A história da humanidade se confunde com a história das guerras. Deveríamos lutar para que se confundisse apenas com a história da literatura.
31 agosto 2009
A negação da morte
Ernest Becker
3. [...] Eu acredito que têm razão, absoluta razão aqueles que acham que uma plena compreensão da condição humana levaria o homem à loucura. [...] Quem é que quer enfrentar plenamente com coragem a criatura que nós somos, a criatura que tem de usar suas garras e luta pelo ar que respira, num universo além do nosso entendimento? Acho que essas coisas ilustram o significado da assustadora observação feita por Pascal: “O homem é necessariamente louco, porque não ser louco resultaria em outra forma de loucura.” Necessariamente, porque o dualismo existencial cria uma situação impossível, um torturante dilema. Louco porque, como iremos ver, tudo o que o homem faz no seu mundo simbólico é uma tentativa de negar e vencer o seu destino grotesco. O homem literalmente se entrega a um esquecimento cego utilizando-se de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão distantes da realidade de sua situação que se constituem em formas de loucura – loucura admitida pelo consenso, loucura compartilhada, loucura disfarçada e digna, mas ainda assim loucura. “Os traços de caráter”, disse Sandor Ferenczi, uma das mais brilhantes inteligências do círculo de psicanalistas íntimos de Freud, “são psicoses secretas.” Não se trata de uma tirada espirituosa dita sem reflexão por uma ciência jovem embriagada com a sua capacidade de explicação e seu sucesso; é um maduro julgamento científico, uma devastadora revelação de si mesmo, a que pôde chegar o homem na tentativa de compreender a si mesmo. Ferenczi já havia conseguido enxergar além da máscara da sisudez, da máscara do sorriso, da máscara da seriedade, da máscara da satisfação, que as pessoas usam para enganar o mundo e a si mesmas sobre suas psicoses secretas. Mais recentemente, Erich Fromm se perguntava por que a maioria das pessoas não enlouquecia diante da contradição existencial entre um eu simbólico, que parece dar ao homem um valor infinito num esquema de coisas atemporal, e um corpo que vale cerca de 98 centavos de dólar. Como conciliar as duas coisas? [...] Fonte: Becker, E. s/d [1973] A negação da morte. RJ, Record.
Para cantar de amor tenros cuidados, Tomo entre vós, ó montes, o instrumento; Ouvi pois o meu fúnebre lamento; Se é, que de compaixão sois animados:
Já vós vistes, que aos ecos magoados Do trácio Orfeu parava o mesmo vento; Da lira de Anfião ao doce acento Se viram os rochedos abalados.
Bem sei, que de outros gênios o Destino, Para cingir de Apolo a verde rama, Lhes influiu na lira estro divino:
O canto, pois, que a minha voz derrama, Porque ao menos o entoa um peregrino, Se faz digno entre vós também de fama. Fonte: Costa, C. M. [1986?] Poemas de Cláudio Manuel da Costa. SP, Cultrix. Poema originalmente publicado em 1768.
Hálito da terra depois da chuva: cálida ternura aflorando na espessura do lábio
Teu corpo leveza que pesa um saber sábio secreto da Natureza
Por isso os bichos te amam em suas falas naturais: os felinos os caprinos e os poetas – bichos marginais Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1977.
O que há de importante a respeito do infinito é que não se trata apenas de um número muito grande. O infinito é diferente no nível qualitativo de algo que seja meramente imenso a um ponto estupendo e inimaginável. Suponha que o universo não venha a ter um fim; para ele, resistir por toda a eternidade significa ter uma duração infinita. Se esse for o caso, qualquer processo físico que se possa conceber teria que acontecer algum dia, da mesma forma que um macaco eternamente batendo de maneira atabalhoada nas teclas de uma máquina de escrever acabaria escrevendo as obras de William Shakespeare. [...] Fonte: Davies, P. 1994. Os três últimos minutos. RJ, Rocco.
Só aos sábios o reveles, Pois o vulgo zomba logo: Quero louvar o vivente Que aspira à morte no fogo.
Na noite – em que te geraram, Em que geraste – sentiste, Se calma a luz que alumiava, Um desconforto bem triste.
Não sofres ficar nas trevas Onde a sombra se condensa. E te fascina o desejo De comunhão mais intensa.
Não te detêm as distâncias, Ó mariposa! e nas tardes, Ávida de luz e chama, Voas para a luz em que ardes.
“Morre e transmuda-te”: enquanto Não cumpres esse destino, És sobre a terra sombria Qual sombrio peregrino. Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1819.
Fermoso Tejo meu, quão diferente Te vejo e vi, me vês agora e viste: Turvo te vejo a ti, tu a mim triste, Claro te vi eu já, tu a mim contente.
A ti foi-te trocando a grossa enchente A quem teu largo campo não resiste; A mim trocou-me a vista em que consiste O meu viver contente ou descontente.
Já que somos no mal participantes, Sejamo-lo no bem. Oh! quem me dera Que fôramos em tudo semelhantes!
Mas lá virá a fresca primavera: Tu tornarás a ser quem eras d’antes, Eu não sei se serei quem d’antes era. Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema do início do século 17.
6. O conceito marxista do socialismo deflui de seu conceito do homem. A esta altura já deve estar claro que, de acordo com esse conceito, o socialismo não é uma sociedade de indivíduos arregimentados e automatizados, independente de haver ou não igualdade de renda e de estarem bem alimentados e bem vestidos. Não é uma sociedade onde os indivíduos sejam subordinados ao Estado, à máquina, à burocracia. Ainda que o Estado fosse, como ‘capitalista abstrato’, o empregador, ainda que “a totalidade do capital social estivesse nas mãos de um único capitalista ou de uma única empresa capitalista”, isso não seria socialismo. Com efeito, conforme Marx diz assaz claramente nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, “o comunismo não é em si a meta da evolução humana”. Qual, então é essa meta?
Bem evidentemente, a meta do socialismo é o homem. É criar uma forma de produção e uma organização da sociedade onde o homem possa superar a alienação de seu produto, de seu trabalho, de seu semelhante, de si mesmo e da natureza; na qual ele possa regressar a si mesmo e apreender o mundo com suas próprias forças, tornando-se, dessarte, unido ao mundo. O socialismo, para Marx, era, nas palavras de Paul Tillich, “um movimento de resistência contra a destruição do amor na realidade social”. [...] Fonte: Fromm, E. 1975 [1961]. Conceito marxista do homem, 6ª edição. RJ, Zahar.
Nesta quarta-feira, 12/8, o Poesia contra a guerra completa dois anos e dez meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 72.535 visitas haviam sido registradas.
Desde o balanço mensal anterior – Trinta e três meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Alexander I. Oparin, Edward O. Wilson, Gregory Bateson, José Chagas, Néstor Perlongher, Paul Tillich, Robert Frost e Ruy Cinatti. Além de outros autores que já haviam sido publicados antes.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Gerritt Dou, Hans Holbein, o Jovem, e Odilon Redon.
Assim como uma bala enterrada no corpo, fazendo mais espesso um dos lados do morto;
assim como uma bala do chumbo pesado, no músculo de um homem pesando-o mais de um lado
qual bala que tivesse um vivo mecanismo, bala que possuísse um coração ativo
igual ao de um relógio submerso em algum corpo, ao de um relógio vivo e também revoltoso,
relógio que tivesse o gume de uma faca e toda a impiedade de lâmina azulada;
assim como uma faca que sem bolso ou bainha se transformasse em parte de vossa anatomia;
qual uma faca íntima ou faca de uso interno, habitando num corpo como o próprio esqueleto
de um homem que o tivesse, e sempre, doloroso, de homem que se ferisse contra seus próprios ossos.
A. Seja bala, relógio, ou a lâmina colérica, é contudo uma ausência o que esse homem leva.
Mas o que não está nele está como bala: tem o ferro do chumbo, mesma fibra compacta.
Isso que não está nele é como um relógio pulsando em sua gaiola, sem fadiga, sem ócios.
Isso que não está nele está como a ciosa presença de uma faca, de qualquer faca nova.
Por isso é que o melhor dos símbolos usados é a lâmina cruel (melhor se de Pasmado):
porque nenhum indica essa ausência tão ávida como a imagem da faca que só tivesse lâmina,
nenhum melhor indica aquela ausência sôfrega que a imagem de uma faca reduzida à sua boca,
que a imagem de uma faca entregue inteiramente à fome pelas coisas que nas facas se sente.
B. Das mais surpreendentes é a vida de tal faca: faca, ou qualquer metáfora, pode ser cultivada.
E mais surpreendente ainda é sua cultura: medra não do que come porém do que jejua.
Podes abandoná-la, essa faca intestina: jamais a encontrarás com a boca vazia.
Do nada ela destila a azia e o vinagre e mais estratagemas privativos dos sabres.
E como faca que é, fervorosa e energética, sem ajuda dispara sua máquina perversa:
a lâmina despida que cresce ao se gastar, que quanto menos dorme quanto menos sono há,
cujo muito cortar lhe aumenta mais o corte e se vive a se parir em outras, como fonte.
(Que a vida dessa faca se mede pelo avesso: seja relógio ou bala, ou seja faca mesmo.)
C. Cuidado com o objeto, com o objeto cuidado, mesmo sendo uma bala desse chumbo ferrado,
porque seus dentes já a bala os traz rombudos e com facilidade se em botam mais no músculo.
Mais cuidado porém quando for um relógio com o seu coração aceso e espasmódico.
É preciso cuidado por que não se acompasse o pulso do relógio com o pulso do sangue,
e seu cobre tão nítido não confunda a passada com o sangue que bate já sem morder mais nada.
Então se for faca, maior seja o cuidado: a bainha do corpo pode absorver o aço.
Também seu corte às vezes tende a tornar-se rouco e há casos em que ferros degeneram em couro.
O importante é que a faca o seu ardor não perca e tampouco a corrompa o cabo de madeira.
D. Pois essa faca às vezes por si mesma se apaga. É a isso que se chama maré-baixa da faca.
Talvez que não se apague e somente adormeça. Se a imagem é relógio, a sua abelha cessa.
Mas quer durma ou se apague: ao calar tal motor, a alma inteira se torna de um alcalino teor
bem semelhante à neutra substância, quase feltro, que é a das almas que não têm facas-esqueleto.
E a espada dessa lâmina, sua chama antes acesa, e o relógio nervoso e a tal bala indigesta,
tudo segue o processo de lâmina que cega: faz-se faca, relógio ou bala de madeira,
bala de couro ou pano, ou relógio de breu, faz-se faca sem vértebras, faca de argila ou mel.
(Porém quando a maré já nem se espera mais, eis que a faca ressurge com todos seus cristais.)
E. Forçoso é conservar a faca bem oculta pois na umidade pouco seu relâmpago dura
(na umidade que criam salivas de conversas, tanto mais pegajosas quanto mais confidências).
Forçoso é esse cuidado mesmo se não é faca a brasa que te habita e sim relógio ou bala.
Não suportam também todas as atmosferas: sua carne selvagem quer câmaras severas.
Mas se deves sacá-los para melhor sofrê-los, que seja em algum páramo ou agreste de ar aberto.
Mas nunca seja ao ar que pássaros habitem. Deve ser a um ar duro, sem sombra e sem vertigem.
E nunca seja à noite, que esta tem as mãos férteis. Aos ácidos do sol seja, ao sol do Nordeste,
à febre desse sol que faz de arame as ervas, que faz de esponja o vento e faz de sede a terra.
F. Quer seja aquela bala ou outra qualquer imagem, seja mesmo um relógio a ferida que guarde,
ou ainda uma faca que só tivesse lâmina, de todas as imagens a mais voraz e gráfica,
ninguém do próprio corpo poderá retirá-la, não importa se é bala nem se é relógio ou faca,
nem importa qual seja a raça dessa lâmina: faca mansa de mesa, feroz pernambucana.
E se não a retira quem sofre sua rapina, menos pode arrancá-la nenhuma mão vizinha.
Não pode contra ela a inteira medicina de facas numerais e aritméticas pinças.
Nem ainda a polícia com seus cirurgiões e até nem mesmo o tempo como os seus algodões.
E nem a mão de quem sem o saber plantou bala, relógio ou faca, imagens de furor.
G. Essa bala que um homem leva às vezes na carne faz menos rarefeito todo aquele que a guarde.
O que um relógio implica por indócil e inseto, encerrado no corpo faz este mais desperto.
E se é faca a metáfora do que leva no músculo, facas dentro de um homem dão-lhe maior impulso.
O fio de uma faca mordendo o corpo humano, de outro corpo ou punhal tal corpo vai armando,
pois lhe mantendo vivas todas as molas da alma dá-lhes ímpeto de lâmina e cio de arma branca,
além de ter o corpo que a guarda crispado, insolúvel no sono e em tudo quanto é vago,
como naquela história por alguém referida de um homem que se fez memória tão ativa
que pôde conservar treze anos na palma o peso de uma mão, feminina, apertada.
H. Quando aquele que os sofre trabalha com palavras, são úteis o relógio, a bala e, mais, a faca.
Os homens que em geral lidam nessa oficina têm no almoxarifado só palavras extintas:
umas que se asfixiam por debaixo do pó outras despercebidas em meio a grandes nós;
palavras que perderam no uso todo o metal e a areia que detém a atenção que lê mal.
Pois somente essa fraca dará a tal operário olhos mais frescos para o seu vocabulário
e somente essa faca e o exemplo de seu dente lhe ensinará a obter de um material doente
o que em todas as facas é a melhor qualidade: a agudeza feroz , certa eletricidade,
mais a violência limpa que elas têm, tão exatas, o gosto do deserto, o estilo das facas.
I. Essa lâmina adversa, como o relógio ou a bala, se torna mais alerta todo aquele que a guarda,
sabe acordar também os objetos em torno e até os próprios líquidos podem adquirir ossos.
E tudo o que era vago, toda frouxa matéria, para quem sofre a faca ganha nervos, arestas.
Em volta tudo ganha a vida mais intensa, com nitidez de agulha e presença de vespa.
Em cada coisa o lado que corta se revela, e elas que pareciam redondas como a cera
despem-se agora do caloso da rotina, pondo-se a funcionar com todas suas quinas.
Pois entre tantas coisas que também já não dormem, o homem a quem a faca corta e empresta seu corte,
sofrendo aquela lâmina e seu jato tão frio, passa, lúcido e insone, vai fio contra fios.
*
De volta dessa faca, amiga ou inimiga, que mais condensa o homem quanto mais o mastiga;
de volta dessa faca de porte tão secreto que deve ser levada como o oculto esqueleto;
da imagem em que mais me detive, a da lâmina, porque é de todas elas certamente a mais ávida;
pois de volta da faca se sobe à outra imagem, àquela de um relógio picando sob a carne,
e dela àquela outra, a primeira, a da bala, que tem o dente grosso porém forte a dentada
e daí à lembrança que vestiu tais imagens e é muito mais intensa do que pôde a linguagem,
e afinal à presença da realidade, prima, que gerou a lembrança e ainda a gera, ainda,
por fim à realidade, prima, e tão violenta que ao tentar apreendê-latoda imagem rebenta. Fonte: Melo Neto, J. C. 1994. Obra completa: volume único. RJ, Nova Aguilar. Poema – dedicado a Vinicius de Moraes e que tem como subtítulo: ‘ou: serventia das idéias fixas’ – originalmente publicado em 1956.
1. Suave, encolhido, tímido animalzinho, Oh, que terror se aperta em teu peitinho! Não precisas te precipitar Em temerosa corrida! Eu não desejava te arreliar e perseguir Com enxadão assassino!
2. Sincero lastimo a humana dominação A quebrar da Natureza a social união, E a justificar tão má opinião Que o faz saltar Longe de mim, teu pobre companheiro Terreno e mortal!
3. Não duvido, tu és o meu ladrão; E então? animalzinho, precisas sobreviver! Um grãozinho de milho num monte de grãos É pequena requisição: Será uma dádiva o que me deixares Nunca sentirei o que me roubares!
4. E tua casinhola, também em ruínas! Seus tolos muros pelos ventos carregados! E nada já para construir-te uma nova, Mesmo de áspero capim! E em dezembro, as invernais ventanias Aparecem, cortantes e severas!
5. Tu viste os campos desertos, devastados, E o árido inverno rápido chegado, E comodamente, sob os vendavais, Aqui pensaste em habitar! Até que um som cruel cortou numa fatia Crash! A tua morada.
6. Este feixe de folhas e restolhos, Como te custou exaustivos bocados, Agora foste expulso, apesar dos cuidados, Sem abrigo nem casa ter, A suportar chuvosa e fria geada, E a terra sentir congelada!
7. Mas camundonguinho, tu não estás sozinho Ter precaução pode ser algo bem vão: Os melhores planos de ratos e homens Por vezes se arruínam Deixando-nos imersos em tristeza e dor Em lugar da prometida alegria!
8. És contudo feliz se comigo comparado! Pois tão-somente o presente observas: Enquanto eu, oh! quando para trás olho Só planos frustrados enxergo! E quando olho para frente nada vejo, Senão maus augúrios, e estremeço! Fonte: Burns, R. 1994. 50 poemas. RJ, Relume-Dumará. Poema – cujo subtítulo é “Ao revirá-la no seu ninho com o arado” – originalmente publicado em 1786.
2. [...] A ansiedade da morte é o horizonte permanente dentro do qual a ansiedade do destino trabalha. Porque a ameaça contra a auto-afirmação ôntica do homem não é só a ameaça absoluta da morte, mas também a ameaça relativa do destino. [...] O termo ‘destino’ para todo este grupo de ansiedade acentua um elemento que é comum a todos eles: seu caráter contingente, sua imprevisibilidade, a impossibilidade de mostrar sua significação e propósito. [...] Contingente não que dizer casualmente indeterminado, mas significa que as causas determinantes de nossa existência não têm necessidade fundamental. Elas são dadas, e não podem ser deduzidas logicamente. Estamos colocados de modo contingente dentro da trama completa das relações causais. De modo contingente somos determinados por elas a cada momento, e por elas expulsos no último momento. [...] Fonte: Tillich, P. 1977 [1952]. A coragem de ser, 3ª edição. RJ, Paz & Terra.
Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos, assim te levo comigo, tarde de maio, quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra, outra chama, não-perceptível, e tão mais devastadora, surdamente lavrava sob meus traços cômicos, e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes e condenadas, no solo ardente, porções de minh’alma nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza sem fruto.
Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva, colheita, fim do inimigo, não sei que portentos. Eu nada te peço a ti, tarde de maio, senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível, sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém que, precisamente, volve o rosto, e passa... Outono é a estação em que ocorrem tais crises, e em maio, tantas vezes, morremos.
Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera, já então espectrais sob o aveludado da casca, trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos, sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo. E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco. Nem houve testemunha.
Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos. Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara? Se morro de amor, todos o ignoram e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata. O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados; não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta, perdida no ar, por que melhor se conserve, uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens. Fonte: Andrade, C. D. 1995. Claro enigma, 10ª edição. RJ, Record. A primeira edição do livro foi publicada em 1951.