31 dezembro 2012

Água e dor


E então
a chuva vem
e lava tudo –
o telhado,
as paredes,
as ruas.

A água
passa e deita
quase tudo –
a poeira,
as cores,
os restos.
A dor não.

29 dezembro 2012

Canto do afogado

Bueno de Rivera

O que fui, as águas não devolvem.
No sumidouro me perdi.

Os amigos procuram um corpo entre as sarças.
Trazem roupas de banho, redes novas,
escafandros no bolso. Eles não sabem
que o afogado sonha entre as anêmonas.

O pássaro entende os caminhos do mar,
o galo da manhã conhece a estrela,
mas vós, amigos, ignorais a face
imóvel sob as águas.

Ó cordeiros da infância,
no olho do peixe está a origem.

Fonte: Rivera, B. 2003. Melhores poemas de Bueno de Rivera. SP, Global. Poema publicado em livro em 1948.

27 dezembro 2012

Canto espiritual

Joan Maragall

Se o mundo é já tão formoso, Senhor, quando o vemos
com a paz Vossa dentro de nossos olhos
o que mais nos podeis dar em outra vida?

Por isso estou tão zeloso dos olhos e do rosto
e do corpo que me haveis dado, Senhor, e do coração
que se move nele sempre... e temo tanto a morte!

Com que outros sentidos me fareis ver
este céu sobre as montanhas,
e o mar imenso e o sol que brilha por todas as partes?
Dai-me nestes sentidos a eterna paz
e não desejarei outro céu além deste céu azul.
Aquele que em nenhum momento lhe disse pára,
senão ao mesmo que a morte o levou.
Eu não o entendo, Senhor; eu que quisera
deter tantos momentos de cada dia
para fazê-los eternos dentro do meu coração...
O que é este “fazer eterno”, é já morte?
Mas, então, a vida o que seria?
Seria a sombra somente do tempo que passa,
e a ilusão do longínquo e do próximo,
e a conta do muito e do pouco e do demasiado,
enganadora, porque já tudo é tudo?

Dá no mesmo! Este mundo, seja como for,
tão diverso, tão extenso, tão temporal;
esta terra, com tudo o que nela se cria,
é a minha pátria, Senhor; e não poderia
ser também uma pátria celestial?
Homem sou e é humana a minha medida
para tudo o que possa crer ou esperar.
Se minha fé e minha esperança aqui se detêm,
me culpareis por isso no além?

Mais longe vejo o céu e as estrelas,
e ainda gostaria de ser homem:
se haveis feito as coisa a meus olhos tão belas,
se haveis feitos meus olhos e meus sentidos para elas,
por que fechá-los buscando outro mundo?
Se para mim como este não há outro!
Já sei que sois, Senhor; mas onde estais, quem sabe?
Deixai-me, pois, crer que estais aqui.
E quando chegar aquela hora de temor
em que se fechem estes olhos humanos,
abre-me, Senhor, outros maiores
para contemplar a Vossa face imensa.
Seja-me a morte um maior nascimento!

Fonte: Freire, C. 2004. Babel de poemas: Uma antologia multilíngüe. Porto Alegre, L&PM. Poema publicado em livro em 1911.

25 dezembro 2012

Madona com o Menino e santos


Pontormo [Jacopo Carrucci] (1494-1557). Pala Pucci: Madonna con Bambino e santi. 1518.

Fonte da foto: Wikipedia.

23 dezembro 2012

Os cavalos do tempo

Tasso da Silveira

Os cavalos do tempo são de vento.
Têm músculos de vento,
nervos de vento, patas de vento, crinas de vento.

Perenemente em surda galopada,
passam brancos e puros
por estradas de sonho e esquecimento.

Os cavalos do tempo vão correndo,
vêm correndo de origens insondáveis,
e a um abismo absoluto vão rumando.

Passam puros e brancos, livres, límpidos,
no indescontínuo, imemorial esforço.
Ah, são o eterno atravessando o efêmero:
levam sombras divinas sobre o dorso...

Fonte: Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1960.

21 dezembro 2012

Remember


Recorda-te de mim quando eu embora
For para o chão silente e desolado;
Quando não te tiver mais ao meu lado
E sombra vã chorar por quem me chora.

Quando não mais puderes, hora a hora,
Falar-me no futuro que hás sonhado,
Ah de mim te recorda e do passado,
Delícia do presente por agora.

No entanto, se algum dia me olvidares
E depois te lembrares novamente,
Não chores: que se em meio aos meus pesares,

Um resto houver do afeto que em mim viste,
– Melhor é me esqueceres, mas contente,
Que me lembrares e ficares triste.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema publicado em livro em 1862.

19 dezembro 2012

Homo sapiens?

Dennis Fry

O rótulo Homo sapiens foi colado ao homem por Lineu em sua classificação do reino animal, há mais de 200 anos. Esse reino inclui agora mais de 750.000 espécies, e muitas outras podem ainda ser descobertas, mas é pouco provável que algo venha a abalar seriamente nossa convicção de que pertencemos a uma classe muito especial, convicção essa hoje não menos forte do que no século 18. Os critérios sobre os quais o sistema de Lineu foi construído eram, naturalmente, de caráter físico, mas é na esfera da inteligência que a superioridade do homem é geralmente reconhecida, quaisquer que sejam as dúvidas que se possam ter, ocasionalmente, sobre a exatidão do adjetivo sapiens.
[...]

O homem é, acima de tudo, o animal falante – Homo loquens. A esmagadora maioria dos seres humanos passa grande parte de seu tempo falando e ouvindo falar. Eles aprenderam a fazer isso durante seus primeiros anos de vida – e sem prestar muita atenção ao processo – e em conseqüência toda a atividade da comunicação verbal se realiza num nível em que nem o falante nem o ouvinte têm muita consciência da mecânica do processo. Todos nós temos, é claro, a ilusão de que sabemos o que estamos fazendo quando falamos, tal como temos a ilusão de escolhermos entre falar e calar, embora dois minutos num vagão ferroviário razoavelmente cheio sejam suficientes para acabar com essa ilusão. Por falarmos e ouvirmos, imaginamos que sabemos como funciona a fala, mas a grande maioria das pessoas não diria que compreendemos a circulação do sangue unicamente porque ele corre em nossas veias, ou que o oxigênio se renova em nossos pulmões porque inspiramos e expiramos. A situação relativa à fala não é muito diferente, e, mesmo do ponto de vista técnico, estamos longe de saber tudo sobre o funcionamento da fala e da linguagem. A pesquisa sobre o assunto se vem processando há muitas décadas, e levou ao estabelecimento de certos fatos físicos e certos princípios gerais. Este livro é uma tentativa de colocar parte dessas informações à disposição do leitor comum, julgando serem elas de interesse, e mesmo de certa importância, para que se aprecie melhor o que significa pertencer à família do Homo loquens.

Fonte: Fry, D. 1978. Homo loquens: O homem como animal falante. RJ, Zahar.

17 dezembro 2012

Na presença de uma grande trovoada

Sousa Caldas

Tremei, humanos: toda a natureza.
Do seu Deus ao aceno convocada,
Sobre negros trovões surge sentada,
Em cruel fúria contra nós acesa.

Do rosto seu escondem a beleza,
Medonha escuridade acompanhada
De abrasadores raios, e pesada
Saraiva que no ar estava presa.

Agora perde a cor de medo cheio,
O Monarca feliz e poderoso,
Que o vil orgulho abriga no seu seio.

Tu descoras também, Ateu vaidoso,
E menos cego sem achar esteio,
A mão, que negas, beijas duvidoso.

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 2. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1820-1.

15 dezembro 2012

Imagem


Uma coisa branca,
Eis o meu desejo.

Uma coisa branca
De carne, de luz,

Talvez uma pedra,
Talvez uma testa,

Uma coisa branca.
Doce e profunda,

Nesta noite funda,
Fria e sem Deus.

Uma coisa branca,
Eis o meu desejo,

Que eu quero beijar,
Que eu quero abraçar,

Uma coisa branca
Para me encostar

E afundar o rosto.
Talvez um seio,

Talvez um ventre,
Talvez um braço,

Onde repousar.
Eis o meu desejo,

Uma coisa branca
Bem junto de mim,

Para me sumir,
Para me esquecer,

Nesta noite funda,
Fria e sem Deus.

Fonte: Moriconi, I., org. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema publicado em livro em 1948.

13 dezembro 2012

Quem tem medo do vermelho, amarelo e azul?


Barnett Newman (1905-1970). Who’s afraid of red, yellow and blue? 1966.

Fonte da foto: Ciudad de la Pintura.

12 dezembro 2012

Seis anos e dois meses no ar

F. Ponce de León

Nesta quarta-feira, 12/12, o Poesia contra a guerra completa seis anos e dois meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 191.650 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Seis anos e um mês no ar – foram aqui publicados pela primeira vez textos dos seguintes autores: Eduardo Prado de Mendonça, George Pólya, Gustavo Adolfo Bécquer, John Napier, Luís Rey e Michael J. Benton. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Ary Scheffer e Charles Edward Perugini.

11 dezembro 2012

Destreza manual

John Napier

Os tibetanos têm um aforismo – “Cuidado com os demônios à tua mão esquerda” – que é comum a todas as raças e a todos os credos sob uma ou outra forma. Na maioria dos grupos culturais, a mão esquerda é considerada impura e imprestável. Nos países do Oriente Médio e Norte de África, o ritual das refeições feitas somente com a mão direita é observado rigorosamente nos círculos ortodoxos; procedimento um tanto incômodo, na maioria das vezes, mas, levando tudo em conta, provavelmente higiênico, dado que a mão esquerda é a mais freqüentemente usada para fins de asseio íntimo. Apesar das rigorosas recomendações acerca de lavagens, a mão esquerda deve ser sempre conspurcada, filosoficamente, quando não bacteriologicamente, pelas tarefas excrementícias que é chamada a executar.

Na língua inglesa, as próprias palavras left (esquerda) e right (direita) contêm seu próprio louvor ou detração, conforme o caso. A direita implica correção e decoro, a esquerda, em seu sentido primário, significa fraco e imprestável. Muitas palavras derivadas, como righteous (reto, íntegro) e dextrous (destro, sagaz), gauche (canhestro, inepto) e sinister (sinistro, funesto, malvado) retêm seu significado etimológico original – destreza e bondade versus incompetência e maldade. A política, é claro, constitui caso especial, embora haja quem não admita a distinção. Segundo H. L. Mencken, o uso de esquerda e direita na política teve origem nos lugares onde se sentavam os membros da Assembléia francesa em 1789; os conservados de nobre estirpe tomavam assento à direita do presidente, os membros revolucionários do Terceiro Estado à sua esquerda, e os moderados no centro.
[...]

Fonte: Napier, J. 1983 [1980]. A mão do homem. RJ & Brasília, Zahar & Editora da UnB.

09 dezembro 2012

O anti-pássaro

Orides Fontela

Um pássaro
seu ninho é pedra

seu grito
metal cinza

dói no espaço
seu olho.

Um pássaro
pesa
e caça
entre lixo
e tédio.

Um pássaro
resiste ao
céus. E perdura.
Apesar.

Fonte: Fontela, O. 1996. Teia: poemas, 2ª edição. SP, Geração Editorial.

07 dezembro 2012

Esquistossomíase

Luís Rey

A esquistossomíase conta-se entre as poucas doenças parasitárias cuja distribuição e prevalência, em escala mundial, continuam a aumentar.

A razão está em que o próprio homem promove o desenvolvimento de novos e maiores focos de transmissão ao construir, sem as preocupações adequadas, represas e obras de irrigação exigidas pelo progresso técnico e econômico ou pela agricultura moderna. Nos canais de irrigação a céu aberto, os moluscos encontram muitos dos seus hábitats mais favoráveis.

Fonte: Rey, L. 2008. Parasitologia, 4ª edição. RJ, Guanabara Koogan.

05 dezembro 2012

Saldos no Vietname


Bombas de esferas:
cachos de bombas nascem de uma só bomba-mãe.
Cada bomba-filha ejecta, à altura de homem,
300 esferas que vão penetrar na carne aos ziguezagues.

Parente deste sanguinário jogo de berlinde
é o jogo das setas: um polegar de tamanho,
aletas que lhes permitem
entrar em parafuso carne dentro,
pontas de arpão,
o que torna a sua extracção muito difícil.

(Agora, as setas, quando já no corpo
– é um melhoramento! – fragmentam-se.)

Também há projécteis de plástico
não detectáveis pelos raios X;
e a bomba dita de nuvem explosiva.

Quando entra em cena o seu papel é este:
introduzir, primeiro, por escâncaras ou frinchas,
no teatro onde está a actuar,
uma expansiva nuvem de etileno.

Só depois explode: então, o fogo
pega-se ao etileno e... cai o pano!

E mais uma invenção: as minas-aranhiços,
que desenrolam patas de 6 metros
quando tocam no chão.

Ai de quem tropeçar numa das patas:
nem a mosca da alma terá tempo
de se evolar!

A TV veio também colaborar
com “directos” bem sofisticados:
realizador-bombista, o pessoal-piloto
a um só tempo fabrica e realiza a própria acção
e faz-vê, em grande plano, o seu desfecho.

Outros sinetes deixou o americano
no texto Vietname.
Um dos mais velhos: a incandescente lepra
à procura de pessoas que se chama napalm;
um dos mais novos: a bomba
devoradora de todo o oxigénio
250 metros em derredor
do ponto onde cair.

E onde o americano espera nunca estar.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1958.

03 dezembro 2012

Os filósofos convivem conosco

Eduardo Prado de Mendonça

Existe uma idéia corrente sobre a figura do filósofo, que o indica como um excêntrico. Em geral, pensamos no filósofo como um tipo esquisito, estranho, diferente. E esta idéia não é de hoje.

Uma das versões sobre a morte de Pitágoras relata que o famoso filósofo grego teria morrido num incêndio. O povo da localidade em que vivia Pitágoras, movido por uma série de suposições a respeito da vida estranha do mestre e seus discípulos, resolvera incendiar a sua escola, temendo que aquela vida de recolhimento em que viviam significasse, de fato, uma ameaça à cidade. Por vez, o homem prefere eliminar o que não compreende.
[...]

Poderíamos alargar por muito tempo ainda a série dos exemplos. Basta-nos, contudo, mostrar que os homens carregam consigo posições filosóficas, assumidas arbitrariamente. Assumem estas posições pelas razões mais díspares. Mas não sabem, como os filósofos, justificar racionalmente as posições assumidas. Não sabem como estas idéias podem ser defendidas, ou criticadas, e com isto podem estar, na verdade, assumindo uma posição que os afaste da realidade da existência. Não são, pois, os filósofos que se afastam da vida. Eles convivem conosco, marcando a vida humana com a sua presença constante. Os homens que julgam não afastar-se da vida, estes, por não se ocuparem da Filosofia, estes sim podem estar afastados da realidade, pois deixam, por deficiência da concepção, de viver como poderiam e deveriam viver. Vivemos diante desta presença dos filósofos, pois as suas idéias se manifestam a todos os instantes. Mas estas idéias, eles as sustentam procurando encontrar para justificá-las razões profundas. E nós? Os filósofos, através das idéias que nos legaram, acompanham a nossa vida. E nós? Será que nós poderemos também acompanhar os filósofos?

Fonte: Mendonça, E. P. 1976. O mundo precisa de filosofia, 4ª edição. RJ, Agir.

01 dezembro 2012

As mulheres suliotas


Ary Scheffer (1795-1858). Les femmes souliotes. 1827.

Fonte da foto: Wikipedia.

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