31 dezembro 2016

O homem bom não tem forma


Viveu na pobreza durante séculos.
Só Deus era sua única elegância.

Então foi se tornando a cada geração
Mais forte e mais livre, e um pouco mais próspero.

Vivia cada vida, ainda que má,
Porque uma vida boa era possível.

E veio enfim a vida boa, sono e fruta,
E Lázaro o delatou aos outros,

Que o mataram, cravando-lhe penas na carne
Por escárnio. Em seu túmulo puseram

Vinho azedo, como aviso, e um livro em branco
Para ler; por cima, uma placa quebrada,

Com o epitáfio de sua morte: O Homem
Bom Não Tem Forma, como se soubessem.

Fonte: Stevens, W. 1987. Poemas. SP, Companhia das Letras. Poema publicado em livro em 1947.

29 dezembro 2016

Soneto fiel

Carlos de Oliveira

Vocábulos de sílica, aspereza,
Chuva nas dunas, tojos, animais
Caçados entre névoas matinais,
A beleza que têm se é beleza.

O trabalho da plaina portuguesa,
As ondas de madeira artesanais
Deixando o seu fulgor nos areais,
A solidão coalhada sobre a mesa.

As sílabas de cedro, de papel,
A espuma vegetal, o selo de água,
Caindo-me nas mãos desde o início.

O abat-jour, o seu luar fiel,
Insinuando sem amor nem mágoa
A noite que cercou o meu ofício.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1968.

27 dezembro 2016

Sobre diferenças individuais

Arthur Jensen

Sou e sempre fui favorável à igualdade de oportunidades, aos direitos civis. Oponho-me à segregação de classes sociais ou raciais. Acredito que se deva lidar com as pessoas em termos das suas características individuais, mais do que em termos da filiação delas a um grupo. Minhas motivações não têm nada a ver com o pensamento racista mas, de um modo geral, fui muito rejeitado pelo que chamo de ideologismo dos anos 50 e 60, existente na psicologia. Havia um grande tabu até mesmo contra [levantar] questões sobre a influência genética ou biológica sobre as diferenças individuais e, especialmente, sobre as diferenças grupais de qualquer espécie. Este tabu doutrinário parece-me uma corrupção da ciência do comportamento pelo pensamento ideológico, embora eu concorde com os ideais democráticos desta ideologia.

Fonte: Evans, R. I. 1979 [1976]. Construtores da psicologia. SP, Summus & Edusp.

25 dezembro 2016

Madona com o Menino


[Giovanni Battista Salvi] Sassoferrato (1609-1685). Madonna col Bambino. ~1650.

Fonte da foto: Wikipedia.

23 dezembro 2016

Relatividade da simultaneidade

Hugh D. Young & Roger A. Freedman

A medida do tempo e de um intervalo de tempo envolve o conceito de simultaneidade. Em um dado sistema de referência, um evento é uma ocorrência caracterizada por valores definidos da posição e do tempo [...]. Quando você diz que se levantou às 7 horas, está afirmando que dois eventos ocorreram simultaneamente (você levantar e o relógio indicar 7 horas). O problema fundamental na medida de intervalos de tempo é que, quando dois eventos ocorrem simultaneamente em um sistema de referência, eles não ocorrem simultaneamente em um segundo sistema de referência que se move em relação ao primeiro, mesmo quando ambos são sistemas de referência inerciais.
[...]

Fonte: Young, H. D. & Freedman, R. A. 2009. Física IV, 12ª ed. SP, Pearson.

20 dezembro 2016

Toada do negro no banzo

Murillo Araújo

Negro –
quando cava, quando cansa,
quando pula, quando tomba,
quando grita, quando dança,
quando brinca, quando zomba
sente gana de chorá...

Negro –
quando nasce, quando cresce,
quando luta, quando corre,
quando sobe, quando desce,
quando véve, quando morre
negro pena sem pará...

Negro, aponta o ponto –
ai Umbanda!
ginga tonto, tonto –
ai Umbanda!
Negro aponta: Oôu!

Negra nua, nua –
ai Umbanda!
toma a bença à lua –
ai Umbanda!
samba nua... Oôu!

Xangô!
Meu céu s’ecureceu.
Exú me despachou...
Calunga me prendeu...

Xangô! Xangô! Xangô!
Meu rancho se acabou...
Meu reino – mar levou...
Meu bem morêu... morreu.

Negro –
negro chora, negro samba
na macumba do quilombo,
com malafo p’ra moamba
dando bumba no ribombo
do urucungo e do ganzá!

Negro –
cai no congo, cai no congo,
dos mirongas ao muganga,
todo o bando nesse jongo...
roda, negro – roda a tanga
chora banzo no gongá.

Negro aponta o ponto –
ai Umbanda!
ginga tonto, tonto –
ai Umbanda!
Negro aponta: Oôu!

Se Xangô chegasse...
ai Umbanda!
E me carregasse
ai Umbanda!
Coisa boa... Oôu!

Fonte (primeira estrofe): Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 7. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1941.

18 dezembro 2016

Testamento do homem sensato

Carlos Pena Filho

Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: “Ele era assim...”
mas senta-te num banco de jardim,
calmamente, comendo chocolates.

Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.

Porém, se, um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em voo se arremeda,

deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
com uma luz, mais que distante, breve.

Fonte: Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1959.

16 dezembro 2016

Aborto: a necessidade de uma nova ética

Margaret Mead & Rhoda Métraux

Toda a situação relativa ao aborto neste país mudou dramaticamente desde o princípio deste ano de 1973.

Em suas momentosas decisões de janeiro último, a Corte Suprema enquadrou claramente o direito de uma mulher obter um aborto na área da liberdade individual, que este país sempre defendeu explicitamente. Derrogando leis estaduais que restringiam ou vedavam o direito de uma mulher tomar por si a decisão de submeter-se a um aborto, levou a um ponto morto uma feroz batalha travada entre os que pugnavam contra e a favor da ‘liberalização’ das leis do aborto. A base das decisões da Corte foi o reconhecimento de um “direito sobre a própria pessoa”, livre de restrições governamentais.

Entretanto, a Corte Suprema não deixou o país sem direção para o futuro. Nos primeiros três meses da gravidez, decretou a Corte, a decisão de uma mulher deve ser totalmente livre de interferência legal. Durante os últimos seis meses os estados têm a faculdade de “regular o procedimento do aborto de modos razoavelmente relacionados à saúde materna”; ou seja, os estados podem legislar de modo a proteger o bem-estar da mulher que decida interromper uma gestação. E, finalmente, durante as últimas dez semanas da gravidez, quando se presume que o nascituro “tem a aptidão de vida significativa fora do útero da mãe”, o aborto pode ser legalmente proibido, salvo para proteger a vida ou a saúde da mãe.

Portanto, a liberdade de decisão de uma mulher é garantida, mas não absoluta. Nos últimos estágios da gravidez o bem-estar da mãe e, no fim, o bem-estar de um novo ser humano viável recebem proteção.
[...]

Fonte: Mead, M. & Metraux, R. 1982. Aspectos do presente. RJ, Francisco Alves.

14 dezembro 2016

Musée des Beaux Arts

W. H. Auden

About suffering they were never wrong,
The Old Masters: how well they understood
Its human position: how it takes place
While someone else is eating or opening a window or just walking dully along;
How, when the aged are reverently, passionately waiting
For the miraculous birth, there always must be
Children who did not specially want it to happen, skating
On a pond at the edge of the wood:
They never forgot
That even the dreadful martyrdom must run its course
Anyhow in a corner, some untidy spot
Where the dogs go on with their doggy life and the torturer’s horse
Scratches its innocent behind on a tree.

In Brueghel’s Icarus, for instance: how everything turns away
Quite leisurely from the disaster; the ploughman may
Have heard the splash, the forsaken cry,
But for him it was not an important failure; the sun shone
As it had to on the white legs disappearing into the green
Water; and the expensive delicate ship that must have seen
Something amazing, a boy falling out of the sky,
Had somewhere to get to and sailed calmly on.

Fonte: Dennett, D. C. 1998. A perigosa idéia de Darwin. RJ, Zahar. Poema – alusão ao quadro A queda de Ícaro, de Pieter Bruegel – publicado em livro em 1940.

13 dezembro 2016

Dez anos e dois meses no ar

F. Ponce de León

Nessa segunda-feira, 12/12, o Poesia contra a guerra completou 10 anos e dois meses no ar. Ao fim do expediente de domingo, o contador instalado no blogue indicava que 308.855 visitas ocorreram ao longo desse período.

Desde o balanço anterior – Dez anos e um mês no ar – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Anacreonte, Arthur Rubinstein, Benício de Barros Neto, Geni Guimarães, Guy de Almeida, Ieda S. Scarminio, Paulino de Oliveira, Rolf F. Hoekstra, Roy E. Bruns, Simon Schwartzman e Stephen C. Stearns. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Elizabeth Adela Forbes, Henry Tonks e Stanhope Forbes.

11 dezembro 2016

Fácil ou impossível

Arthur Rubinstein

A arte tem [de] ser fácil ou impossível. Por que será que tudo o que Mozart escreve parece tão simples? O caminho para esta simplicidade é o trabalho forçado, só que tem que ele jamais deve parecer trabalho.

Fonte: Solman, J. 1991. Mozartiana: Dois séculos de notas, citações e anedotas sobre Wolfgang Amadeus Mozart. RJ, Nova Fronteira. Excerto de livro publicado em 1980.

08 dezembro 2016

Infusão salina


Henry Tonks (1862-1937). Saline infusion: An incident in the British Red Cross Hospital, Arc-en-Barrois. 1915.

Fonte da foto: Wikipedia.

06 dezembro 2016

Modos de classificar a seleção

Stephen C. Stearns & Rolf F. Hoekstra

Tipos de seleção podem ser classificados de diversas formas: como seleção natural e seleção sexual; como seleção estabilizadora, direcional ou disruptiva; como seleção dependente de densidade ou como dependente de frequência; como seleção individual, de parentesco, de grupo ou de espécies; e também como seleção direta ou indireta. Cada classificação focaliza sua atenção em diferentes aspectos ou níveis de seleção. Nem todas as combinações entre os tipos de classificação são possíveis. Por exemplo, a seleção natural estabilizadora, direcional ou disruptiva pode operar sobre indivíduos, famílias ou grupos; porém, a seleção sexual opera quase que exclusivamente sobre indivíduos.
[...]

Fonte: Stearns, S. C. & Hoekstra, R. F. 2003. Evolução: Uma introdução. SP, Atheneu.

04 dezembro 2016

O sítio chamado Juiz de Fora

Paulino de Oliveira

Antes de 1836, o que havia era somente a fazenda do Juiz de Fora, no outro lado do rio, à qual alude John Mawe no seu livro Viagem ao interior do Brasil, publicado em Londres em 1812, informando ter a ela chegado depois de transpor “uma cadeia de montanhas no meio das quais vimos outros saltos do Paraíba, mais aproximados de sua nascente e atravessando um território cheio de matos”, enquanto Saint Hilaire a ela se refere deste modo: “A uma légua e três quartos de Marmelo encontra-se a habitação de Juiz de Fora, nome que vem sem dúvida do emprego que ocupava o primeiro proprietário. Da venda de Juiz de Fora tem-se sob os olhos uma paisagem encantadora. Essa venda foi construída na extremidade de uma grande pastagem, cercada de morros por todos os lados. O Paraibuna corre perto do caminho; sobre um pequeno regato que aí desemboca, depois de haver atravessado a estrada, foi construída uma ponte de madeira de efeito muito pitoresco; perto está uma cruz; mais ao longe veem-se uma capela abandonada e as ruínas de um engenho de açúcar. Ao lado da venda está um vasto rancho e muito perto um celeiro para o milho”. Luccock, citado por Burton nas suas Viagens aos planaltos do Brasil, a descreve como “uma capelinha e poucas pobres casas” – isto, no lugar que tem sido indicado como o berço da cidade – sendo certo que havia nas proximidades outros pequenos núcleos de população, como Alcaide-Mor (depois Tapera), a que se refere Antonil e por onde não passaram, por certo, Saint Hilaire, John Mawe, Luccock e outros, além de Marmelo e Medeiros, dos quais há apenas vagas referências, e Boiada, a cuja existência consagrou Albino Esteves o seguinte trecho, no Álbum: “Os habitantes da Boiada passaram-se, pois, se bem que pesarosos, para onde os chamara os interesses de sua rotineira existência e, uma a uma,  as casas do velho povoado foram caindo até que o matagal e o tempo se encarregaram de apagar os vestígios daquele recanto outrora tão querido e procurado. A última recordação da povoação da Boiada foi a viagem de Santo Antônio do morro da Boiada, conduzido processionalmente de sua capelinha para a várzea e que durante muitos anos se encontrou no cartório do finado padre João Roussin, devendo estar em poder de seus herdeiros [...]. E, a propósito da transladação da imagem de Santo Antônio, narravam os do tempo e a tradição nos trouxe a pitoresca lenda da ‘fuga do santo’, do altar, em sua nova igreja na várzea para o velho povoado da serra da Boiada... É que o povo, simples e ingênuo, não queria abandonar, sem uma espécie de protesto, o antigo campo de suas lutas”.

Fonte: Oliveira, P. 1966. História de Juiz de Fora, 2ª ed. JF, s/n.

02 dezembro 2016

Hora de abandono

Miguel Torga

Não dizer nada, chorar.
Chorar como uma criança
Que já não tem confiança
No próprio Deus da doutrina.
Não dizer nada, chorar
Até o pranto coalhar
Na retina.

Fonte (três últimos versos): Cunha, C. 1976. Gramática do português contemporâneo, 6ª edição. BH, Editora Bernardo Álvares. ‘Miguel Torga’ era pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha. Poema publicado em livro em 1950.

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