31 janeiro 2024

O cristianismo surgiu como movimento revolucionário?

Hans Küng

Aqui também não se trata de anacronismo. A ‘teologia da revolução’ não é produto de nossos dias. Na história do cristianismo, esse tipo de revolução é representado pelos movimentos apocalípticos ou catárticos da Antiguidade, pelas seitas radicais da Idade Média (com ênfase no movimento político de Cola de Rienzo) e na esquerda da Reforma (sobretudo Thomas Münzer). A tese de que Jesus teria sido um revolucionário político-social foi defendida esporadicamente depois do estudo de S. Reimarus ([falecido em] 1768), incentivador da pesquisa histórico-crítica dos Evangelhos, e de K. Kautsky, líder socialista austríaco, até Robert Eisler, seguido, em nossos dias, por J. Carmichael e S. G. F. Brandon.

Ora, não há dúvida de que a Galileia, pátria de Jesus, era sobremodo sensível a ideias revolucionárias e se considerava terra de origem do movimento revolucionários dos zelotes (zelotes = ‘Zelosos’, com conotação de fanáticos). E, no mínimo, um dos seus sequazes tinha sido um zelote – a saber, Simão, cognominado exatamente de ‘zelote’ e, se formos julgar pelo nome, também Judas Iscariotes e, quiçá, os dois ‘filhos do trovão’, João e Tiago. Finalmente o fato de, no processo de Jesus diante de Pôncios Pilatos, ter representado papel decisivo o título ‘rei dos judeus’, de modo que Jesus foi executado por motivos políticos, submetido à forma de morte reservada a escravos e sediciosos políticos. A acusação poderia encontrar alguma base nos acontecimentos da entrada triunfal em Jerusalém e da purificação do templo, pelo menos se considerarmos a maneira como nos foram transmitidos.

Nenhum outro povo mais do que os judeus ofereceu resistência política tão persistente ao domínio romano. Os temores de revolta eram mais do que reais para as tropas de ocupação. Desde mais tempo viam-se frente a uma situação revolucionária aguda na Palestina. Crescia a influência do movimento sedicioso que, em oposição ao establishment de Jerusalém, repelia qualquer tipo de colaboração com os ocupantes, chegando a sonegar impostos e mantendo numerosas ligações secretas com o partido dos fariseus. Sobremodo numerosos eram os guerrilheiros nacionalistas ativos na Galileia, contra os quais já o idumeu Herodes, nomeado ‘rei dos judeus’ pelo senado romano e em cujo tempo Jesus havia nascido, devia apelar ao recurso da pena de morte. Depois da morte de Herodes, que marcou seu reinado com um governo de mão de ferro e velhacaria, tornou a haver desordens que foram abafadas, sem dó nem piedade, pelas tropas comandadas por Quintílio Varo, cabo de guerra que iria fazer triste figura na luta contra os germanos. Conseguiu-se fundar um partido revolucionário na Galileia, sob a chefia de Judas de Gamala (cognominado ‘o Galileu’), quando, pouco depois, no ano 6 da nossa era, o imperador Augusto depôs Arquelau (não ‘rei’, mas ‘etnarca’ da Judeia), brutal filho de Herodes. A Judeia foi colocada sob a administração direta de um procurador. O imperador ordenou a Sulpício Quirínio, governador romano da Síria, que recenseasse a população, visando melhor controle fiscal – fato a que Lucas faz vaga alusão em nexo com o nascimento de Jesus. A Galileia governada por Herodes Antipas sofreu as consequências apenas indiretas – mas os zelodes enfurecidos tentaram revoltar-se. Durante as arruaças tombou seu líder e o restante dos sediciosos dispersou-se.

Fonte: Küng, H. 1976. Ser cristão. RJ, Imago.

29 janeiro 2024

Eu como pintor

Poh Pin Chin

Eu como pintor
vou
ao teu lado
pintando
tudo o que
tinha
de estar
aqui –
o preto diurno,
o branco noturno.

28 janeiro 2024

O quarto estágio da vida

Gordon Allport

[Evans] O senhor estaria inclinado a concordar então com a discussão de Jung [...] do processo de individuação. Ele achava que a individuação é um processo importante, mesmo na meia idade, e suas ideias são coerentes com a emergência do movimento existencial, em que um indivíduo começa a levantar questões de ‘quem sou eu?’, ‘para que estou aqui?’ e assim por diante. O senhor acha que é uma coisa saudável o indivíduo ficar cada vez mais preocupado com pensamentos sobre sua própria existência?

[Allport] Quando você levanta questões sobre o envelhecimento, você quase me convida a falar introspectivamente, mas entendo que você está chegando a um período da vida que concede a um homem mais tempo para tais questões. Eu diria que há provavelmente tantas maneiras de envelhecer quanto existe de indivíduos, porque defendo a singularidade em cada estágio do ser. Os psicólogos hindus nos contam que é muito característico das pessoas mais velhas procurarem um quarto estágio da vida que é chamado de significação ou liberação, mas que representa um desengajamento das atividades dos primeiros estágios, em que se procura maior prazer e sucesso, e o cumprimento das obrigações de cada um. O quarto estágio é aquele a que você aludiu, onde se levantam questões do tipo ‘quem sou eu?’, ‘o que é isso tudo afinal?’, ‘o que vem depois’ e assim por diante. Esta é uma preocupação natural de alguém que envelhece, mas não é peculiar só aos velhos. Talvez seja característico da nossa época que as perguntas tenham uma maior subjetividade, tons mais pessoais. Os aristotélicos fizeram a pergunta ‘O que é o homem?’, e isto levou-os a todas as ciências humanas, mas hoje estamos perguntando de modo mais pessoal: ‘Quem sou eu?’ Esta mudança de ênfase faz parte da tendência chamada existencial do nosso tempo, e não acho que seja bom ou ruim, embora provavelmente seja bom, porque nós temos o direito de saber as respostas das duas questões ‘o que é o homem’ e ‘quem sou eu’. Minha única crítica ao movimento existencial é que ele tende a ser muito intelectual e filosófico, e atribui a todo ser humano o mesmo vácuo existencial. Os intelectuais e a elite atribuiriam a todos os homens sua própria ansiedade, tédio e alienação. Só não acho que seja verdade que todo homem passe por essa ansiedade, angústia e alienação, no seu esforço de descobrir um significado. Contudo, uma vez que o nível educacional aumenta, mais pessoas leem livros e ponderam sobre as questões que encontram e imagino que seja natural ter cada vez mais este tipo de preocupação.

Fonte: Evans, R. I. 1979 [1976]. Construtores da psicologia. SP, Summus & Edusp.

27 janeiro 2024

Um rio australiano


Albert Henry Fullwood (1863-1930). An Australian river. 1896.

Fonte da foto: Wikipedia.

19 janeiro 2024

Português e crioulo frente a frente

Dulce Almada Duarte

No passado o português era uma língua imposta. Hoje em dia ela deixou de sê-lo, de um certo ponto de vista. Esta liberdade, que nós temos hoje, de falar o crioulo, é bastante positivo. Antigamente, uma pessoa com um determinado grau de instrução sentia vergonha de falar crioulo em público. Em certas famílias era proibido falar crioulo em casa. Na minha, por exemplo. Eu sempre me exprimi em português em casa, embora às escondidas falasse sempre o crioulo. Atualmente, utilizo muito mais o crioulo do que o português e parece-me que isso é verdade para a maioria esmagadora dos cabo-verdianos.

O fato de ser uma língua imposta fazia que o português, quando utilizado por pessoas de um determinado nível de instrução, o fosse muito corretamente. Isso não mais acontece.

Hoje em dia encontram-se alunos do 5º ano de ensino secundário que se expressam muito mal em português e ainda o escrevem pior.

A nossa preocupação é justamente conciliar o fato de termos a liberdade de falar a língua materna com a necessidade de utilizarmos corretamente a língua que ainda é considerada a língua oficial.

Fonte: Cunha, C. 1981. Língua, nação, alienação. RJ, N Fronteira.

15 janeiro 2024

Jerusalém, Jerusalém… Ou Alto da Serafina

Ruy Belo

Que importa que morramos se a tarde é de sol
e o céu se abre às lágrimas
que sobre a cidade choras?
Esmagam-se lá longe contra a igreja as casas
aonde os homens nascem e aceitam
a grande humilhação da morte
onde as mulheres acenam tristemente panos sujos
de não dizerem adeus a nenhum barco
onde já ninguém sabe onde os anos começam
Pesadamente vão caindo os sinos
e tu a um e um desfolhas
os olhos sobre o tempo
O que trocamos são crostas de silêncio:
tivéssemos em teu reino o lugar
que esta folha de outono tem sobre o asfalto
e a espaços certa música na alma
Que importa que morramos se o passado está certo
se voltas para nós a mágoa que te molha a face
de virmos de tão longe tendo-te tão perto?

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1961.

13 janeiro 2024

Educação e transição democrática

Maria Umbelina Salgado

[E]mbora a chamada ‘educação geral’ – mais que o ensino profissionalizante – possa oferecer, em grande parte dos casos, melhores condições para a obtenção de um posto de trabalho, não se deve esquecer que o aprendizado técnico dentro da empresa submete-se estritamente aos interesses da reprodução do capital.

O operário que ascende a posições de nível médio via promoção não é estimulado a dominar as categorias que lhe permitam a compreensão global da organização do processo de trabalho, mas sim a identificar-se com os valores da pequena burguesia, afastando-se dos operários e desenvolvendo sua lealdade à organização. Esse processo torna-o dependente daquela empresa, diminuindo consideravelmente seu poder de barganha, na medida em que a não apropriação de categorias analíticas mais gerais restringe sua capacidade de adaptar-se a situações diversas daquela que aprendeu na prática.

Fonte: Salgado, M. U. 1986. Educação e transição democrática política para o ensino de 2º grau. In: Mello, G. N. et al. Educação e transição democrática, 3ª ed. SP, Cortez & Autores Associados.

12 janeiro 2024

17 anos e três meses no ar

F. Ponce de León

Nesta sexta-feira, 12/1, o Poesia Contra a Guerra completa 17 anos e três meses no ar.

Desde o balanço anterior – ‘17 anos e dois meses no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: A. Irwing Hallowell, Alfred S. Romer, Anouar Abdel-Malek, Harry J. Jerison, Maria Firmina dos Reis, Michelangelo Buonarroti, Paul Shepard, Rafael Rigolon, Sinéad O’Connor e Thomas S. Parsons. Além de material de autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes artistas: Charles Conder, Leandro Joaquim e Simone Martini.

10 janeiro 2024

De folga, na praia


Charles [Edward] Conder (1868-1909). A holiday at Mentone. 1888.

Fonte da foto: Wikipedia.

08 janeiro 2024

Caro m’è ’l sonno

Michelangelo Buonarroti

Caro m’è ’l sonno, e più l’esser di sasso,
mentre che ’l danno e la vergogna dura;
non veder, non sentir m’è gran ventura;
però non mi destar, deh, parla basso.

Fonte: Carpeaux, OM. 2011. História da literatura ocidental, vol. 1, 4ª ed. Brasília, Senado Federal.

07 janeiro 2024

Ecologia, comportamento, cultura

A. Irwing Hallowell

Mesmo que as capacidades para o uso de instrumentos já existissem entre os primatas arborícolas, como poderiam estas criaturas ter descoberto, explorado e desenvolvidos as propriedades da pedra, pelo emprego de técnicas de transformação, nas indústrias líticas de uma determinada tradição de [fratura] de instrumentos, se passavam relativamente pouco tempo no chão? Como poderia o fogo ter-se tornado importante na vida de primatas confinados a um nicho arbóreo? Foi a vida no chão que ofereceu o ensejo para a descoberta de novas fontes de alimento e possibilitou a passagem para uma dieta carnívora e de alimentos cozidos que, por fim, levaram, possivelmente através de uma etapa intermediária de necrofagia, à caça de mamíferos de grande porte. Se considerarmos a postura erecta e a locomoção bípede como características genéricas decisivas na diferenciação estrutural e comportamental homínida, veremos que a adaptação terrestre que as acompanhou produziu mudanças radicais nas relações ecológicas dos homínidas que se encontram em processo de evolução, principalmente quando comparados com os seus antepassados primatas e com os macacos e antropoides adaptados às árvores. Funções motoras já existentes, como a preensão, foram liberadas para outros usos, e as funções discriminativas da visão binocular estereoscópica facilitaram novos desenvolvimentos das habilidades tácteis, da destreza manual e, provavelmente, das imagens visuais, que finalmente se tornaram cada vez mais mediadas pelo nível mais complexo da organização cortical, tornado possível graças à expansão do cérebro. Um novo nicho ecológico proporcionou a oportunidade não só para o exercício das potencialidades de comportamento já existentes num outro nível de organização, como também para o desenvolvimento de novos padrões comportamentais. De um ponto de vista ecológico, o habitat terrestre foi o contexto necessário para a etapa protocultural da adaptação homínida que lançou os fundamentos comportamentais para a subsequente adaptação cultural.

Fonte: Hallowell, A. I. 1978. As bases protoculturais da adaptação human. In: Mussolini, G., org. Evolução, raça e cultura, 3ª ed. SP, Nacional & Edusp. Excerto de texto originalmente publicado em 1962.

05 janeiro 2024

Já temos antibióticos e antivirais, carecemos agora de uma vacina contra o sionismo

Felipe A. P. L. Costa

RESUMO. – Este artigo apresenta as estatísticas mais recentes envolvendo as mortes provocadas em terras brasileiras por quatro agentes etiológicos (uma bactéria e três vírus). Apresenta ainda, para fins comparativos, o número de palestinos que já foram massacrados na Faixa de Gaza após 90 dias de invasão pelas forças de Israel.

*

1. APESAR DE MENOS LETAL QUE A AIDS, A COVID-19 MATOU MAIS.

No que segue, apresento um brevíssimo resumo das estatísticas (número de mortes) mais recentes envolvendo quatro doenças infecciosas (febre maculosa, dengue, Aids e Covid-19). Em 2023, duas delas levaram à morte mais de 20 mil brasileiros. Eis os números (entre parêntesis, o agente etiológico):

(A) – Febre maculosa (doença causada por bactérias do gênero Rickettsia). Nos últimos 10 anos (2012-2022), foram registrados em todo o país 2.157 casos e 753 mortes. Resultando assim em médias anuais de 216 casos e 75 óbitos (aqui). Em 2023, os números (casos e mortes) devem ter ficado bem abaixo das médias (aqui).

(B) – Dengue (vírus DENV). As estatísticas registradas ao longo de 2023 apontam para um novo recorde histórico: 1.079 mortes (1/1-27/12) (aqui). Com a elevação da temperatura média anual, a proliferação do vetor (mosquitos do gênero Stegomyia [vulgo Aedes]) é facilitada. Decorrem daí ao menos dois problemas: (i) A área de distribuição do inseto tende a se expandir; e (ii) O tamanho das populações locais tende a oscilar em patamares cada vez mais altos. O leitor interessado no assunto poderá encontrar mais detalhes aqui (nome do mosquito), aqui (ecologia térmica) e aqui (aquecimento global).

(C) – Aids (vírus HIV). As estatísticas anuais seguem a cair, ainda que lentamente. Entre 2012 e 2022, por exemplo, o número de mortes caiu de 12.019 (2012) para 10.994 (2022) (aqui). Nesse ritmo, mais de 10 mil mortes devem ter ocorrido em 2023.

(D) – Covid-19 (vírus SARS-CoV-2). Olhando apenas para as estatísticas de 2023 (1/1-30/12), foram registrados em todo o país 1.853.763 casos e 14.689 mortes. (Para detalhes sobre a série histórica, ver aqui.) Foram, em média, 5.107 casos e 40 óbitos por dia (ou 35.748 casos e 283 óbitos por semana).

2. A OMISSA IMPRENSA BRASILEIRA.

Faz tempo que a pandemia de Covid-19 desapareceu das páginas daquilo que ainda poderíamos rotular de imprensa brasileira. De vez em quando pipocam algumas notas ou matérias sensacionalistas. Como as que apareceram falando sobre a febre maculosa, no primeiro semestre de 2023 (ver aqui).

É fato que a Covid-19 já não é mais a principal fonte de mortalidade entre os brasileiros. Todavia, os números ainda estão bem acima do esperado ou do que seria aceitável. Em 2023, por exemplo, para cada morte em decorrência da dengue (doença a respeito da qual a imprensa faz algum barulho nos meses de verão), ocorreram quase 14 mortes por Covid-19.

Em termos comparativos, os números da Covid-19 só não são piores que as tenebrosas estatísticas que estão a ser produzidas pela invasão (iniciada – alegadamente – após os ataques de 7/10/2023) da Faixa de Gaza. Eis algumas estatísticas recentes: ao menos 22.185 palestinos já foram massacrados pelas forças invasoras de Israel (aqui). 43% (9.600) dos mortos eram crianças e 30% (6.700), mulheres (aqui). Outros sete mil palestinos estão desaparecidos, mas não entraram nas estatísticas de mortes. O total de feridos chega a quase 58 mil (aqui).

3. CODA.

Como eu tive chance de escrever em artigo anterior, o sionismo mata. Trata-se, a rigor, de uma poderosa força assassina. Talvez a maior a operar abertamente hoje no planeta.

Já temos antibióticos e antivirais contra uma série de doenças graves. Vacinas contra a Covid-19, por exemplo, foram desenvolvidas em tempo recorde. Carecemos agora de uma vacina contra o sionismo.

* * *

02 janeiro 2024

Siderações

Cruz e Sousa

Para as Estrelas de cristais gelados
As ânsias e os desejos vão subindo,
Galgando azuis e siderais noivados
De nuvens brancas a amplidão vestindo...

Num cortejo de cânticos alados
Os arcanjos, as cítaras ferindo,
Passam, das vestes nos troféus prateados,
As asas de ouro finamente abrindo...

Dos etéreos turíbulos de neve
Claro incenso aromal, límpido e leve,
Ondas nevoentas de Visões levanta...

E as ânsias e os desejos infinitos
Vão com os arcanjos formulando ritos
Da Eternidade que nos Astros canta...

Fonte: Ricieri, F., org. 2008. Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira. SP, Ibep. Poema publicado em livro em 1893.

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