem superior). É o caso da Espanha (46,7 milhões de habitantes) e do trio dos 60, integrado aqui por Itália (60,6 milhões), França (65,1) e Reino Unido (67,5).

3. Grupo dos 100 mil.

Decidi então comparar a situação do Brasil com a dos demais oito países que hoje integram o Grupo dos 100 mil. Para cada país, eu calculei uma taxa de crescimento diário no número de novos casos. A rigor, calculei dois valores para cada país, levando em conta dois intervalos sucessivos: (a) o valor da taxa durante o intervalo em que o país saltou de 1 mil para 10 mil casos (β10); e (b) o valor da taxa durante o intervalo em que o país saltou de 10 mil para 100 mil casos (β100).

Estes dois valores foram definidos como β100 = ln [Y(100) / Y(10)] / t(100), e β10 = ln [Y(10) / Y(1)] / t(10), onde Y(100) é o número de casos que foi divulgado no dia em que o país superou a marca de 100 mil casos; Y(10) é o número divulgado no dia em que o país superou 10 mil casos; Y(1) é o número divulgado na véspera do dia em que o país superou 1 mil casos; t(100) é o intervalo de tempo (dias) que o país levou para saltar de 10 mil para 100 mil casos; t(10) é o intervalo que o país levou para saltar de 1 mil para 10 mil casos; e ln indica logaritmo natural.

4. Construindo um gráfico.

Quando os valores de β assim obtidos são colocados em um gráfico (ver a figura que acompanha este artigo), podemos constatar algumas coisas.

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FIGURA. A figura que acompanha este artigo ilustra uma comparação entre nove países na taxa de crescimento no número de casos da covid-19 (β, em percentual; eixo horizontal superior). A comparação envolveu dois intervalos sucessivos: (a) o valor da taxa durante o intervalo em que cada país saltou de 1 mil para 10 mil casos, β10 (beta-10); e (b) o valor da taxa durante o intervalo em que cada país saltou de 10 mil para 100 mil casos, β100 (beta-100). Note que a França é o único país com algum valor inferior aos valores do Brasil. (Os países estão listados de acordo com o número total de casos.)

*

Duas constatações nos interessam aqui. Em primeiro lugar, é possível notar que há uma queda acentuada e generalizada no valor de β. Assim é que, com exceção dos Estados Unidos, o valor de β100 é mais ou menos a metade do de β10. (Não vamos aqui entrar em detalhes, mas esta queda já indica que o ritmo de disseminação da pandemia arrefeceu em todos os países, mesmo nos EUA.)

Em segundo lugar, é possível perceber que o menor de todos os valores de β10 foi o do Brasil. O país teve também o segundo menor valor de β100, ficando atrás apenas da França. (No geral, entre 1 mil e 100 mil casos, França e Brasil tiveram taxas de crescimento diário bem próximas: 11,2% e 11,3%, respectivamente.)

5. Coda.

Os resultados mostram que, ao menos por enquanto, a disseminação da pandemia entre nós não está pior (leia-se mais acelerada) do que já esteve nos três países (Itália, Espanha e Estados Unidos) mencionados na matéria da FSP.

É o que nos mostra a figura que acompanha este artigo. Em números, por exemplo, bastaria dizer o seguinte: enquanto o Brasil saltou de 10 mil para 100 mil casos a uma taxa de crescimento diário de 8%, a Itália fez o mesmo a uma taxa de 12%. O ritmo de crescimento na Espanha foi de 15,6% e nos Estados Unidos, de 28,8% [4].

A covid-19 é uma doença contagiosa: indivíduos infectados transmitem a doença para outros indivíduos da população que não estão infectados. No momento, a principal arma que temos na luta contra a disseminação da doença é a adoção de medidas efetivas de distanciamento social. Por quê? Porque o distanciamento social reduz a frequência e a intensidade dos encontros interpessoais.

Com o distanciamento, a probabilidade de contágio cai dramaticamente. Caindo a probabilidade de contágio, cai o valor de β, o que por sua vez resulta no tal achatamento da curva [5]. E é isso o que estamos a fazer: estamos achatando a curva.

*

Notas.

[*] Para detalhes e informações sobre o livro mais recente do autor, O que é darwinismo (2019), inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros livros e artigos, ver aqui.

[1] Se eu entendi bem – não sou assinante da FSP e não tive acesso ao texto completo –, o pressuposto por trás da reportagem seria o seguinte: as epidemias varrem os países durante um intervalo de tempo mais ou menos fixo. É um pressuposto equivocado, mas suspeito que a sua origem não esteja propriamente na redação do jornal. Suspeito que o equívoco tenha surgido em razão de material produzido pelo Ministério da Saúde (Boletim Epidemiológico, n. 7, p. 8 – para a lista completa, ver aqui), no qual se discorre a respeito das etapas de uma curva epidêmica. A figura ali reproduzida, por sua vez, foi extraída e adaptada (a fonte é apropriadamente citada) de uma imagem contida em material produzido pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), uma conceituada e atualmente desnutrida repartição do Departamento de Saúde do governo federal dos Estados Unidos. Vejamos agora como essa cascata de eventos pode ter resultado em uma matéria problemática. Em primeiro lugar, cabe observar que o material produzido pelo CDC estava a tratar de surtos de gripe. Trata-se de uma virose, como nós todos sabemos, mas gripe e covid-19 definitivamente são doenças diferentes. E o mais importante: até onde é sabido, o que estamos a viver hoje seria o primeiro surto em escala mundial (pandemia) da covid-19. A gripe está conosco há muito tempo e os seus surtos são tão recorrentes que já fazem parte até do calendário! A lição que de fato nós poderíamos extrair de um exame dos surtos anuais de gripe seria tão somente o comportamento geral dessas curvas, não os seus detalhes. (Para considerações adicionais, ver o artigo anterior – aqui.)

[2] Eis a lista dos nove países mais afetados (entre parênteses, o número de casos): Estados Unidos (1,202 milhão), Espanha (219,3 mil), Itália (213 mil), Reino Unido (196,2 mil), França (170,6 mil), Alemanha (166,7 mil), Rússia (155,4 mil), Turquia (129,5 mil) e Brasil (114,7 mil). O próximo a entrar no clube será o Irã (99,97 mil) e posso adiantar que o país irá desbancar a França da primeira posição; o Brasil então passará a ter a terceira taxa mais lenta entre os países do Grupo dos 100 mil. As estatísticas acima foram extraídas do painel Mapping 2019-nCov (Johns Hopkins University, EUA), em 5/5.

[3] Eis a lista dos 10 países mais populosos do mundo (entre parênteses, o número de habitantes): China (1,434 bilhão), Índia (1,366 bilhão), Estados Unidos (329,1 milhões), Indonésia (270,6), Paquistão (216,6), Brasil (211), Nigéria (201), Bangladesh (163), Rússia (145,9) e México (127,6). Estatísticas extraídas do sítio das Nações Unidas (ver aqui).

[4] Detalhes metodológicos: o Brasil saltou de 10.278 para 101.147 casos em 29 dias; a Itália saltou de 10.149 para 101.739 em 20 dias; a Espanha saltou de 11.826 para 104.118 em 15 dias; e os EUA saltaram de 13.898 para 105.217 em 8 dias.

[5] Frear a pandemia implica em achatar a curva – para detalhes, ver o artigo anterior (aqui). Mas é bom ter em mente o seguinte: achatar a curva não significa que as estatísticas diárias irão despencar de um dia para o outro. Não é isso. Em termos absolutos, nossas estatísticas diárias vão continuar elevadas, infelizmente, embora possam seguir caindo, em termos relativos. (E acompanhar a variação diária no valor de β pode ser um modo efetivo de monitorar o curso da epidemia.) Isso tem a ver com o fato de que as nossas somas (e.g., total de casos) já estão em patamares elevados. Veja: se o total de casos já está em 100 mil, um aumento de 2% de um dia para o outro implicaria em 2 mil novos casos. Em compensação, quando o total estava em 10 mil, um aumento de 5% (500 novos casos) não nos parecia tão preocupante. Parte do problema com o qual os técnicos se defrontam tem a ver com isto: a luta contra as epidemias é mais efetiva quando as medidas de combate são tomadas precocemente. Todavia, como os números iniciais são baixos, muita gente não consegue perceber o que se passa. E aí o apoio popular costuma ser igualmente baixo. Quando o problema se torna óbvio e o apoio popular aumenta, o impacto das medidas já não é o mesmo de antes. Em maior ou menor grau, este tem sido o drama vivido por quase todos os países durante a pandemia (ainda em curso) da covid-19.

* * *

05 maio 2020

Flávio, o Xerife


Em memória de F. G. M. (1934-2020).

Eu tinha 11 ou 12 anos
Quando o vi pela primeira vez. Desde então,

Todas as vezes que o vi, nas poucas
Vezes que o vi, era sempre o desalinhado Xerife...

O café da manhã – a mesa, as xícaras, a pressa.
Então a oficina, onde se consertava tudo.

O trabalho só não resolvia problemas de coração.
Mas dava a receita: “É bom tirar uma chapa!”

Hoje, deliberadamente, ele saiu da vida de todos nós,
Dizendo palavras que eu também diria.

Só não levou consigo o amigo Shazan.
Este ficou por aqui, ainda a vagar dentro de um corpo.

03 maio 2020

De quem é a culpa?


Antes do embarque,
todos fomos advertidos
de que o navio era ruim.

Cegos ou tolos,
alguns agora culpam
o mar pelo naufrágio.

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