A história da humanidade se confunde com a história das guerras. Deveríamos lutar para que se confundisse apenas com a história da literatura.
30 outubro 2009
Maré da vida
Lyall Watson
[Epílogo] Tenho consciência, ao avizinhar-me do fim, de não haver conseguido, às vezes, encontrar as palavras certas para expressar alguma coisa que poderia, de um modo ou de outro, revelar-se inefável. Com o seu peso, as palavras tendem a cair como [aves de rapina] sobre idéias delicadas, levando-as consigo antes que elas tenham a oportunidade de atingir a fruição. Vi-me obrigado, por exemplo, em várias conjunturas críticas, a retomar a metáfora da maré.
Julian Jaynes não veria nisso razão para pedir escusas. “Compreender uma coisa é chegar a uma metáfora que a explique substituindo-a por algo que nos é mais familiar. E o sentido de familiaridade é o sentido da compreensão.” Acredita ele que no uso imaginativo da metáfora está o próprio fundamento da linguagem, e que esse emprego da linguagem fez de nós seres conscientes. Como [biólogo], devo inverter a cadeia causal e dizer que nunca teríamos sido capazes de fazer uma boa metáfora se já não fôssemos manifestamente conscientes. Entretanto, chegamos, no fim, a uma conclusão semelhante, que é esta: “a mente é um análogo do que se chama o mundo real.” [...] Fonte: Watson, L. 1980. Maré da vida. RJ, Difel.
Deixai entrar a Morte, a Iluminada, A que vem para mim, pra me levar. Abri todas as portas par em par Como asas a bater em revoada.
Quem sou eu neste mundo?A deserdada, A que prendeu nas mãos todo o luar, A vida inteira, o sonho, a terra, o mar E que, ao abri-las, não encontrou nada!
Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste? Entre agonias e em dores tamanhas Pra que foi, dize lá, que me trouxeste
Dentro de ti?... Pra que eu tivesse sido Somente o fruto amargo das entranhas Dum lírio que em má hora foi nascido!... Fonte: Espanca, F. 1996. Poemas de Florbela Espanca. SP, Martins Fontes. Poema publicado em livro em 1931.
Com freqüência, quando há uma idéia, ela tem vários pontos de origem. Ela não se desenvolve necessariamente em forma linear daquilo que se havia feito anteriormente. Eu estava trabalhando para Asch, em Princeton, Nova Jersey, em 1959 e 1960. Estava pensando no seu experimento sobre pressão do grupo. Uma das críticas que haviam sido feitas aos seus experimentos é que eles tinham uma falha quanto à consistência, porque, afinal, um experimento em que as pessoas fazem julgamento a respeito de linhas tem realmente um conteúdo manifestamente trivial. Assim, a pergunta que me fiz foi: Como isso pode ser transformado num experimento mais significativo do ponto de vista humano? E pareceu-me que, se ao invés de um grupo exercer pressão sobre julgamento a respeito de linhas, ele pudesse levar a alguma coisa mais significativa vinda da pessoa, então isto traduziria mais um passo em direção a uma maior significância dada ao comportamento induzido pelo grupo. Poderia um grupo, eu me perguntava, induzir uma pessoa a agir com rigor contra outra pessoa? E, uma vez que a minha inclinação natural é chegar até a base das coisas, vislumbrei uma situação muito semelhante à do experimento de Asch, no qual haveria um grupo de aliados e um sujeito ingênuo e, ao invés de confrontar as linhas sobre uma cartela, cada um deles teria um gerador de choque. Em outras palavras, transformei o experimento de Asch em outro, no qual o grupo administraria choques de intensidade cada vez maior a uma pessoa, e a pergunta seria: até que ponto o indivíduo continuaria acompanhando o grupo? Esse não é, todavia, o experimento sobre obediência, mas é um passo naquela direção. Depois, eu queria saber como é que seria organizado realmente. O que se constituiria em controle experimental nessa situação? No experimento de Asch há um controle – a proporção de julgamentos corretos que a pessoa faz na ausência da pressão do grupo. Assim, eu disse a mim mesmo: Bem, creio que eu teria de estudar uma pessoa nessa situação, na ausência de qualquer pressão do grupo. Mas então, como se induziria a pessoa a aumentar os choques? Quero dizer, qual seria a força que induziria alguém a aumentar os choques? E então ocorreu-me o pensamento de que o experimentador teria que dizer à pessoa que aplicasse choques cada vez mais fortes. Exatamente até onde uma pessoa vai, quando um experimentador a instrui a dar choques cada vez mais fortes? Imediatamente, soube que aquele era o problema que eu deveria investigar. Foi um momento muito importante para mim, porque compreendi que embora fosse uma questão muito simples, ela admitiria a medição, a investigação precisa. Poder-se-ia ver as variáveis a serem estudadas, sendo que a medida dependente seria até onde a pessoa chegaria na administração dos choques. Fonte: Evans, R. I. 1979 [1976]. Construtores da psicologia. SP, Summus & Edusp.
Em todas as esquinas da cidade nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga um cartaz denuncia o nosso amor
Em letras enormes do tamanho do medo da solidão da angústia um cartaz denuncia que um homem e uma mulher se encontraram num bar de hotel numa tarde de chuva entre zunidos de conversa e inventaram o amor com carácter de urgência deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana
Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura e souberam entender-se sem palavras inúteis Apenas o silêncio A descoberta A estranheza de um sorriso natural e inesperado
Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta de um amor subitamente imperativo
Um homem uma mulher um cartaz de denúncia colado em todas as esquinas da cidade A rádio já falou A TV anuncia iminente a captura A policia de costumes avisada procura os dois amantes nos becos e nas avenidas Onde houver uma flor rubra e essencial é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde Antes que o exemplo frutifique Antes que a invenção do amor se processe em cadeia
Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos Chamem as tropas aquarteladas na província Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva Todos Decrete-se a lei marcial com todas as consequências O perigo justifica-o Um homem e uma mulher conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los antes que seja demasiado tarde e a memória da infância nos jardins escondidos acorde a tolerância no coração das pessoas
Fechem as escolas Sobretudo protejam as crianças da contaminação Uma agência comunica que algures ao sul do rio um menino pediu uma rosa vermelha e chorou nervosamente porque lha recusaram Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão Aplicado no entanto Respeitador da disciplina Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado e submetido a um tratamento especial de recuperação Mas é possível que haja outros É absolutamente vital que o diagnóstico se faça no período primário da doença E também que se evite o contágio com o homem e a mulher de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade
Está em jogo o destino da civilização que construímos o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos a verdade incontroversa das declarações políticas
Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários precisamos da sua experiência onde quer que se escondam ao temor do castigo Que todos estejam a postos Vigilância é a palavra de ordem Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem Telefonem à policia ao comissariado ao Governo Civil não precisam de dar o nome e a morada e garante-se que nenhuma perseguição será movida nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio comissões de vigilância Está em jogo a cidade o país a civilização do ocidente Esse homem e essa mulher têm de ser presos mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas
Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais a inviolabilidade do domicílio o habeas corpus o sigilo da correspondência Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente espreitam a rua pelo intervalo das persianas beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade nocturna É preciso encontrá-los É indispensável descobri-los Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater
É possível que cantem Mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz Lhe lembravam a infância Campos verdes floridos Água simples correndo A brisa nas montanhas Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior Mas caminhou cantando para o muro da execução foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele um misterioso halo de uma felicidade incorrupta
Impõe-se sistematizar as buscas Não vale a pena procurá-los nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boites com orquestra privativa Não estarão nunca aí Procurem-nos nas ruas suburbanas onde nada acontece A identificação é fácil Onde estiverem estará também pousado sobre a porta um pássaro desconhecido e admirável ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa Será então aí Engatilhem as armas invadam a casa disparem à queima roupa Um tiro no coração de cada um Vê-los-ão possivelmente dissolver-se no ar Mas estará completo o esconjuro e podereis voltar alegremente para junto dos filhos da mulher
Mas ai de vós se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr o pranto Quer dizer que fostes contagiados Que estais também perdidos para nós É preciso nesse caso ter coragem para desfechar na fronte o tiro indispensável Não há outra saída A cidade o exige
Se um homem de repente interromper as pesquisas e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão já sabeis o que tendes a fazer Matai-o Amigo irmão que seja matai-o Mesmo que tenha comido à vossa mesa crescido a vosso lado matai-o Talvez que ao enquadrá-los na mira da espingarda os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea e deslizem depois numa tristeza liquida até o fim da noite Evitai o apelo a prece derradeira um só golpe mortal misericordioso basta para impor o silêncio secreto e inviolável
Procurem a mulher o homem que num bar de hotel se encontraram numa tarde de chuva Se tanto for preciso estabeleçam barricadas senhas salvo-condutos horas de recolher censura prévia à Imprensa tribunais de excepção Para bem da cidade do país da cultura é preciso encontrar o casal fugitivo que inventou o amor com carácter de urgência
Os jornais da manhã publicam a notícia de que os viram passar de mãos dadas sorrindo numa rua serena debruada de acácias Um velho sem família a testemunha diz ter sentido de súbito uma estranha paz interior uma voz desprendendo um cheiro a primavera o doce bafo quente da adolescência longínqua
No inquérito oficial atónito afirmou que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte e caminhavam envoltos numa cortina de música com gestos naturais alheios Crê-se que a situação vai atingir o climax e a polícia poderá cumprir o seu dever Um homem uma mulher um cartaz de denúncia A voz do locutor definitiva nítida Manchetes cor de sangue no rosto dos jornais
É PRECISO ENCONTRÁ-LOS ANTES QUE SEJA TARDE
Já não basta o silêncio a espera conivente o medo inexplicado a vida igual a sempre conversas de negócios esperanças de emprego contrabando de drogas aluguer de automóveis Já não basta ficar frente ao copo vazio no café povoado ou marinheiro em terra afogar a distância no corpo sem mistério da prostituta anónima Algures no labirinto da cidade um homem e uma mulher amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas constroem com urgência um universo do amor E é preciso encontrá-los E é preciso encontrá-los
Importa perguntar em que rua se escondem em que lugar oculto permanecem resistem sonham meses futuros continentes à espera Em que sombra se apagam em que suave e cúmplice abrigo fraternal deixam correr o tempo de sentidos cerrados ao estrépito das armas Que mãos desconhecidas apertam as suas no silêncio pressago da cidade inimiga
Onde quer que desfraldem o cântico sereno rasgam densos limites entre o dia e a noite E é preciso ir mais longe destruir para sempre o pecado da infância erguer muros de prisão em círculos fechados impor a violência a tirania o ódio
Entanto das esquinas escorre em letras enormes a denúncia total do homem da mulher que no bar em penumbra numa tarde de chuva inventaram o amor com carácter de urgência
COMUNICADO GOVERNAMENTAL À IMPRENSA
Por diversas razões sabe-se que não deixaram a cidade o nosso sistema policial é óptimo estão vigiadas todas as saídas encerramos o aeroporto patrulhamos os cais há inspectores disfarçados em todas as gares de caminhos de ferro
É na cidade que é preciso procurá-los incansavelmente sem desfalecimentos Uma tarefa para um milhão de habitantes todos são necessários todos são necessários Não sem preocupem com os gastos a Assembléia votou um crédito especial e o ministro das Finanças tem já prontas as bases de um novo imposto de Salvação Pública
Depois das seis da tarde é proibido circular Avisa-se a população de que as forças da ordem atirarão sem prevenir sobre quem quer que seja depois daquela hora Esta madrugada por exemplo uma patrulha da Guarda matou no Cais da Areia um marinheiro grego que regressava ao seu navio
Quando chegaram junto dele acenou aos soldados disse qualquer coisa em voz baixa e fechou os olhos e morreu Tinha trinta anos e uma família à espera numa aldeia do Peloponeso O cônsul tomou conhecimento da ocorrência e aceitou as desculpas do Governo pelo engano cometido Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualquer Todos compreenderam que não era caso para um protesto diplomático e depois o homem e a mulher que a policia procura representam um perigo para nós e para a Grécia para todos os países do hemisfério ocidental Valem bem o sacrifício de um marinheiro anónimo que regressava ao seu navio depois da hora estabelecida sujo insignificante e porventura bêbado
SEGUE-SE UM PROGRAMA DE MÚSICA DE DANÇA
Divirtam-se atordoem-se mas não esqueçam o homem e a mulher escondidos em qualquer parte da cidade Repete-se é indispensável encontrá-los Um grupo de cidadãos de relevo ofereceu uma importante recompensa destinada a quem prestar informações que levem à captura do casal fugitivo
Apela-se para o civismo de todos os habitantes A questão está posta É preciso resolvê-la para que a vida reentre na normalidade habitual
Investigamos nos arquivos Nada consta Era um homem como qualquer outro com um emprego de trinta e oito horas semanais cinema aos sábados à noite domingos sem programa e gosto pelos livros de ficção cientifica Os vizinhos nunca notaram nada de especial vinha cedo para casa não tinha televisão, deitava-se sobre a cama logo após o jantar e adormecia sem esforço Não voltou ao emprego o quarto está fechado deixou em meio as “Crónicas marcianas” perdeu-se precipitadamente no labirinto da cidade à saída do hotel numa tarde de chuva
O pouco que se sabe da mulher autoriza-nos a crer que se trata de uma rapariga até aqui vulgar Nenhum sinal característico nenhum hábito digno de nota Gostava de gatos dizem Mas mesmo isso não é certo Trabalhava numa fábrica de têxteis como secretária da gerência era bem paga e tinha semana inglesa passava as férias na Costa da Caparica.
Ninguém lhe conhecia uma aventura Em quatro anos de emprego só faltou uma vez quando o pai sofreu um colapso cardíaco Não pedia empréstimos na Caixa Usava saia e blusa e um impermeável vermelho no dia em que desapareceu Esperam por ela em casa: duas cartas de amigas o último número de uma revista de modas a boneca espanhola que lhe deram aos sete anos
Ficou provado que não se conheciam Encontraram-se ocasionalmente num bar de hotel numa tarde de chuva sorriram inventaram o amor com carácter de urgência mergulharam cantando no coração da cidade
Importa descobri-los onde quer que se escondam antes que seja demasiado tarde e o amor como um rio inunde as alamedas praças becos calçadas quebrando nas esquinas Já não podem escapar Foi tudo calculado com rigores matemáticos Estabeleceu-se o cerco A policia e o exército estão a postos Prevê-se para breve a captura do casal fugitivo (Mas um grito de esperança inconsequente vem do fundo da noite envolver a cidade au bout du chagrin une fenêtre ouverte une fenêtre eclairée) Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1961.
A ciência tem as suas origens nas necessidades de conhecer e compreender (ou explicar), isto é, nas necessidades cognitivas [...]. Noutro trabalho [...], resumi as várias provas que me levam a crer serem essas necessidades do tipo instintivo, constituindo, portanto, características que definem o homem (embora não só o homem) e a espécie. Nesse mesmo artigo, tentei fazer a diferença entre as atividades cognitivas investigadas pela ansiedade e as que são levadas a cabo sem medo ou contra o medo e que podem assim considerar-se como ‘saudáveis’. Quer dizer, os impulsos científicos são condicionados, quer pelo medo, quer pela coragem, e adquirem características diferentes em cada caso.
A curiosidade, a exploração, a manipulação, quando provocadas pelo medo ou pela ansiedade, aparecem como tendo por principal objetivo abafar a ansiedade. O que do ponto de vista de comportamento surge como interesse pela natureza do objeto que se estuda ou do domínio que se explora, pode ser sobretudo um esforço do organismo para ele próprio se acalmar e para fazer baixar a tensão, vigilância e apreensão. O objeto desconhecido é nesse caso acima de tudo um gerador de ansiedade e o ato de o examinar e experimentar é, em primeiro lugar e principalmente, uma esterilização do objeto, transformando-o em algo de que não há que ter medo. Alguns organismos, uma vez sossegados, podem então passar, sem mais, a examinar o objeto por ele próprio, com uma curiosidade pela realidade que existe independente, por si só. Outros organismos, porém, podem perder todo o interesse no objeto uma vez este esterilizado, tornado familiar [...], e deixando de provocar o medo. Isto é, a familiarização pode provocar desatenção e aborrecimento. [...] Fonte: Deus, J. D., org. 1979. A crítica da ciência, 2ª edição. RJ, Zahar. Texto originalmente publicado em 1966.
Guiava à casa do morro, em voltas, o caminho, Até lhe ir esbarrar com as orlas do terreiro; Dava-lhe o doce ingá, rachado ao sol, o cheiro, E um rumor de maré o cafezal vizinho.
Quanta vez o subi, buscando a um guaxe o ninho, Ou, saltando, o desci com o regato ligeiro, Para voar num balanço, embaixo, o dia inteiro, E ver girar, zonzando, as asas de um moinho!
De setembro até março, uma colcha de flores Tapetava-o. Reluz-lhe em poças de água o céu; Das folhas sobre o saibro os orvalhos escorrem...
Mas morreram na casa, em cima, os moradores, Morreu, caindo, a casa, o moinho morreu, O caminho morreu... Até os caminhos morrem! Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura.
Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que eu nunca tive
E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d’água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar – Lá sou amigo do rei – Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada. Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1930.
Nesta segunda-feira, 12/10, o Poesia contra a guerra completa três anos no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 76.673 visitas haviam sido registradas ao longo desse período.
Nos últimos 12 meses, foram ao ar textos de 122 novos autores, além de outros que já haviam sido publicados antes – ver Aniversário de dois anos. Eis a lista com o nome dos novos autores: A. G. Cairns-Smith, Adam Mickiewicz, Adão Ventura, Albert Camus, Albert Jacquard, Alfonso Reyes, Ana Cristina Cesar, Alexander I. Oparin, Ann Finkheiner, Antonio Machado, António Manuel Couto Viana e Arthur Koestler;
Bastos Tigre, Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, Bertrand Russell e Boris Pasternak;
C. H. Waddington, Carl Djerassi, Carlito Azevedo, Carlos Saldanha, Cartola, Chacal, Charles Darwin, Charles Dickens, Chuang-Tzu, Claude Lévi-Strauss e Cristovam Pavia;
Deborah Gordon e Derek de Solla Price;
E. M. de Melo e Castro, Edgar Allan Poe, Edgar Morin, Edmond Jabès, Edward O. Wilson, Eduardo Milán, Elias José, Erich Fromm, Ernest Becker, Ernest Hemingway, Esopo e Eugene Field;
Faria Neves Sobrinho, Fernando Guedes, Fernando Guimarães, Francisco Carvalho, Francisco Rodrigues Lobo e Freeman Dyson;
Haroldo de Campos, Hedy West, Henri Bergson, Henri Zerner, Henrik Stangerup, Henry Walter Bates, Hilda Hilst e Homero;
Isabel Câmara;
Jacques Monod, Jean Ladrière, João Roiz de Castelo-Branco, Joel Silveira, John B. Calhoun, John Fogerty, John Ziman, Jonathan Swift, José Gomes Ferreira, José Chagas e Jules Supervielle;
Keith Thomas;
Lélia Coelho Frota, Leonel Rugama, Lima Barreto, Lu Menezes, Luís Veiga Leitão e Luiz Olavo Fontes;
Manoel Caboclo, Manuel da Fonseca, Maria Tereza de Queiroz Piacentini, Marq de Villiers, Michael Pollan, Miguel Torga e Múcio Teixeira;
Néstor Perlongher e Norman Gimbel;
Odylo Costa, filho, Olive A. Wadsworth, Orlando González-Esteva e Oswald de Andrade;
Paul Davies, Paul Tillich, Paul Verlaine, Paulo Bomfim, Paulo Leminski, Pedro Homem de Mello e Percy Bysshe Shelley;
Rachel de Queiroz, Rafael Alberti, René Dumont, Richard Conniff, Robert Frost, Robert K. Merton, Roberto Drummond, Roger Penrose, Rubén Darío e Ruy Cinatti;
Sebastião Uchoa Leite, Sérgio Capparelli, Sidónio Muralha e Sousândrade;
Thomas Malthus, Thomas More, Tom Cutler e Tomaz Kim;
Vasko Popa;
William James;
Zécarlos Ribeiro e Zila Mamede.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes 40 pintores: Anders Zorn, Arthur Hughes; Bartolomé Esteban Murillo; Caspar David Friedrich, Carel Fabritius, Constantinos Volanakis; Francesco Hayez, Francisco de Zurbarán, Frank Duveneck, Frederick Sandys; George Caleb Bingham, George Frederic Watts, Georgios Jakobides, Gerritt Dou, Giorgio Morandi, Giorgione, Giovanni Bellini, Grant Wood, Gustave Caillebotte; Hans Holbein, o Jovem, Hans Meming; I. C. Dahl; Jean-Baptiste Corot, Jean-Honoré Fragonard, Johan Barthold Jongkind, John Twachtman, Juan Sánchez Cotán, Jules Joseph Lefebvre; Lawrence Alma-Tadema; Nicolaes Berchem, Nicolaes Maes, Nikephoros Lytra, Nikolaos Gysis; Odilon Redon; Pieter de Hooch; Roberto Ferruzzi; William Bouguereau, William Merritt Chase; Théodore Géricault e Thomas Cole.
1. A hora das explorações nas grutas está para se encerrar. Ossadas esparramam-se por todos os cantos da pequena e modesta casa, no chão, nas mesas, no anexo do lado de fora. Algumas estão embrulhadas em papel de jornal, outras dentro de caixas, mas muitas, apenas com pequenas etiquetas coladas, ainda dependem de arrumação. Um punhado amontoa-se num canto do jardim à espera de ser catalogado. São ossadas que Dr. Lund sente dificuldade em classificar e mesmo desconfia que já sejam do período histórico. Dr. Lund está cansado, mas sente orgulho do que realizou. Ao longo de quase dez anos, sozinho, com a ajuda de apenas alguns negros relaxados e de Brandt, quando não estava ocupado com seus pincéis e cavaletes, conseguiu realizar um trabalho que exigiria pelo menos dez dos mais lúcidos cientistas. Para tanto, viajou milhares de quilômetros em lombo de cavalo ou burro, pernoitou deitado sobre peles de boi e abrigado por cobertores esburacados em incômodas reentrâncias das grutas, enquanto os fachos eram dispostos ao longo do trajeto de modo a lhe permitir, com rapidez, durante a noite, encontrar o caminho de volta para fora, se as dores no peito, por acaso, se anunciassem.
Sacrificou qualquer forma de conforto. Meses se passavam entre duas refeições que se pudessem chamar de dignas; apenas debaixo de quedas d’água, ou em sua casa de Lagoa Santa, tinha oportunidade de lavar-se desse pó que por semanas inteiras o impregnava. Teve acessos de febre, a sede martirizava-o quando se perdia pelos campos cerrados e, por vezes, era tão forte o sol que lhe nasciam chagas na testa. Plantas arranhavam-lhe a pele, insetos mordiam-no, terríveis dores de barriga obrigavam-no a recolher-se à cama por semanas a fio. Sim, Dr. Lund sente orgulho por ter sabido resistir a esses dez anos de intenso labor. Está ansioso por retornar em breve à Europa, à companhia de pessoa civilizadas, aos paralelepípedos das ruas, às calçadas, restaurantes, bibliotecas, sorrisos amáveis, olhares alertas, jornais sérios, escolares vivos, gente de comércio. E a Copenhague, onde haverá de se reencontrar com H. C. Oersted e Schouw e Forchhammer e Reinhardt, e onde poderá passar agradáveis horas noturnas em companhia da família. E a Paris, onde trocará idéias com seus colegas franceses e participará dos debates em torno do testamento científico de Cuvier. Mas é no Sul da França que mora seu coração. Na Provença. É ali que pensa em morar a maior parte do ano, envolto num perfume de lavanda e tomilho, e freqüentes incursões até Roma, Paris e Viena. Mais meio ano e será ainda uma vez europeu, tal como se sente de corpo e alma. [...] Fonte: Stangerup, H. 1983. Lagoa Santa: vidas e ossadas. RJ, Nórdica.
Pequena mosca Em tua dança de verão minha descuidada mão deu um safanão.
Não sou eu Também uma mosca? Ou não serás tu Um homem como eu?
Pois fico a dançar e beber e cantar Até que uma cega mão vem me espantar.
Se pensamento é vida E respiração e vigor A ausência De pensamento é dor,
Então sou Uma mosca feliz Se eu vivo, Ou se me vou. Fonte: edição No. 67 (março de 1997) da revista Ciência Hoje das Crianças. Poema publicado em livro em 1794.
3. [...] Que é consciência? Bem, não sei como defini-la. Acho que esse não é o momento de tentar definir consciência, uma vez que não sabemos o que ela seja. Creio que seja um conceito fisicamente acessível; no entanto, defini-la seria provavelmente definir a coisa errada. No entanto, vou defini-la, em certa medida. Acho que existem pelo menos dois diferentes aspectos da consciência. Por um lado, existem manifestações passivas de consciência, que implicam receptividade [awareness]. Uso essa categoria para incluir coisas como percepção de cor, de harmônicos, o uso da memória, e assim por diante. De outro modo, existem suas manifestações ativas, que implicam conceitos como livre-arbítrio e realização de ações sob nosso livre-arbítrio. O uso desses termos reflete diferentes aspectos de nossa consciência.
Vou concentrar-me aqui principalmente em outra coisa que envolve a consciência de maneira essencial. É diferente tanto do aspecto passivo quanto do aspecto ativo da consciência, e talvez seja algo intermediário. Refiro-me ao uso do termo entendimento, ou talvez intuição [insight], que muitas vezes é uma palavra melhor. Também não vou definir esses termos – não sei o que querem dizer. Existem outras duas palavras que não entendo – receptividade e inteligência. Bem, por que estou falando sobre coisas que não sei o que significam realmente? Provavelmente porque sou um matemático e os matemáticos não se preocupam muito com esse tipo de coisa. Não necessitam de definições precisas das coisas de que estão falando, contanto que possam falar algo acerca das conexões entre elas. O primeiro ponto-chave aqui é que me parece que a inteligência seja algo que requer entendimento. Usar o termo inteligência num contexto em que negamos que qualquer entendimento esteja presente me parece insensato. Da mesma forma, entendimento sem nenhuma receptividade também é um pouco absurdo. Esse é o segundo ponto-chave. Assim, isso significa que a inteligência requer a receptividade. Embora não esteja definindo nenhum desses termos, acho que é razoável insistir nessas relações entre eles. [...] Fonte: Penrose, R. 1998. O grande, o pequeno e a mente humana. SP, Editora da Unesp.
Se eu pegasse teus braços E os cortasse em quatro Terias tantos braços como se fosses quatro
Reis quatro Rainhas quatro leis
e quatro tinhas
Se eu pegasse tua boca E a cortasse em quatro Terias tantas bocas como se fosses quatro
Lagos e quatro luas quatro afagos e quatro ruas
Se eu pegasse teu coração E o cortasse em quatro Terias tantos corações como se quebrasses quatro
Bilhas E quatro Fundos Quatro quilhas E quatro Mundos. Fonte: Balbuena, M. R. 1991. Um poeta: Edmond Jabès. Revista USP 10: 109-19. Poema publicado em livro em 1959.
É de noite que os mortos voltam em sua barca de papel a roçar a porta do sono em que inermes escurecemos mais um dia – pulmão de chama contrariando a luz da manhã!
É de noite pela amurada que vêm se debruçar conosco e indulgem – apenas sorriem sem qualquer resguardo, sem ênfase – em ir e vir, em ter partido. Impressões de viagem? Alheias como a do perfil de uma dracena.
Remiram-nos maliciosos pensos de ternura se quedam em sua fosca primavera, atrás de embaciados acenos, pacientes, à nossa espera. Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial.