A história da humanidade se confunde com a história das guerras. Deveríamos lutar para que se confundisse apenas com a história da literatura.
29 fevereiro 2008
Trindade
Masaccio [Tommaso di ser Giovanni di Mone Cassai] (1401-1428). Trinità. 1425-27. Fonte da foto: Wikipedia. Não é mostrada aqui a parte inferior do afresco
A Segunda Guerra Mundial teve um efeito imprevisto e salutar na metodologia das ciências não-físicas: subverteu o modo tradicional de pesquisa nestes domínios, ao ressaltar o valor de teorias, em particular de teorias formuladas com o auxílio da matemática. Antes se observava, se classificava e se especulava: agora se acrescenta a construção de sistemas hipotético-dedutivos e se procura pô-los à prova experimental, até em psicologia e em sociologia, outrora bastilhas do vago. Outrora se utilizava apenas a linguagem comum para exprimir idéias, resultando sempre falta de precisão, na verdade falta de clareza. A matemática só intervinha no final para comprimir e analisar os resultados de pesquisas empíricas na maioria das vezes superficiais por falta de teorias: fazia-se uso quase que exclusivamente da estatística, cujo aparato podia disfarçar a pobreza conceitual. Agora se usam cada vez mais várias teorias matemáticas para a própria construção das teorias. Começa-se a compreender que o objetivo da pesquisa não é a acumulação dos fatos mas a sua compreensão, e que esta só se obtém aventurando e desenvolvendo hipóteses precisas. Fonte: Bunge, M. 1974. Teoria e realidade. SP, Perspectiva.
Não há gentileza, suavidade, calor nesta profunda sepultura. Minhas mãos apalpam as paredes de rocha e em cada brecha encontram apenas um negro abismo. Às vezes o ar se rarefaz. Então arquejo em busca de novo alento, embora respire todo o tempo o mesmo ar desta caverna. Não existe abertura, nem saída. Estou prisioneiro. Mas não sozinho. Há tanta gente voltada contra mim. Um estreito raio de luz infiltra-se na caverna, vindo de uma brecha entre duas rochas. É escuro aqui dentro. É úmido e o ar é tão bafiento. As pessoas são grandes, enormes. Repetem-se umas às outras ao falar E suas sombras projetadas nas paredes seguem-nas quando se movem. Não sei que aparência tenho, nem o que parecem tais pessoas. Elas pisam-me às vezes, por simples descuido. É o que creio e espero. E são pesadas. Está se tornando cada vez mais apertado aqui dentro Estou apavorado. Se sair talvez seja terrível Mais gente assim estará do lado de fora. Elas me aniquilarão de todo, Pois são ainda mais pesadas que estas daqui, é o que penso. Breve a gente daqui me pisará (por engano, creio) tantas vezes que não restará muito de mim, e eu me tornarei parte das paredes da caverna. Então serei um eco e uma sombra, junto com os outros, aqui, que se tornaram ecos e sombras. Deixei de ser forte. Estou apavorado. Nada existe para mim, fora daqui. As pessoas são maiores e me empurrariam de volta a esta caverna. A gente lá de fora não me quer. A gente daqui não me quer Não importa. As paredes da caverna são ásperas e rijas. Breve serei parte delas, rijo E inamovível também. Tão rijo. Fonte: Laing, R. D. 1975 [1960]. O eu dividido, 2ª edição. Petrópolis, Vozes. Texto redigido por mulher descrita como esquizofrênica em artigo originalmente publicado em 1956.
Não será sempre assim... Quando não for, Quando teus lábios forem de outro; quando No rosto de outro o teu suspiro brando Soprar; quando em silêncio, ou no maior
Delírio de palavras desvairando, Ao teu peito o estreitares com fervor; Quando, um dia, em frieza e desamor Tua afeição por mim se for trocando:
Se tal acontecer, fala-me. Irei Procurá-lo, dizer-lhe num sorriso: “Goza a ventura de que já gozei.”
Depois, desviando os olhos, de improviso, Longe, ah tão longe, um pássaro ouvirei Cantar no meu perdido paraíso. Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1923.
Eis que avistei esta manhã o amado da manhã, delfim do reino da luz do dia, Falcão arrebatado pela aurora mosqueada, em seu cavalgar No ar encapelado que, sob ele, firme se alisa, e ao galgar Tanta altura, como se eleva espiralando, preso às rédeas de uma asa ondulante, Em seu êxtase! E então lá vai, lá vai balouçante Qual pé de patim macio desliza em arco retesado; o arremesso, o planar Afrontam a ventania. Meu coração escondido, em sigilo, Batia pelo pássaro – o alcance, a mestria daquilo!
Beleza bruta, bravura, ação, oh! altanaria, plumas, amplidão – Aqui concentrai-vos! E a fagulha que então de ti irromper, um bilhão De vezes mais amorável, mais temível, Ó meu paladino!
Nem surpreende: ao arar paciente, o arado lá sob o sulco contínuo Faísca; e o borralho azul-pálido, ah! meu tesouro, Ao tombar atrita-se, e abre-se em talhos vermelho-e-ouro. Fonte: Hopkins, G. M. 1989. Poemas. SP, Companhia das Letras. Poema originalmente publicado em 1918.
Fresco era o dia, plantado na chuva, jovens os relógios tocando Mozart... Os carros corriam, os passos passavam e os velhos sentados dormiam no tempo regressos perdidos de todas as sombras. Pássaro poisado na alma da tarde, era todo o sol natural inverno... O mar estava perto nos olhos da gente, um barco chegava em cada minuto e o segredo bailava nas mãos da criança.
Recordo uma paz sob as gabardinas, recordo humidade nas rodas dos carros... (Tão solta no ar corria a memória que as folhas tão verdes marcavam os anos). A chuva nascia da terra para o ar e ria na cara da gente perpétua – cada riso dela era a rua inteira e era o cão vadio cheirando esta terra gerada no vento pelo grande gesto. Rua colocada por amor das formigas, pequeno brinquedo achado no bosque, eras mão aberta para todos os sons, para cada assobio de vapor de água, para a bela frescura da brisa salgada. Ligeiros, os céus brincavam escondidos com a tarde criança presente no ar, jogavam às pedras ao pé dos passeios e corriam juntos fugindo do vento... Passavam pessoas de faces vermelhas, de um sono pequeno agora acordadas, seus passos miúdos de nada sabiam – nada estava feito e tinham dez anos. A branca neblina sentada no sol sorria de perto a tudo o que era e tudo saltava na sua presença.
Escorregavam horas do berço dos ramos ficando caladas, respirando fumo... E, leves, cheirosas, perpassavam mãos, tão estreitas e fortes, do primeiro mundo...
Algo se esperava, algo estava perto, algo era preciso, faltava a resposta, o rio que fosse a cama da chuva, a sombra final para o sol se deitar, a torre perfeita com todos os olhos, a mão que apertasse as coisas dispersas... E eis que o rio vem, a sombra e a torre, e se estendem dedos com a tua chegada.
Saltaram coelhos de todas as tocas e a fonte da serra sorriu-se no musgo. Manaram os beijos no ar respirado e as malas abertas mostraram o fundo. Fugiram cavalos de pernas de espuma levando no pêlo notícias em branco. E o vento corria em busca da lua e a tarde e os céus calavam os gritos... Silêncio se fez, e a erva cresceu mais verde e mais fresca, segura certeza. Espreitaram os sinos, riram-se as escadas, tudo estava pronto e de novo erguido...
Tão bela que vinhas como que de infância, tão pura e tão simples, tão gesto benigno, tão nova palavra rasgada no mar… Menina dos anos, dos anos perdidos, sombra de outras noites, noiva de outros dias, perfeita miragem, pele das próprias mãos, eis que então chegavas e eis que eu te via, e as horas sorriam, felizes, completas...
Teu rosto era a concha dos quatro oceanos, teu corpo era a praia de areia molhada, teus olhos erguiam o toldo do céu e enchiam os mastros de verdes bandeiras. Tu eras o vento, tu eras a força, dançavam secretas tuas mãos de aragem...
Nasceste presença na tarde de bronze e agora já nada seria indeciso. Agora eras tu a essência dos nomes, os galos cantavam, era bom respirar... Os prados distantes ficavam tranqüilos, esperando os teus pés, berlindes pequenos. A chuva e a brisa, a jovem frescura, ganhavam certeza, seguras estavam – morena lembrança, segundo natal.
Nunca mais a noite mordida no escuro, nunca mais o dia manchado de cuspo, nunca mais o véu tapando-me tudo, nunca mais os dedos procurando flores... A estátua plantada na nudez do largo devolvia a calma aos olhos fechados e enchia de sombra as pedras queimadas.
Agora eu sabia que em cada manhã nasceria o sol atrás dos teus ombros. Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1956.
Passei por essas plácidas colinas e vi das nuvens, silencioso, o gado, pascer nas solidões esmeraldinas.
Largos rios de corpo sossegado dormiam sobre a tarde, imensamente, e eram sonhos sem fim, de cada lado.
Entre nuvens, colinas e torrente, uma angústia de amor estremecia a deserta amplidão na minha frente.
Que vento, que cavalo, que bravia saudade me arrastava a esse deserto, me obrigava a adorar o que sofria?
Passei por entre as grotas negras, perto dos arroios fanados, do cascalho cujo ouro já foi todo descoberto.
As mesmas salas deram-me agasalho onde a face brilhou de homens antigos, iluminada por aflito orvalho.
De coração votado a iguais perigos, vivendo as mesmas dores e esperanças, a voz ouvi de amigos e inimigos.
Vencendo o tempo, fértil em mudanças, conversei com doçura as mesmas fontes, e vi serem comuns nossas lembranças.
Da brecha tenebrosa aos curvos montes, do quebrado almocafre aos anjos de ouro que o céu sustêm nos longos horizontes,
tudo me fala e entende do tesouro arrancado a estas Minas enganosas, com sangue sobre a espada, a cruz e o louro.
Tudo me fala e entendo: escuto as rosas e os girassóis destes jardins, que um dia foram terras e areias dolorosas,
por onde o passo da ambição rugia; por onde se arrastava, esquartejado, o mártir sem direito de agonia.
Escuto os alicerces que o passado tingiu de incêndio: a voz dessas ruínas de muros de ouro em fogo evaporado.
Altas capelas contam-me divinas fábulas. Torres, santos e cruzeiros apontam-me altitudes e neblinas.
Ó pontes sobre os córregos! ó vasta desolação de ermas, estéreis serras que o sol freqüenta e a ventania gasta!
Rubras, cinéreas, tenebrosas terras retalhadas, por grandes golpes duros, de infatigáveis, seculares guerras...
Tudo me chama: a porta, a escada, os muros, as lajes sobre mortos ainda vivos, dos seus próprios assuntos inseguros.
Assim viveram chefes e cativos, um dia, neste campo, entrelaçados na mesma dor, quiméricos e altivos.
E assim me acenam por todos os lados. Porque a voz que tiveram ficou presa na sentença dos homens e dos fados.
Cemitério das almas... – que tristeza nutre as papoulas de tão vaga essência? (Tudo é sombra de sombras, com certeza...
O mundo, vaga e inábil aparência, que se perde nas lápides escritas, sem qualquer consistência ou conseqüência.
Vão-se as datas e as letras eruditas na pedra e na alma, sob etéreos ventos, em lúcidas venturas e desditas.
E são todas as coisas uns momentos de perdulária fantasmagoria – jogo de fugas e aparecimentos.)
Das grotas de ouro à extrema escadaria, por asas de memória e de saudade, com o pó do chão meu sonho confundia.
Armado pó que finge eternidade, lavra imagens de santos e profetas cuja voz silenciosa nos persuade.
E recompunha as coisas incompletas: figuras inocentes, vis, atrozes, vigários, coronéis, ministros, poetas.
Retrocedem os tempos tão velozes, que ultramarinos árcades pastores falam de Ninfas e Metamorfoses.
E percebo os suspiros dos amores quando por esses prados florescentes se ergueram duros punhos agressores.
Aqui tiniram ferros de correntes; pisaram por ali tristes cavalos. E enamorados olhos refulgentes
– parado o coração por escutá-los – prantearam nesse pânico de auroras densas de brumas e gementes galos.
Isabéis, Dorotéias, Eliodoras, ao longo desses vales, desses rios, viram as suas mais douradas horas
em vasto furacão de desvarios vacilar como em caules de altas velas cálida luz de trêmulos pavios.
Minha sorte se inclina junto àquelas vagas sombras da triste madrugada, fluidos perfis de donas e donzelas.
Tudo em redor é tanta coisa e é nada: Nise, Anarda, Marília... – quem procuro? Quem responde a essa póstuma chamada?
Que mensageiro chega, humilde e obscuro? Que cartas se abrem? Quem reza ou pragueja? Quem foge? Entre que sombras me aventuro?
Que soube cada santo em cada igreja? A memória é também pálida e morta sobre a qual nosso amor saudoso adeja.
O passado não abre a sua porta e não pode entender a nossa pena. Mas, nos campos sem fim que o sonho corta,
vejo uma forma no ar subir serena: vaga forma, do tempo desprendida. É a mão do Alferes, que de longe acena.
Eloqüência da simples despedida: ”Adeus! que trabalhar vou para todos!...” (Esse adeus estremece a minha vida.) Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Este poema integra o Romanceiro da Inconfidência, obra originalmente publicada em 1953.
Sustentabilidade ambiental significa mudanças no estilo de vida que permitam manter capital natural. Manter o capital natural constante, por sua vez, significa manter inalterados os serviços ambientais tanto de fonte quando de [sumidouro] do ecossistema. [...]
De todas as mudanças necessárias à obtenção de sustentabilidade ambiental, escolhi a da dieta porque não há ainda nenhum consenso sobre isso; nem mesmo que ela seja uma questão legítima de política agrícola ou desenvolvimento econômico. As tendências globais no momento estão se precipitando na direção errada, distanciadas do curso sustentável. O tópico de dieta e segurança alimentar prejudica principalmente o pobre, e não o rico. O rico sempre poderá comprar a dieta que desejar. [...]
As pessoas afluentes dos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] consomem anualmente cerca de 800 kg de grãos indiretamente [...], a maior parte deles convertida ineficientemente em carne animal, com o contrapeso de leite, sorvete, queijo, ovos e iogurte. Tais dietas contém um alto teor de gorduras e proteínas e um baixo teor de amido. Em contraste, nos países de baixo consumo, o uso de cereais na alimentação atinge uma média de 200 kg por pessoa por ano, praticamente todo ele de forma direta, como ineficiência na conversão. Tais dietas são ricas em amido e pobres em gordura e proteínas. A proporção de consumo de grãos entre países ricos e pobre é de quatro para um [...].
O gado de corte na engorda consome sete quilos de cereal para produzir um único quilo de peso em pé. O porco abocanha quase quatro quilos de grãos para cada quilo de peso em pé. A galinha e o peixe são conversores mais eficientes, precisando apenas de dois quilos de grão para cada quilo de peso em pé produzido. A produção de queijo e ovos é mais eficiente que a suína, mas é menos do que a de aves e peixes, requerendo 3 e 2,6 kg de cereais por quilo de produto, respectivamente. Pelo fato de tantas pessoas se alimentarem de carne, a média global de cereais convertidos em carne situa-se entre 35% e 40% de toda a produção graneleira mundial. Os dois países que mais transformam grãos em carne são os Estados Unidos e a China – com 160 e cerca de 100 milhões de toneladas, respectivamente [...]. Surge, então, a pergunta: os indivíduos mais prósperos do mundo aceitariam simplificar sua alimentação por uma razão do tipo saúde, ética, igualdade, meio ambiente, economia ou religião? Os cereais assim liberados seriam distribuídos para prevenir a fome e a desnutrição onde e quando necessário? Fonte: Goodland, R. 1997. Sustentabilidade ambiental: comer melhor e matar menos. In Cavalcanti, C., org. Meio ambiente, desenvolvimento sustentável e políticas públicas. SP & Recife, Cortez & Fundação Joaquim Nabuco.
Expõe Teresa acerbas mágoas cruas; e à briosa nação, de furor tinta, faz arrancar da generosa cinta o reflexo de mil espadas nuas.
Arrasta e pisa as otomanas luas e, por mais que Netuno o não consinta, a heroína do Norte faz que sinta o peso o mar Egeu das quilhas suas.
Seus nomes no áureo templo a fama ajunta, mas pintar seus estragos não se atreve; ao seu Danúbio, ao mar Negro o pergunta.
Lusitânia aos céus muito mais deve: que a rege, como aos povos d’Amatunta, freio de rosas posto em mãos de neve. Fonte: Peixoto, A. 2002. Melhores poemas. SP, Global.
Aurora Borealis The icy sky at night Paddles cut the water In a long and hurried flight From the white man to the fields of green And the homeland we’ve never seen
They killed us in our teepees And they cut our women down They might have left some babies Cryin’ on the ground But the firesticks and the wagons come And the night falls on the settin’ sun
They massacred the buffalo Kitty-corner from the bank Taxis run across my feet And my eyes have turned to blanks In my little box at the top of the stairs With my Indian rug and a pipe to share
I wish I was a trapper I would give a thousand pelts To sleep with Pocahontas And find out how she felt In the mornin’ on the fields of green In the homeland we’ve never seen
And maybe Marlon Brando Will be there by the fire Well sit and talk of Hollywood And the good things there for hire And the Astrodome and the first teepee Marlon Brando, Pocahontas and me Marlon Brando, Pocahontas and me Pocahontas Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Unplugged (1993), de Neil Young. Canção originalmente gravada em 1979.
Sem dizer o fogo – vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso – duramente, são pedras e não são ervas. O vento é fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento. Tudo o que sei, já lá está, mas não estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.
Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então invento os meus passos e o meu próprio caminho. E com as palavras de vento e de pedras, invento o vento e as pedras, caminho um caminho de palavras.
Caminho um caminho de palavras (porque me deram o sol) e por esse caminho me ligo ao sol e pelo sol me ligo a mim
E porque a noite não tem limites alargo o dia e faço-me dia e faço-se sol porque o sol existe
Mas a noite existe e a palavra sabe-o. Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1961.
Comigo me desavim, No extremo som do perigo; Não posso aturar comigo Nem posso fugir de mim.
Com dor da gente fugia Antes que esta assi crecesse; Agora já fugiria De mim se de mim pudesse.
Que meo espero ou que fim Do vão trabalho que sigo, Se trago a mim comigo Tamanho imigo de mim? Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Versão publicada em 1595; versão anterior algo diferente foi publicada em 1516.
O Poesia contra a guerra completa hoje dezesseis meses no ar. Ao fim do expediente de ontem (11/2), o contador instalado no blogue indicava que 26.532 visitas haviam sido registradas.
Desde o balanço mensal anterior – Quinze meses no ar – foram ao ar textos dos seguintes autores: Álvaro de Campos, Dante Milano, David Ehrenfeld, Edmund Wilson, Eörs Szathmáry, Eugénio de Andrade, Ivan Junqueira, John Maynard Smith, Jorge Carrera Andrade, Langston Hughes, Leonard Barden, Luís Forjaz Trigueiros, Nuno Júdice, Ribeiro Couto e Sebastião da Gama. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Georgia O’Keeffe, Henri de Toulouse-Lautrec, John Constable, Mary Cassatt e Norman Rockwell.
Estirar os braços Ao sol nalgum lugar E até que morra o dia Dançar, pular, cantar! Depois sob uma árvore, Quando já entardeceu, Enquanto a noite vem – Negra como eu – Descansar... É o que quero!
Estirar os braços Ao sol nalgum lugar, Cantar, pular, dançar Até que a tarde caia! E dormir sob uma árvore – Este o desejo meu – Quando a noite baixar Negra como eu. Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1932.
Três cavaleiros seguem lentamente Por uma estrada erma e pedregosa. Geme o vento na selva rumorosa, Cai a noite do céu, pesadamente.
Vacilam-lhes nas mãos as armas rotas, Têm os corcéis poentos e abatidos, Em desalinho trazem os vestidos, Das feridas lhe cai o sangue, em gotas.
A derrota, traiçoeira e pavorosa, As frontes lhes curvou, com mão potente. No horizonte escuro do poente Destaca-se uma mancha sanguinosa.
E o primeiro dos três, erguendo os braços, Diz num soluço: “Amei e fui amado! Levou-me uma visão, arrebatado, Como em carro de luz, pelos espaços!
Com largo vôo, penetrei na esfera Onde vivem as almas que se adoram, Livre, contente e bom, como os que moram Entre os astros, na eterna primavera.
Porque irrompe no azul do puro amor O sopro do desejo pestilente? Ai do que um dia recebeu de frente O seu hábito rude e queimador!
A flor rubra e olorosa da paixão Abre lânguida ao raio matutino, Mas seu profundo cálix purpurino Só ressuma veneno e podridão.
Irmãos – amei e fui amado... Por isso vago incerto e fugitivo, E corre lentamente um sangue esquivo Em gotas, de meu peito alanceado.”
Responde-lhe o segundo cavaleiro, Com sorriso de trágica amargura: “Amei os homens e sonhei ventura, Pela justiça heróica, ao mundo inteiro.
Pelo direito, ergui a voz ardente No meio das revoltas homicidas: Caminhando entre raças oprimidas, Fi-las surgir, como um clarim fremente.
Quando há-de vir o dia da justiça? Quando há-de vir o dia do resgate? Traiu-me o gládio em meio do combate E semeei na areia movediça!
As nações, com sorriso bestial, Abrem, sem ler, o livro do futuro. O povo dorme em paz no seu monturo, Como em leito de púrpura real.
Irmãos, amei os homens e contente Por eles combati, com mente justa... Por isso morro à míngua e a areia adusta Bebe agora meu sangue, ingloriamente.”
Diz então o terceiro cavaleiro: “Amei a Deus e em Deus pus alma e tudo. Fiz do seu nome fortaleza e escudo No combate do mundo traiçoeiro
Invoquei-o nas horas afrontosas Em que o mal e o pecado dão assalto, Procurei-o, com ânsia e sobressalto, Sondando mil ciências duvidosas.
Que vento de ruína bate os muros Do templo eterno, o templo sacrossanto? Rolam, desabam, com fragor e espanto, Os astros pelo céu, frios e escuros!
Vacila o sol e os santos desesperam... Tédio ressuma a luz dos dias vãos... Ai dos que juntam com fervor as mãos! Ai dos que crêem! ai dos que inda esperam!
Irmãos, amei a Deus, com fé profunda... Por isso vago sem conforto e incerto, Arrastando entre as urzes do deserto Um corpo exangue e uma alma moribunda.”
E os três, unindo a voz num ai supremo, E deixando pender as mãos cansadas Sobre as armas inúteis e quebradas, Num gesto inerte de abandono extremo,
Sumiram-se na sombra duvidosa Da montanha calada e formidável, Sumiram-se na selva impenetrável E no palor da noite silenciosa. Fonte: Quental, A. 2004. Melhores poemas. SP, Global. Poema originalmente publicado em 1886.
[...] O terminal ferroviário no qual chegam os trens provenientes da Finlândia é hoje em dia um prediozinho de estuque mal conservado, de um cinzento cor de borracha e um tom de rosa sujo, com um galpão para trens sustentado por colunas finas que se ramificam ao encostarem no teto. [...]
Mas na época sobre a qual estou escrevendo, havia uma sala especial, com banheiro, reservada para o czar, e foi para lá que os camaradas que receberam Lenin o levaram quando seu trem chegou, tarde da noite, no dia 16 de abril. [...]
Saiu da sala. Lá fora, na plataforma, um oficial aproximou-se e bateu continência. Lenin, surpreso, retribuiu a continência. O oficial deu a ordem, e um destacamento de marinheiros com baionetas ficou em posição de sentido. Holofotes iluminavam o local, e bandas tocavam a “Marselhesa”. Uma grande aclamação brotou de uma multidão que se formava ao redor da plataforma. “O que é isso?”, perguntou Lenin, dando um passo atrás. Disseram-lhe que eram as boas-vindas dos trabalhadores e marinheiros revolucionários: haviam gritado a palavra “Lenin”. Os marinheiros apresentaram armas, e seu comandante apresentou-se a Lenin. Cochicharam-lhe que queriam ouvi-lo falar. Lenin deu alguns passos e tirou o chapéu-coco. Começou: “Camaradas marinheiros, eu vou saúdo sem saber ainda se vocês têm acreditado ou não em todas as promessas do Governo Provisório. Porém estou certo de que, quando eles lhes falam com palavras açucaradas, quando prometem mundos e fundos, estão enganando a vocês e a todo o povo russo. O povo precisa de paz; o povo precisa de pão; o povo precisa de terra. E eles lhes dão guerra, fome, nada de pão – deixam os proprietários continuarem controlando a terra. (...). Precisamos lutar pela revolução social, lutar até o fim, até a vitória completa do proletariado. Viva a revolução social mundial!”. [...] Fonte: Wilson, E. 1987 [1940]. Rumo à Estação Finlândia. SP, Companhia das Letras.
15. Quando penso que tudo e tudo quanto cresce Só pode ser perfeito um rápido momento; Que o mundo só ilusões, teatral, nos oferece, Das quais o astral poder é secreto fomento; Quando na evolução do homem, como da planta, Vejo avanço e parada, a ação do mesmo ambiente: Agora a vida exulta, agora se quebranta, E até o maior primor termina obscuramente... O conceito que formo, então, dessa ocorrência Se ajusta em vós, em cuja excelsa juventude O Tempo destruidor se alia à Decadência, Para que em feia noite a vida vos transmude. E em guerra com o Tempo, amando-vos, decerto, O que ele de vós tira eu novamente enxerto.
16. Mas por que não usais maneira mais segura, Para guerrear o Tempo, o tirano, o perverso? Por que não vos valeis, contra a ameaça futura, De recurso melhor que o meu sáfaro verso? No cimo agora estais das horas de esplendores; Muitos jardins vereis, muitos, virgens ainda Que, com honesto querer, vos ofertarão flores Mais vivas e mais sãs do que as que o sonha alinda. Vede: as linhas da vida é assim que elas as repara. Nenhum pincel, decerto, ai! nem a minha pena A vossa alma gentil ou vossa forma rara Poderá perpetuar ante a visão terrena. Sede pai – que para isso o tempo inda vos sobra – E só então vivereis nas linhas da vossa obra.
17. Quem crer pudera, tempo em fora, no meu verso, Se o vosso alto valor eu proclamasse nele? Então – e sabe-o o céu – como em tumba, ao inverso, Vossa vida aí oculto e o mais que em vós excele. Dissesse eu o que minha alma em vossos olhos sente, Vossas graças, fiel, todas enumerasse, E o futuro diria: Este poeta mente; Beleza assim não há da terra sobre a face”. E, pois, os meus papeis – por velhos – pardacentos, Seriam tidos como os reles palradores, E os vossos dotes reais, olhados como inventos, De canto antigo ao meu dariam falsas cores. Mas, se outra alma existir em que a vossa se exprima Duas vezes vivereis; nela e na minha rima.
18. Poderei comparar-te, acaso, a um dia estivo? Mais agradável és, porque és mais moderado. Caem os lindos botões de maio, ao vento esquivo, E o tempo do verão é muito limitado. Algum vez, o olhar do céu mui quente brilha; Outras, o resplendor dourado se lhe embaça; E, casualmente, ou por mudar a vária trilha, A Natureza perde a sua imensa graça. Mas não murchará nunca o teu verão eterno, Nem perderá jamais os encantos ingentes, Nem morrerá, tampouco, o teu garbo superno, Se afrontares a morte em meus versos veementes. Enquanto existir mundo ou o olhar puder ver, Meus versos viverão e hás de neles viver.
19. Embotas, voraz Tempo, ao leão as garras sevas; À terra a engolir dás seus próprios descendentes; Longeva, no seu sangue, a arder a fênix levas; Tiras do fero tigre os lacerantes dentes. Passando, as estações ledas ou tristes fazes... Que é que, alígero Tempo, acharás infactível? Um crime não farás, porém, dos mais audazes Perante o mundo e o seu encanto marcescível: Não danificarás do meu amor a imagem; Nunca de ultrajes teus a verás atingida. E, resistindo-te ela, incólume, à passagem, Modelo da beleza há de ser toda a vida. Ainda mais, velho Tempo, ante a tua fúria, terso, Há de ser meu amor jovem sempre em meu verso. Fonte: Shakespeare, W. 2006. Sonetos. SP, Martin Claret. A obra completa consta de 154 sonetos e foi originalmente publicada em 1609.
Certa vez quando tinha uns nove anos de idade e sozinho aguardava ansioso a chegada da família ouvi alguém passando de bicicleta pela rua defronte do sítio onde morávamos
O barulho da borracha dos pneus espremida contra os grãos de areia molhada por um instante me fez crer que o condutor conhecia bem o trajeto por onde passava – todavia mesmo após todos esses anos na varanda ainda não consegui descobrir quem era
Corpo num horizonte de água, corpo aberto à lenta embriaguez dos dedos, corpo defendido pelo fulgor das maçãs, rendido de colina em colina, corpo amorosamente humedecido pelo sol dócil da língua.
Corpo com gosto a erva rasa de secreto jardim, corpo onde entro em casa, corpo onde me deito para sugar o silêncio, ouvir o rumor das espigas, respirar a doçura escuríssima das silvas.
Corpo de mil bocas, e todas fulvas de alegria, todas para sorver, todas para morder até que um grito irrompa das entranhas, e suba às torres, e suplique um punhal. Corpo para entregar às lágrimas. Corpo para morrer.
Corpo para beber até ao fim – meu oceano breve e branco, minha secreta embarcação, meu vento favorável, minha vária, sempre incerta navegação. Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1971.
Estavam ao lado um do outro, silenciosos, evitando olhar-se – mas os olhos encontravam-se longe, no mesmo ponto anónimo que servia de horizonte a ambos. A ambos, que fugiam doutro qualquer horizonte.
Estavam silenciosos, mas tudo falava, afinal, nesse silêncio aparente. Decerto àquela hora discreta da tarde, tudo era silêncio em torno deles. Mas silêncio falso, que se desmascarava no agitar tranqüilo das ramagens das árvores, no grito distante duma ave, na própria calma soalhenta daquela tarde de Inverno. E até o próprio sol fugia devagar, decerto para não quebrar o tal silêncio que tudo se apostava em manter. Silêncio nas coisas e no espaço; silêncio, até, no arrastar daquela canção que dois cegos choravam lá embaixo, junto à entrada.
O homem e a mulher estavam sentados havia talvez meia hora, havia talvez muitos anos. Nenhum dos dois sabia há quanto tempo durava aquele grande silêncio. Era como se tivessem estado sempre sentados naquele mesmo banco, calados e sem coragem para se fitarem um no outro, a ouvirem, na calma do entardecer, as notas desafinadas da música dos cegos que passavam, lá embaixo, não sabiam se muito perto ou muito longe. [...] Fonte: Trigueiros, L. F. 1988. As horas extraordinárias. RJ, Nova Fronteira.
Mercado do peixe, mercado da aurora: Cantigas, apelos, pregões e risadas À proa dos barcos que chegam de fora.
Cordames e redes dormindo no fundo; À popa estendidas, as velas molhadas; Foi noite de chuva nos mares do mundo.
Pureza do largo, pureza da aurora. Há viscos de sangue no solo da feira. Se eu tivesse um barco, partiria agora.
O longe que aspiro no vento salgado Tem gosto de um corpo que cintila e cheira Para mim sozinho, num mar ignorado. Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema originalmente publicado em 1943.