Triste, a escutar, pancada por pancada, A sucessividade dos segundos, Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos, O choro da Energia abandonada!
E a dor da Força desaproveitada, – O cantochão dos dínamos profundos, Que, podendo mover milhões de mundos, Jazem ainda na estática do Nada!
É o soluço da forma ainda imprecisa... Da transcendência que se não realiza... Da luz que não chegou a ser lampejo...
E é, em suma, o subconsciente aí formidando Da Natureza que parou, chorando, No rudimentarismo do Desejo! Fonte: Anjos, A. 2004. Eu e outras poesias, 46ª edição. RJ, Bertrand. A primeira edição do livro foi publicada em 1912.
[Prólogo] Se me pedissem para mencionar a data mais importante da história e pré-história da raça humana, eu responderia sem a mínima hesitação: o dia 6 de agosto de 1945. A razão é simples. Desde o alvorecer da consciência até o dia 6 de agosto de 1945, o homem precisou conviver com a perspectiva de sua morte como indivíduo. A partir do dia em que a primeira bomba atômica sobrepujou o brilho do Sol em Hiroshima, a humanidade como um todo deve conviver com a perspectiva de sua extinção como espécie.
Aprendemos a aceitar a efemeridade da existência pessoal, ao mesmo tempo em que tínhamos como certa a potencial imortalidade da raça humana. Essa crença deixou de ser válida. Precisamos rever nossos axiomas.
A tarefa não é fácil. Antes de uma idéia se firmar na mente, existem períodos de incubação. A doutrina de Copérnico, que tão drasticamente degradou o status do homem no Universo, demorou quase um século para penetrar na consciência dos europeus. A nova degradação de nossa espécie para o status de mortalidade é muito mais difícil de digerir. [...] Fonte: Koestler, A. 1981 [1978]. Jano. SP, Melhoramentos.
Strumming my pain with his fingers Singing my life with his words Killing me softly with his song Killing me softly with his song Telling my whole life with his words Killing me softly with his song
I heard he sang a good song I heard he had a style And so I came to see him To listen for a while And there he was this young boy A stranger to my eyes
Strumming…
I felt all flushed with fever Embarrassed by the crowd, I felt he found my letters And read each one out loud. I prayed that he would finish But he just kept right on
Strumming…
He sang as if he knew me In all my dark despair And then he looked right through me As if I wasn't there. But he was there this stranger Singing clear and strong
Strumming…
He was strumming there Yea, he was singing my life Fonte: álbum Top 12 from USA, vol. 3 (1973), coletânea lançada no país pela Top Tape. Letra desenvolvida a partir de um poema de Lori Lieberman.
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue. Com ela encantarei a noite. Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher. Seus ombros beijarei, a pedra pequena do sorriso de um momento. Mulher quase incriada, mas com a gravidade de dois seios, com o peso lúbrico e triste da boca. Seus ombros beijarei.
Cantar? Longamente cantar, Uma mulher com quem beber e morrer. Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave o atravessar trespassada por um grito marítimo e o pão for invadido pelas ondas – seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes. Ele – imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento de alegria e de impudor. Seu corpo arderá para mim sobre um lençol mordido por flores com água.
Em cada mulher existe uma morte silenciosa; e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos, os bordões da melodia, a morte sobe pelos dedos, navega o sangue, desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto. – Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito, mulher de pés no branco, transportadora da morte e da alegria!
Dai-me uma mulher tão nova como a resina e o cheiro da terra. Com uma flecha em meu flanco, cantarei. E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue, cantarei seu sorriso ardendo, suas mamas de pura substância, a curva quente dos cabelos. Beberei sua boca, para depois cantar a morte e a alegria da morte.
Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro pescoço de planta, onde uma chama comece a florir o espírito. À tona da sua face se moverão as águas, dentro da sua face estará a pedra da noite. – Então cantarei a exaltante alegria da morte.
Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela despenhada de sua órbita viva. – Porém, tu sempre me incendeias. Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite imagem pungente com seu deus esmagado e ascendido. – Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura. Entontece meu hálito com a sombra, tua boca penetra a minha voz como a espada se perde no arco. E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo se desfibra – invento para ti a música, a loucura e o mar.
Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso, a inspiração. E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa. Vou para ti com a beleza oculta, o corpo iluminado pelas luzes longas. Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos transfiguram-se, tuas mãos descobrem a sombra da minha face. Agarro tua cabeça áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou aquilo que se espera para as coisas, para o tempo – eu sou a beleza. Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.
Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti que me vem o fogo. Não há gesto ou verdade onde não dormissem tua noite e loucura, não há vindima ou água em que não estivesses pousando o silêncio criador. Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos originais. Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra a carne transcendente. E em ti principiam o mar e o mundo.
Minha memória perde em sua espuma o sinal e a vinha. Plantas, bichos, águas cresceram como religião sobre a vida – e eu nisso demorei meu frágil instante. Porém teu silêncio de fogo e leite repõe a força maternal, e tudo circula entre teu sopro e teu amor. As coisas nascem de ti como as luas nascem dos campos fecundos, os instantes começam da tua oferenda como as guitarras tiram seu início da música nocturna.
Mais inocente que as árvores, mais vasta que a pedra e a morte, a carne cresce em seu espírito cego e abstracto, tinge a aurora pobre, insiste de violência a imobilidade aquática. E os astros quebram-se em luz sobre as casas, a cidade arrebata-se, os bichos erguem seus olhos dementes, arde a madeira – para que tudo cante pelo teu poder fechado. Com minha face cheia de teu espanto e beleza, eu sei quanto és o íntimo pudor e a água inicial de outros sentidos.
Começa o tempo onde a mulher começa, é sua carne que do minuto obscuro e morto se devolve à luz. Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras com uma imagem. Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade uma ideia de pedra e de brancura. És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves, que te alimentas de desejos puros. E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola, a sombra canta baixo.
Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua, onde a beleza que transportas como um peso árduo se quebra em glória junto ao meu flanco martirizado e vivo. – Para consagração da noite erguerei um violino, beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada darei minha voz confundida com a tua. Oh teoria de instintos, dom de inocência, taça para beber junto à perturbada intimidade em que me acolhes.
Começa o tempo na insuportável ternura com que te adivinho, o tempo onde a vária dor envolve o barro e a estrela, onde o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida ingénua e cara, o que pressente o coração engasta seu contorno de lume ao longe. Bom será o tempo, bom será o espírito, boa será nossa carne presa e morosa. – Começa o tempo onde se une a vida à nossa vida breve.
Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna salina, imagem fechada em sua força e pungência. E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado em torno das violas, a morte que não beijo, a erva incendiada que se derrama na íntima noite – o que se perde de ti, minha voz o renova num estilo de prata viva.
Quando o fruto empolga um instante a eternidade inteira, eu estou no fruto como sol e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada matriz de sumo e vivo gosto. – E as aves morrem para nós, os luminosos cálices das nuvens florescem, a resina tinge a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã. E estás em mim como a flor na ideia e o livro no espaço triste.
Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento na cevada pura, de ti viriam cheias minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses em minha espuma, que frescura indecisa ficaria no meu sorriso? – No entanto és tu que te moverás na matéria da minha boca, e serás uma árvore dormindo e acordando onde existe o meu sangue.
Beijar teus olhos será morrer pela esperança. Ver no aro de fogo de uma entrega tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus será criar-te para luz dos meus pulsos e instante do meu perpétuo instante. – Eu devo rasgar minha face para que a tua face se encha de um minuto sobrenatural, devo murmurar cada coisa do mundo até que sejas o incêndio da minha voz.
As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso jovem da carne aspiram longamente a nossa vida. As sombras que rodeiam o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto seu bárbaro fulgor, o rosto divino impresso no lodo, a casa morta, a montanha inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo – aspiram longamente a nossa vida.
Por isso é que estamos morrendo na boca um do outro. Por isso é que nos desfazemos no arco do verão, no pensamento da brisa, no sorriso, no peixe, no cubo, no linho, no rosto aberto – no amor mais terrível do que a vida.
Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz o perfume da tua noite. Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua e branca das mulheres. Correm em mim o lacre e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca ao círculo de meu ardente pensamento. Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam sobre o teu sorriso imenso. Em cada espasmo eu morrerei contigo.
E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente das urzes, um silêncio, uma palavra; traz da montanha um pássaro de resina, uma lua vermelha. Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos, casa de madeira do planalto, rios imaginados, espadas, danças, superstições, cânticos, coisas maravilhosas da noite. Ó meu amor, em cada espasmo eu morrerei contigo.
De meu recente coração a vida inteira sobe, o povo renasce, o tempo ganha a alma. Meu desejo devora a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma de crepúsculos e crateras. Ó pensada corola de linho, mulher que a fome encanta pela noite equilibrada, imponderável – em cada espasmo eu morrerei contigo.
E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro da tua entrega. Bichos inclinam-se para dentro do sono, levantam-se rosas respirando contra o ar. Tua voz canta o horto e a água – e eu caminho pelas ruas frias com o lento desejo do teu corpo. Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo eu morrerei contigo. Fonte (primeira estrofe): Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1958.
Estava na época do mau tempo. Chegaria a qualquer momento, no fim do outono. Teríamos de fechar as janelas à noite, por causa da chuva, e o vento fio arrancaria as folhas das árvores da Place Contrescarpe. As folhas ficariam no chão, encharcadas, o vento atiraria a chuva contra os grandes ônibus verdes no ponto terminal, e o Café des Amateurs ficaria cheio de gente, suas janelas embaçadas pelo calor e pela fumaça lá de dentro. Era um café triste e mal administrado o Amateurs, onde os beberrões do bairro se apinhavam e do qual eu me mantinha afastado por causa do cheiro de corpos sujos e do azedo da embriaguez. Os homens e mulheres que o freqüentavam viviam bêbados todo o tempo ou, pelo menos, sempre que tinham dinheiro para isso, gastando seus recursos principalmente em vinho, que compravam aos meios litros ou aos litros. Havia anúncios de muitos aperitivos com nomes estranhos, mas poucos clientes se dignavam tomá-los, exceto como preparação para os copos e copos de vinho com que se embebedariam. As mulheres que se embriagavam eram chamadas de poivrottes. [...] Fonte: Hemingway, E. 1991 [1964]. Paris é uma festa, 6ª edição. RJ, Civilização Brasileira.
Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades para poder viver.
Houve mesmo uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso.
O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:
– Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo!
– Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho agüentado lá, no consulado!
– Cansa-se; mas, não é isso que me admiro. O que me admira é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático.
– Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês!
– Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?
– Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso.
– Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?
– Bebo. [...] Fonte: Mello, M. A., org. 2003. Nossas palavras. RJ, José Olympio. Conto originalmente publicado em 1911.
Neste domingo, 12/4, o Poesia contra a guerra completa dois anos e meio no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 63,562 visitas haviam sido registradas.
Desde o balanço mensal anterior – Dois anos e cinco meses no ar – foram ao ar textos dos seguintes autores: Albert Camus, Albert Jacquard, Carlos Saldanha, Deborah Gordon, Haroldo de Campos, Jonathan Swift, Odylo Costa, filho, Pedro Homem de Mello, Rafael Alberti e Sidónio Muralha. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Constantinos Volanakis, Nikephoros Lytra e Théodore Géricault.
A teoria da evolução por seleção natural – talvez, a mais influente de todas as teorias científicas – foi criada pelos britânicos Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913). Um primeiro esboço geral dessa teoria foi divulgado em 1/7/1858, em uma reunião da Sociedade Lineana de Londres. No ano seguinte, Darwin publicaria mais detalhes em seu mais famoso livro, A origem das espécies, versão abreviada e simplificada de um manuscrito inacabado. [...]
Como parte das comemorações pelo bicentenário e também pelos 150 anos da primeira edição de A origem das espécies, a Science de 5/2/2009 trouxe uma seção especial com cinco artigos de revisão sobre diferentes aspectos do processo de especiação. Por limitação de espaço, vamos comentar aqui apenas um desses trabalhos, embora a edição como um todo traga algumas das discussões mais efervescentes da biologia evolutiva contemporânea.
O artigo escolhido tem um título peculiar: ‘A Rainha Vermelha e o Bobo da Corte: diversidade de espécies e o papel de fatores bióticos e abióticos ao longo do tempo’. Nele, Michael J. Benton, da Universidade de Bristol (Inglaterra), examina até que ponto fatores bióticos (modelo Rainha Vermelha) e fatores abióticos (modelo Bobo da Corte) seriam responsáveis por moldar a diversidade de espécies. [...] Fonte: Costa, F. A. P. L. 2009. A Rainha Vermelha e o Bobo da Corte. Ciência Hoje 258: 12-13. O sítio da revista está aqui.
Morri, ó minha bela: não foi a Parca ímpia, que na tremenda roca, sem ter descanso, fia; não foi, digo, não foi a morte feia quem o ferro moveu e abriu no peito a palpitante veia.
Eu, Marília, respiro; mas o mal, que suporto, é tão tirano e forte que já me dou por morto: a insolente calúnia depravada ergueu-se contra mim, vibrou da língua a venenosa espada.
Inda, ó bela, não vejo cadafalso enlutado, nem de torpe verdugo braço de ferro armado; mas vivo neste mundo, – ó sorte ímpia! – e dele só me mostra a estreita fresta o quando é noite, ou dia.
Olhos baços, sumidos, macilento, escarnado, barba crescida e hirsuta, cabelo desgrenhado; ah! que imagem tão digna de piedade! mas é, minha Marília, como vive um réu de Majestade.
Venha o processo, venha, na inocência me fundo; mas não morreram outros, que davam honra ao mundo? O tormento, minha alma, não recuses: a quem, sábio, cumpriu as leis sagradas servem de sólio as cruzes.
Tu, Marília, se ouvires, que ante o teu rosto aflito o meu nome se ultraja co suposto delito, dize, severa, assim em meu abono: – Não toma as armas contra um cetro justo alma digna de um trono. Fonte: Gonzaga, T. A. 2000. Tomás Antônio Gonzaga, 4ª edição RJ, Agir. Poema originalmente publicado em 1802.
Negro touro saudoso de feridas, Chifrando-lhe à água azul suas paisagens E revisando cartas e equipagens Aos trens que partem rumo das corridas:
Que sonhas em teus cornos, que escondidas Ânsias lhes arrebolam as viagens, Que sistema de regos e drenagens No mar ensaiam tuas investidas?
Nostálgico de um homem com espada, De sangue femoral, gangrena feia, Já ninguém há de deter-te o passo forte.
Corre, touro, ao oceano, investe, nada, E a um toureiro de espuma e sal e areia, Já que intentas ferir, fere e dá morte. Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado – como parte de uma elegia, “Verte y no verte”, dedicada a Ignacio Sánchez Mejías – em 1935.
não em cada unha em cada artelho do dedo mínimo ao dedão
não da anca da potranca à curva do joelho da cintura ao tornozelo do cotovelo ao pulmão
2. um não de pedra um não de sola um não sem nenhum senão
em cada fio de cabelo em cada dente em cada pelo do pente do bico do seio ao monte de vênus da axila à virilha à ilharga à barriga da perna do céu da boca à interna rosa em botão
3. mas se de tamanho não tão unânime um não tão se dessa massa de nãos como de massa de pão fermentar um dia um sim (por mínimo que seja o seu roçar de cetim)
então nesse meu brinquedo (sinistro) de urso nesse meu jogo (triste) de leão –
a contra-sim a contra-senso a contra-mim –
serei eu a dizer não
4. um não de sins o meu não de fel coado de mel que para dizê-lo assim tão no seu esforço de não (como no rim uma pedra que endureça de paixão) será preciso queimar a mão direita no gelo ou na chapa do fogão abrir o peito e morder (como Aquiles quis fazer ao rei grego Olho-de-Cão como fez Madona Loba ao trovador Cabestão) esse músculo vermelho coração que bate sim encarniçado em seu não Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema originalmente publicado em 1998.
É próprio do homem transformar o que o rodeia, é da sua natureza viver artificialmente. Em seu proveito manipula o meio em que vive e consegue modificar as espécies vegetais ou animais que lhe são úteis. Baseada num conhecimento cada vez mais exacto dos mecanismos do mundo inanimado e do mundo vivo, a sua acção tornou-se cada vez mais eficaz. Por que não utilizar esse poder novo para atingir um objectivo mais fascinante: melhorar o próprio homem?
Esta ideia é muito antiga. A humanidade não é apenas responsável pela sua transformação moral ou espiritual, pelo seu encaminhamento para uma civilização melhor, é-o também pelo seu devir biológico. Egípcios, Hebreus e Gregos já tinham a preocupação de preservar a sua ‘raça’ de uma eventual degenerescência, de melhorar, se não o conjunto, pelo menos uma parte do grupo, de conseguir um homem novo, dotado de faculdades superiores. O abandono, no século 19, das teorias fixistas, que viam em cada espécie uma criação específica, definitiva, de Deus, a descoberta do processo de transmissão das características biológicas entre gerações e o conhecimento progressivamente aperfeiçoado da ligação entre a composição do património genético e os caracteres manifestados pelo indivíduo permitiram novas esperanças: iremos, finalmente, transformar-nos em ‘novos Pigmaliões’, modelando a nossa própria espécie? [...] Fonte: Jacquard, A. s/d [1978]. Elogio da diferença: a genética e os homens. Lisboa, Publicações Europa-América.