31 dezembro 2009

Harry Potter

J. K. Rowling

1.
Harry Potter era um menino bastante fora do comum em muitas coisas. Para começar, ele detestava as férias de verão mais do que qualquer outra época do ano. Depois, ele realmente queria fazer seus deveres de casa mas era obrigado a fazê-los escondido, na calada da noite. E, além de tudo, também era bruxo.

Era quase meia-noite e Harry estava deitado de bruços na cama, as cobertas puxadas por cima da cabeça como uma barraca, uma lanterna em uma das mãos e um grande livro encadernado em couro (História da magia de Batilda Bagshot), aberto e apoiado no travesseiro. Harry correu a ponta da caneta de pena de águia pela página, franzindo a testa, à procura de alguma coisa que o ajudasse a escrever sua redação, “A queima de bruxas no século XIV foi totalmente despropositada – discuta”.
[...]

Fonte: Rowling, J. K. 2000. Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban. RJ: Rocco.

29 dezembro 2009

Biologia do envelhecimento

Robert Arking

1.
Através dos séculos, os sábios mostraram que muitos dos mais profundos aspectos da cultura humana e que os esforços humanos algumas vezes trágicos contra o destino se originam do fato de que todos nós devemos morrer. A fina arte e as principais religiões derivam do contraste de nossas ambições e sonhos ilimitados e de nossa prisão temporal. Não está claro quando este conceito surgiu; de fato, é incerto se qualquer outra espécie compartilha conosco o reconhecimento da inevitabilidade da morte, embora alguns primatas possuam a sensação de consciência individual. Nossos ancestrais neolíticos, certamente, estavam quase conscientes do nosso destino comum e sentiam a mesma tensão, pois há quase 50 [mil] anos em Shanidar, atual [Iraque], eles enterravam os seus mortos em canteiros de flores silvestres.

Então, assim como hoje, senescência e morte provavelmente teriam sido aceitas pela maioria das pessoas como condições inevitáveis da existência. Os poucos dissidentes procuravam uma poção mágica ou a fonte da juventude, na tentativa de escapar do destino. A maioria simplesmente buscava uma explicação para justificar o destino e satisfazia-se com uma interpretação sobrenatural ou religiosa. Todos estavam cientes de que os humanos envelhecem. Nossa preferência pelo novo não é apenas devido ao esforço da indústria em nos vender o seu último item de consumo. Enquanto crescemos, cada um de nós absorve a verdade inegável de que coisas velhas tendem a se desgastar e quebrar: brinquedos velhos, carros velhos, máquinas velhas – e pessoas velhas.
[...]

Fonte: Arking, R. 2008. Biologia do envelhecimento, 2ª edição. Ribeirão Preto: Funpec.

27 dezembro 2009

Dia de outono

Rainer Maria Rilke

Senhor: é mais que tempo. O verão foi muito intenso.
Lança a tua sombra sobre os relógios de sol
e por sobre as pradarias desata os teus ventos.

Ordena às últimas frutas que fiquem maduras;
dá-lhes ainda mais uns dois dias de calor,
leva-as à completude e não deixes de pôr
no vinho pesado sua última doçura.

Quem não tem casa, não a irá mais construir.
Quem está sozinho, vai ficá-lo ainda mais.
Insone, há de ler, escrever cartas torrenciais
e correr as aléias num inquieto ir-e-vir
enquanto o vento carrega as folhas outonais.

Fonte: Rilke, R. M. 1993. Poemas. SP, Companhia das Letras. Poema publicado em livro em 1902.

25 dezembro 2009

Madona entre rosas


Stefan Lochner (1400?-1451). Madonna im Rosenhag. 1448.

Fonte da foto: Wikipedia.

24 dezembro 2009

La saeta

Antonio Machado

¿Quién me presta una escalera
para subir al madero,

para quitarle los clavos

a Jesús el Nazareno?
– Saeta popular


¡Oh, la saeta, el cantar
al Cristo de los gitanos,
siempre con sangre en las manos,
siempre por desenclavar!

¡Cantar del pueblo andaluz,
que todas las primaveras
anda pidiendo escaleras
para subir a la cruz!

¡Cantar de la tierra mía,
que echa flores
al Jesús de la agonía,
y es la fe de mis mayores!

¡Oh, no eres tú mi cantar!
¡No puedo cantar, ni quiero
a ese Jesús del madero,
sino al que anduvo en el mar!

Fonte: encarte que acompanha o álbum Traduzir-se (1981), de Fagner. Poema publicado em livro em 1917.

23 dezembro 2009

Ser cristão

Hans Küng

2.1
O termo “cristão” hoje traduz mais a idéia de sono (Schlafwort) do que a de impacto (
Schlagwort). Há tanta coisa cristã: igrejas, escolas, partidos políticos, grêmios culturais e naturalmente a Europa, o Ocidente, a Idade Média, sem falar no “rei cristianíssimo” – título conferido por Roma onde, aliás, se dá preferência a outros atributos (“romano”, “católico”, “eclesiástico”, “santo”), para equipará-los simplesmente com “cristão”. Como qualquer inflação, também esta inflação conceitual conduz à desvalorização.

Lembrança perigosa

Será que alguém ainda se recorda da origem suspeita da palavra “cristão”? Originou-se em Antioquia, consoante o testemunho dos Atos dos Apóstolos. Ao começar a circular na história universal, “cristão” era termo ofensivo mais do que honroso epíteto. Quem ainda se lembra disto?

Foi quando pelo ano 112 Gaio Plínio II, governador romano de Bitínia, província da Ásia Menor, consultou o imperador Adriano a respeito dos “cristãos”, acusados de numerosos crimes, mas que, segundo o inquérito feito, apenas se recusavam a prestar culto divino ao imperador, parecendo, no mais, gente pacata a entoar hinos a “Cristo, como a Deus” (= recitar o ato de profissão de fé?) e a respeitar os mandamentos (não furtar, não saquear, não cometer adultério, não mentir).

Pouco depois, um amigo de Plínio Cornélio Tácito, ao elaborar uma história da Roma imperial, relata, com bastante fidelidade, o incêndio de Roma (no ano 64), atribuído, pela voz do povo, ao imperador Nero e por este descarregado na conta dos “crestãos”: palavra que se derivaria de “Cristo”, nome de certo sentenciado pelo procurador Pôncio Pilatos, sob o imperador Tibério. “Essa superstição perniciosa”, diz Tácito, como de resto tudo que é nocivo e não presta, acabou por encontrar o caminho de Roma onde, após o incêndio, chegou a arrebanhar grande número de adeptos.
[...]

Fonte; Küng, H. 1976. Ser cristão. RJ, Imago.

21 dezembro 2009

Early morning rain

Gordon Lightfoot

In the early morning rain with a dollar in my hand
With an aching in my heart and my pockets full of sand
I’m a long way from home and I miss my loved ones so
In the early morning rain with no place to go

Out on runway number nine, big seven-o-seven set to go
But I’m stuck here in the grass where the cold winds blows
Now the liquor tasted good and the women all were fast
Well now there she goes my friend, well she’s rolling down at last

Hear the mighty engines roar, see the silver bird on high
She's away and westward bound, far above the clouds she’ll fly
Where the morning rain don’t fall and the sun always shines
She'll be flying over my home in about three hours time

This old airport’s got me down, it’s no earthy good to me
’Cause I'm stuck here on the ground, as cold and drunk as I can be
You can’t jump a jet plane like you can a freight train
So I'd best be on my way in the early morning rain

Fonte: álbum The best of Peter, Paul and Mary: ten years together (1970), de Peter, Paul & Mary. Canção originalmente gravada em 1966.

19 dezembro 2009

A morte de Marat


Jacques-Louis David (1748-1825). La mort de Marat. 1793.

Fonte da foto: Web Gallery of Art.

16 dezembro 2009

Mensagens

Fernando Pinto do Amaral

Invisíveis regressam as palavras
na penumbra que desce e que me abraça
quase em silêncio. As ruas da cidade
revelam cada rosto do passado,

cada perfil ou cada olhar – sorrisos
que setembro segreda e vou sentindo
como se fossem teus, como se ainda
por milagre viesses ter comigo

a mais um bar deserto, a mais um sonho
filho da meia-noite, nado-morto
talvez como este amor. O frio do outono
vai diluindo as margens do meu corpo

numa estranha neblina que submerge
a casa onde viveste, agora imersa
no mar das minhas lágrimas, eternas
como esse teu jardim – ó atmosfera

envolta em doces mágoas, entre os muros
de séculos e séculos! Às escuras
refluem as palavras, as nocturnas
mensagens do passado ou do futuro.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1993.

14 dezembro 2009

História do casamento e do amor

Alan Macfarlane

9.
Em contraste com sociedades mais antigas, já foi notado que os norte-americanos “não só constroem suas vidas familiares sobre o relacionamento marido/mulher como também apóiam todo o seu sistema de valores e a moralidade sobre ele”. Enquanto nas sociedades industriais do Ocidente o relacionamento emocional entre um homem e sua esposa é fundamental, na maioria das sociedades ele jamais é o pivô da estrutura social. Conforme observamos, as relações mais importantes são aquelas entre pais e filhos, os vínculos conjugais vindo em um pobre segundo lugar. “Nos países orientais com sua antiga civilização, verifica-se mesmo hoje pouco daquele sentimento de ternura para com a mulher, que é o principal encanto de nossa vida familiar”, escreve Westermarck.

A passagem de uma situação em que o relacionamento conjugal subordina-se a outros para a visão dominante no Ocidente, que o considera o vínculo mais profundo e duradouro da vida, acarreta numerosas conseqüências, alterando a natureza do casamento e os papéis de homens e mulheres. Uma das conseqüências é demográfica. A substituição dos vínculos familiares e entre pais e filhos pela relação marido/mulher diminui a pressão para ter filhos. O casal se basta um ao outro: os filhos se tornam um luxo, não uma necessidade. A contracepção eficaz permite escolher se se quer ter muitos ou poucos. Assim, o fortalecimento do vínculo marido/mulher é parte de um processo econômico e emocional que alguns demógrafos como Caldwell acreditam levar ao estado propício para uma situação demográfica de baixa fertilidade. É essencial, portanto, calcular quando essa situação – caracterizada por forte atração e afeto antes do casamento e sentimentos avassaladores dentro do casamento – foi estabelecida. Como já dissemos, essa premissa cultural faz parte do sistema de casamento malthusiano. Malthus afirmou em toda a sua obra que o casamento se devia sobretudo ao “amor”, e que a relação conjugal seria, desde que assumida, a mais importante na vida de uma pessoa. Embora tais afirmações sejam hoje partilhadas por muitos, na época foram culturalmente idiossincráticas. Quando se deu tal transformação?
[...]

Fonte: Macfarlane, A. 1990. História do casamento e do amor. SP, Companhia das Letras.

13 dezembro 2009

Três anos e dois meses no ar

F. Ponce de León

Nesse sábado, 12/12, o Poesia contra a guerra completou três anos e dois meses no ar. Ao fim do expediente de sexta-feira, o contador instalado no blogue indicava que 82.659 visitas haviam sido registradas nesse período.

Desde o balanço mensal anterior – Três anos e um mês no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Fernando Echevarría, Fernando Sabino, Frank Crane, João Zorro, Knut Schmidt-Nielsen, Paulo Henriques Britto, Ray Bradbury, Ronaldo Bôscoli e Rudyard Kipling. Além de outros autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Gerard David, Girodet-Trioson e Henry Fuseli.

11 dezembro 2009

Geração Paissandu

Paulo Henriques Britto

Vim, como todo mundo,
do quarto escuro da infância,
mundo de coisas e de ânsias indecifráveis,
de só desejo e repulsa.
Cresci com a pressa de sempre.

Fui jovem, com a sede de todos,
em tempo de seco fascismo.
Por isso não tive pátria, só discos.
Amei, como todos pensam.
Troquei carícias cegas nos cinemas,
li todos os livros, acreditei
em quase tudo por ao menos um minuto,
provei do que pintou, adolesci.

Vi tudo que vi, entendi como pude.
Depois, como de direito,
endureci. Agora a minha boca
não arde tanto de sede.
As minhas mãos é que coçam –
vontade de destilar
depressa, antes que esfrie,
esse caldo morno de vida.

Fonte: Moriconi, I., org. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema publicado em livro em 1989.

09 dezembro 2009

O sepultamento de Atala


Girodet-Trioson [Anne-Louis Girodet de Roucy-Trioson] (1767-1824). Atala au tombeau. 1807.

Fonte da foto: Art Renewal Center.

08 dezembro 2009

Milésima postagem

F. Ponce de León

Esta é a milésima postagem do Poesia contra a guerra. A primeira postagem foi ao ar em 12/10/2006 e a qüingentésima em 26/12/2007.

06 dezembro 2009

Pálida inocência

Álvares de Azevedo

Por que, pálida inocência,
Os olhos teus em dormência
A medo lanças em mim?
No aperto de minha mão
Que sonho do coração
Tremeu-te os seios assim?

E tuas falas divinas
Em que amor lânguida afinas,
Em que lânguido sonhar?
E dormindo sem receio
Por que geme no teu seio
Ansioso suspirar?

Inocência! quem dissera
De tua azul primavera
As tuas brisas de amor!
Oh! quem teus lábios sentira
E que trêmulo te abrira
Dos sonhos a tua flor!

Quem te dera a esperança
De tua alma de criança,
Que perfuma teu dormir!
Quem dos sonhos te acordasse
Que num beijo t’embalasse
Desmaiada no sentir!

Quem te amasse! e um momento
Respirando o teu alento
Recendesse os lábios seus!
Quem lera, divina e bela,
Teu romance de donzela
Cheio de amor e de Deus!

Fonte: Azevedo, A. 2006. Lira dos vinte anos. SP, Martin Claret. Poema – cujo título é sucedido pela frase ‘Cette image du ciel – innocente et beauté! Lamartine’ – publicado em livro em 1853.

03 dezembro 2009

O barquinho

Ronaldo Bôscoli

Dia de luz, festa de sol
E um barquinho a deslizar
No macio azul do mar.
Tudo é verão e o amor se faz
Num barquinho pelo mar
Que desliza sem parar...
Sem intenção, nossa canção
Vai saindo desse mar
E o sol
Beija o barco e luz
Dias tão azuis!
Volta do mar, desmaia o sol
E o barquinho a deslizar
E a vontade de cantar
Céu tão azul, ilhas do sul
E o barquinho, coração
Deslizando na canção
Tudo isso é paz, tudo isso traz
Uma calma de verão, e então
O barquinho vai
A tardinha cai
O barquinho vai
A tardinha cai...

Fonte (menos os versos 12-15): Maciel, L. C. & Chaves, A. 1994. Eles e eu, 4ª edição. RJ, Nova Fronteira. Canção originalmente gravada em 1961.

01 dezembro 2009

Os restos mortais

Fernando Sabino

1.
A simples idéia da viagem já deixou meu pai agitado, às voltas com uma série de providências: não ia ao Rio desde 1943. Estávamos em 1963: vinte anos, portanto. Nas vésperas do embarque, veio me procurar no consultório, preocupado:

– Vou ter mesmo que ir com sua mãe. Afinal de contas, é para o batizado do sobrinho dela.

Eles seriam os padrinhos – este era o pretexto do irmão de minha mãe para que fossem
ambos passar uns dias no Rio em sua companhia.

– O senhor faz bem em ir com ela – procurei tranqüilizá-lo. – Qual é o problema?

– Não podemos largar a casa vazia, só com as empregadas, sem um homem para tomar conta. Pensei no Galdino, que é que você acha?

– Quem?

– O Galdino, que cuida do sítio lá em Betim. É de confiança, bem-mandado, de muita serventia. Aquele rapaz do olho, não se lembra?
[...]

2.
Passei a manhã seguinte visitando clientes, cheguei tarde no consultório.

– Dona Teresa telefonou várias vezes – informou a secretária.

Teresa não costumava telefonar para o consultório, ainda mais várias vezes. Apreensivo, liguei para casa:

– Que foi que houve?

– O tal Galdino – informou ela. – A Maria cozinheira ligou para cá de manhãzinha dizendo que ele estava tendo umas coisas. Tentei falar com você, não consegui. Então chamei o Pronto-Socorro.
[...]

Fonte: Sabino, F. 2001 [1993]. Aqui estamos todos nus, 5ª edição. RJ, Record.

eXTReMe Tracker