1. Breve recapitulação histórica.
Em 21 de janeiro, a OMS (Organização Mundial de Saúde) divulgou um alerta mundial [1] a respeito de um novo e misterioso tipo de pneumonia. O alerta informava que os primeiros casos haviam sido detectados em Wuhan, capital da província de Hubei, na região central da China [2]. Relatava ainda que, em 7/1, autoridades chinesas haviam anunciado a identificação do agente etiológico da doença [3].
O coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (Sars-CoV-2) rapidamente se espalhou por todas as províncias chinesas. Não levou muito tempo e o vírus ganhou o mundo [4]. Em 12/2, havia 45.171 casos da Covid-19, 44.730 na China e 441 em outros 24 países. Em menos de três semanas havia registros em todos os continentes (exceto a Antártida). Em 1/3, já eram 87.137 casos, 79.968 na China e 7.169 em outros 58 países.
Em 11/3, diante da escalada nas estatísticas, a epidemia da doença do coronavírus 2019 (Covid-19), até então classificada pela OMS como uma emergência de saúde pública de interesse internacional, passou a ser referida e caracterizada como uma pandemia [5].
2. Quando o vírus chegou ao Brasil?
A pandemia teria chegado ao país no início de fevereiro, talvez um pouco antes. Segundo as estatísticas do Ministério da Saúde (aqui), porém, o primeiro caso só foi identificado em 26/2. A posição do ministério deve ser alterada nos próximos dias, sobretudo diante dos recentes achados em torno do assunto [6].
O xis da questão aqui seria o seguinte: de fins de fevereiro até meados de março, os números permaneceram em patamares bem baixos (levando em conta as estatísticas do MS). E isso parece ter tido efeitos entorpecentes em parcelas expressivas da opinião pública. Diante de preocupações mais urgentes impostas pela crise política que já estávamos a enfrentar, a chegada de um surto dessa nova ‘gripe’ passou a soar como algo improvável e, por isso mesmo, irrelevante. (O tal surto não chegava! Só estava no noticiário e o noticiário, como o nosso iluminado presidente não se cansa de dizer, é um amontoado de mentiras.)
Em meados de março, a opinião pública – e muitos dos técnicos envolvidos com o problema – ainda não tinha se dado conta de que já estávamos pisando em terreno minado. Com uma expansão até então aparentemente morosa (embora, os números subterrâneos já estivessem a escalar – ver [6]), muita gente graúda (incluindo aí jornalistas e formadores de opinião) passou a imaginar que de fato a Covid-19 não representaria uma ameaça séria aos brasileiros [7]. Ou que a pandemia não nos atingiria para valer, ao menos não com a força que estava a atingir países como a China e a Itália, os dois primeiros epicentros.
Por parte dos governantes, pouco ou nada parece ter sido feito em termos de prevenção. Com a pandemia batendo à porta – antes de derrubá-la –, ainda havia quem acreditasse que a adoção de medidas de mitigação seria algo desnecessário. Ou que as medidas seriam de aplicação apenas pontual e, de resto, bastante passageira – aqui e ali, por uma ou duas semanas.
E assim chegamos aos 10 casos, em 14/3. (Mas ainda sem mortes, segundo as estatísticas do MS.) Sem barreiras de contenção, o vírus continuou a circular livremente. Os contágios aumentaram, a doença se alastrou e as estatísticas começaram a escalar. Uma semana mais tarde, coincidindo com o fim do verão, ultrapassamos a marca dos primeiros mil casos (21/3). Outras duas semanas e batemos na casa dos 10 mil casos (4/4). O ritmo então arrefeceu – a exemplo do que já tinha ocorrido em outros países [8]. Foram necessárias mais quatro semanas para chegamos aos 100 mil casos (3/5) [9].
3. Um guia confiável.
Quando falo em ritmo ou velocidade da pandemia, estou a me referir ao comportamento momentâneo da taxa de crescimento diário no número de novos casos. É um parâmetro bastante confiável. E é relativamente simples e de fácil acesso a qualquer um que esteja interessado em monitorar coisas que estão a crescer ou a se expandir, como é o caso das epidemias [10].
Por definição, o valor da taxa de crescimento (simbolizada aqui pela letra grega minúscula β) pode oscilar de um dia para o outro. E a oscilação pode ser de cima para baixo (quando então dizemos que o parâmetro declinou) ou de baixo para cima (dizemos que o parâmetro escalou).
A taxa de crescimento, assim como fiz em artigos anteriores [11], foi definida como β = ln [Y(t + 1) / Y(t)], onde Y(t + 1) é o número de casos no dia (t + 1), Y(t) é o número de casos no dia anterior, e ln indica logaritmo natural.
Monitorar o comportamento da taxa de crescimento no número de casos tem se revelado um modo bastante simples e confiável de descrever o comportamento da pandemia [12]. Eu diria mesmo que se trata de um guia capaz de nos levar ao outro lado da ponte.
4. Construindo um gráfico.
Quando os valores de β são colocados em um gráfico, sete agregados de pontos podem ser identificados (elipses A-G na figura que acompanha este artigo), a saber:
(A) Entre 21 e 30/3, intervalo durante o qual a taxa de crescimento declinou desde β = 27,8% até β = 7,6% (houve um excepcional 37%, em 22/3, mas aí se trata de um ‘ponto fora da curva’);
(B) Entre 31/3 e 6/4, quando, após uma inesperada e significativa escalada (30-31/3), a taxa tornou a declinar, dessa vez desde β = 24,8% até β = 8,3%;
(C) Entre 7 e 14/4, quando, após uma segunda e significativa escalada (6-7/4), a taxa tornou a declinar uma terceira vez, agora desde β = 16,1% até β = 5,5%;
(D) Entre 15 e 20/4, quando, após uma terceira escalada (14-15/4), a taxa tornou a declinar uma quarta vez, variando desde β = 12,1% até β = 5%;
(E) Entre 21 e 30/4, intervalo durante o qual – pela primeira vez! – a taxa oscilou para cima, variando entre β = 5,8% e β = 10,4%;
(F) Entre 1 e 5/5, intervalo durante o qual a taxa oscilou sem direção definida (pela primeira vez), variando entre β = 4,9% e β = 6,9%; e
(G) Entre 6 e 12/5, quando, após uma quarta escalada (5-6/5), a taxa tornou a declinar uma quinta vez, agora desde β = 9,2% até β = 3,5%.
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FIGURA. A figura que acompanha este artigo ilustra a variação na taxa de crescimento diário no número de novos casos da Covid-19 na população brasileira (eixo vertical; β expresso em porcentagem), entre 21/3 e 12/5. Sete agregados de pontos podem ser identificados (A-G), o último dos quais (G) ainda está em formação (para detalhes, ver o texto). As setas estariam a representar algo como a direção e o sentido da força dominante dentro de cada agregado e a linha tracejada, algo como a trajetória média de todos os pontos. (Em termos de análise estatística, basta dizer que os resultados são expressivos e bastante significativos.) Em alaranjado, os resultados de março; em verde, os de abril; em vermelho, os de maio; os quadrados em azul correspondem a domingos. O gráfico menor no canto superior direito ilustra a variação no tempo de duplicação (TD) no número de casos, no mesmo intervalo de tempo do gráfico maior. (O eixo vertical indica o valor de TD, em dias.) Os valores extremos da série (ignorando o resultado de 22/3 – ver texto) foram 3,1 (31/3) e 20,4 (11/5), indicando que (a) mantido o valor de β obtido para 31/3, seriam necessários 3,1 dias para dobrar o número de casos; e (b) mantido o valor de 11/5, seriam necessários 20,4 dias para dobrar o número de casos. Em meio a uma sucessão de oscilações, é possível notar uma lenta escalada da curva.
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5. Construindo um segundo gráfico.
Outra maneira de expressar a variação referida acima é usar os valores de β para calcular o chamado tempo de duplicação. Trata-se de um parâmetro que nos diz em quantos dias o número de casos irá dobrar, mantida a taxa de crescimento no número de novos casos.
No âmbito deste artigo, o tempo de duplicação (TD) foi definido como TD = ln 2 / β ≈ 0,6931 / β, onde β é a taxa de crescimento (como definida antes) e ln indica logaritmo natural.
Como o leitor já deve ter percebido, TD é um parâmetro inversamente proporcional à taxa de crescimento. (Quanto mais acelerado o ritmo de uma pandemia, menor será o tempo de duplicação no número de casos; quanto mais lento o ritmo, maior o tempo de duplicação.) A rigor, estamos aqui a documentar o mesmo fenômeno, apenas de um jeito talvez um pouco mais compreensível.
Pois bem, o pequeno gráfico que está embutido no canto superior direito da figura que acompanha este artigo mostra a variação ocorrida em TD, no mesmo intervalo em que o gráfico principal retrata o que ocorreu com a taxa de crescimento. Não é difícil perceber que quando um sobe, o outro desce, e vice-versa.
6. Coda.
Em se tratando de epidemias que se propagam por contágio (não é o caso da dengue, por exemplo, que se propaga por meio de um vetor), devemos ter em mente o seguinte: há sempre um intervalo de tempo entre a chegada do patógeno (um vírus, no caso da Covid-19) em um lugar novo e a identificação do primeiro caso naquele lugar. Assim como há um intervalo entre a infecção de um indivíduo não infectado e a identificação dele como um novo caso.
Tal distinção é particularmente preocupante em se tratando da pandemia em curso, pois há suspeitas de que a maior parcela dos portadores (parcela cujas dimensões ainda são desconhecidas) é dita ser assintomática. A questão ganhou o imaginário popular sob o rótulo de subnotificações. Este é de fato um problema sério, mas não pelos motivos que alguns estão a imaginar. Não cabe aqui entrar em detalhes, mas o xis da questão (em termos metodológicos) seria o seguinte. Com exceção talvez da Coreia do Sul e de alguns países insulares, as estatísticas reais são desconhecidos. (E como tal deverão permanecer.) Todavia, isso não quer dizer que os números ruins ou errados sejam inúteis. Pois não são.
Na verdade, números ruins podem ser muito úteis (mesmo porque eles podem ser ajustados ou corrigidos). Para entendermos esta última afirmativa, devemos atentar para dois pontos. É fato que as subnotificações (tanto no número de casos como no de mortes) embaçam e distorcem a imagem que estamos a construir da realidade. Em termos puramente metodológicos, no entanto, o que de fato preocupa é a distorção sistemática (não aleatória) dos dados. Se os erros são aleatórios, ainda é possível obter padrões informativos (evidentemente, desde que existam tais padrões).
E é exatamente isso o que os técnicos, pesquisadores e estudiosos devem fazer em um momento de crise: obter e processar os dados disponíveis (o mais rapidamente possível), de modo a produzir informações confiáveis que possam municiar e eventualmente orientar o público, os gestores e os governantes a respeito do rumo que as coisas estão a tomar.
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Notas.
[*] Para detalhes e informações sobre o livro mais recente do autor, O que é darwinismo (2019), inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros livros e artigos, ver aqui.
[1] No sítio da OMS (aqui), ver Situation report – 1. Em 21/1, havia 282 casos confirmados da Covid-19: 278 na China (258 em Hubei, 14 na província de Guangdong, cinco em Pequim e um em Xangai) e outros quatro fora do país (dois na Tailândia, um no Japão e um na Coreia do Sul). Todos estes quatro casos foram exportados de Wuhan.
[2] Wuhan é uma grande metrópole, com mais de 11 milhões de habitantes. E o mais importante: anos atrás, a cidade foi designada pelo governo chinês como um dos polos de desenvolvimento econômico do país – ver Zongwei, X. 2018. China unveils national central city strategy. ChinaWatch.
[3] O primeiro registro de um indivíduo hospitalizado data de 12/12/2019 – ver Wu, F. & mais 18. 2020. A new coronavirus associated with human respiratory disease in China. Nature 579: 265-9.
[5] No sítio da OMS (aqui), role a página e vá até o informe do dia 11/3.
[6] Uma data provável seria 4/2 – ver Delattore, E & mais 3. 2020. Tracking the onset date of the community spread of SARS-CoV-2 in Western Countries. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz doi: 10.1590/0074-02760200183.
[7] Houve quem dissesse – e ainda há quem diga – que o vírus seria imobilizado, enfraquecido ou destruído pelos raios de sol (e.g., aqui). Como estamos em um país predominantemente tropical, nós (ou quase todos nós) estaríamos a salvo.
[8] No início de uma epidemia, o número de casos tende a crescer de modo exponencial. Foi o que se viu entre nós e em outros países – ver aqui. Mas esse ritmo é facilmente contido por meio da adoção de medidas de contenção. Na China, por exemplo, o ritmo exponencial foi quebrado em poucos dias – ver Maier, B. F. & Brockmann, D. 2020. Effective containment explains subexponential growth in recente confirmed COVID-19 cases in China. Science 10.1126/science.abb4557.
[9] Hoje (13/5), de acordo com as estatísticas do Ministério da Saúde (aqui), chegamos aos 188.974 casos. Já são 13.149 mortes.
[10] Sobre padrões de crescimento numérico, ver as duas primeiras partes do artigo ‘Corpos, gentes, epidemias e... dívidas’ (aqui e aqui).
Estou a acompanhar as estatísticas mundiais em dois painéis, Mapping 2019-nCov (Johns Hopkins University, EUA) e Worldometer: Coronavirus (Dadax, EUA). Mas a fonte das estatísticas brasileiras é o painel do Ministério da Saúde (aqui).
Vejamos um exemplo de como calcular o valor de β. Considere o total de casos registrados em todo o mundo entre os dias 29/2 e 5/3, a saber: 86.604, 88.585, 90.443, 93.016, 95.314 e 98.425. Podemos calcular o valor de β para os dias 1-5/3. Para o dia 1/3, o valor seria β = ln (88.585 / 86.604) ≈ ln 1,0229 ≈ 0,0226. Para os outros quatro dias, os valores seriam os seguintes: 0,0208 (= ln 90.443 / 88.585); 0,0280 (= ln 93.016 / 90.443); 0,0244 (= ln 95.314 / 93.016); e 0,0321 (= ln 98.425 / 95.314).
Os resultados acima são então usados para calcular os respetivos valores do tempo de duplicação. Para o dia 1/3, por exemplo, o valor seria TD = 0,6931 / 0,0226 ≈ 30,7 dias. Para os outros quatro dias, os valores seriam 33,3 dias (= 0,6931 / 0,0208); 24,8 (= 0,6931 / 0,028); 28,4 (= 0,6931 / 0,0244); e 21,6 (= 0,6931 / 0,0321).
[12] Para exemplos e detalhes técnicos, ver (a) Scarabel, F. & mais 3. 2020. Canada needs to rapidly escalate public health interventions for its COVID-19 mitigation strategies. SSRN: http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3559929 [postado em 24/3/2020]; (b) Pellis, L. & mais 16. 2020. Challenges in control of Covid-19: short doubling time and long delay to effect of interventions. medRxiv 2020.04.12.20059972; doi: https://doi.org/10.1101/2020.04.12.20059972 [postado em 15/4/2020]; e (c) Xu, S. & mais 3. 2020. Estimating the growth rate and doubling time for short-term prediction and monitoring trend during the COVID-19 pandemic with a SAS macro. medRxiv 2020.04.08.20057943; doi: https://doi.org/10.1101/2020.04.08.20057943 [postado em 20/4/2020].
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