A história da humanidade se confunde com a história das guerras. Deveríamos lutar para que se confundisse apenas com a história da literatura.
30 agosto 2007
Na casa Avoenga
José Nêumanne
A nuca cansada apoiada na palma aberta da mão, os olhos míopes do velho Chico Ferreira escutavam o choro do sertão no céu sem estrelas da mais escura vastidão.
um sapo um grilo um rês uma rã
Assim era o serão na Fazenda Rio do Peixe, de onde fui vindo.
Todo som que me vier do bojo da rabeca de Bié, como chuva na telha e sabor de leite coalhado com rapadura rapada – eta emoção! Fonte: Nêumanne, J. 2002. Solos do silêncio, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1985.
Out at daybreak to the sun Seas are drifting glass The tides were turning to the storm Winds were moving fast Women waiting at the harbour Silent stand around Weather storms another day For men the sea had found
Fishermen were laying nets The barrels spread the bait The seagulls warning echoed round Winds that wouldn’t wait People gathered at the harbour Waiting for the tide Eyes half closed against the spray And tears they cannot hide
Shadows falling at the harbour Women stand around Weather storms another way For men the sea have drowned
Hulls were creaking crashing sails Rains were slating down The oilskins flapping, decks awash Slanting turning round Thunder roaring at the harbour Women drawn in fear Huddle up to wait the time And pray the sky will clear
Howling winds and the raging waves Cracked upon the boats And torn from safety, torn from life Men with little hope Ghostly echoes at the harbour Whispering of death Women weeping holding hands Of those they still have left
Shadows falling... Fonte: capa do álbum Ashes are burning (1973), do Renaissance.
1. Enfim te vejo! – enfim posso, Curvado a teus pés, dizer-te, Que não cessei de querer-te, Pesar de quanto sofri. Muito penei! Cruas ânsias, Dos teus olhos afastado, Houveram-me acabrunhado A não lembrar-me de ti!
2. Dum mundo a outro impelido, Derramei os meus lamentos Nas surdas asas dos ventos, Do mar na crespa cerviz! Baldão, ludíbrio da sorte Em terra estranha, entre gente, Que alheios males não sente, Nem se condói do infeliz!
3. Louco, aflito, a saciar-me D’agravar minha ferida, Tomou-me tédio da vida, Passos da morte senti; Mas quase no passo extremo, No último arcar da esperança, Tu me vieste à lembrança: Quis viver mais e vivi!
4. Vivi; pois Deus me guardava Para este lugar e hora! Depois de tanto, senhora, Ver-te e falar-te outra vez; Rever-me em teu rosto amigo, Pensar em quanto hei perdido, E este pranto dolorido Deixar correr a teus pés.
5. Mas que tens? Não me conheces? De mim afastas teu rosto? Pois tanto pôde o desgosto Transformar o rosto meu? Sei a aflição quanto pode, Sei quanto ela desfigura, E eu não vivi na ventura... Olha-me bem, que sou eu!
6. Nenhuma voz me diriges!... Julgas-te acaso ofendida? Deste-me amor, e a vida Que me darias – bem sei; Mas lembrem-te aqueles feros Corações, que se meteram Entre nós; e se venceram, Mal sabes quanto lutei!
7. Oh! se lutei!... mas devera Expor-te em pública praça, Como um alvo à populaça, Um alvo aos dictérios seus! Devera, podia acaso Tal sacrifício aceitar-te Para no cabo pagar-te, Meus dias unindo aos teus?
8. Devera, sim; mas pensava, Que de mim te esquecerias, Que, sem mim, alegres dias Te esperavam; e em favor De minhas preces, contava Que o bom Deus me aceitaria O meu quinhão de alegria Pelo teu quinhão de dor!
9. Que me enganei, ora o vejo: Nadam-te os olhos em pranto, Arfa-te o peito, e no entanto Nem me podes encarar; Erro foi, mas não foi crime, Não te esqueci, eu to juro: Sacrifiquei meu futuro, Vida e glória por te amar!
10. Tudo, tudo; e na miséria Dum martírio prolongado, Lento, cruel, disfarçado, Que eu nem a ti confiei; “Ela é feliz (me dizia) “Seu descanso é obra minha”. Negou-me a sorte mesquinha... Perdoa, que me enganei!
11. Tantos encantos me tinham, Tanta ilusão me afagava De noite, quando acordava, De dia em sonhos talvez! Tudo isso agora onde pára? Onde a ilusão dos meus sonhos? Tantos projetos risonhos, Tudo esse engano desfez!
12. Enganei-me!... – Horrendo caos Nessas palavras se encerra, Quando do engano, quem erra. Não pode voltar atrás! Amarga irrisão! reflete: Quando eu gozar-te pudera, Mártir quis ser, cuidei que era... E um louco fui, nada mais!
13. Louco, julguei adornar-me Com palmas de alta virtude! Que tinha eu bronco e rude Com o que se chama ideal? O meu eras tu, não outro; Estava em deixar minha vida Correr por ti conduzida, Pura, na ausência do mal.
14. Pensar eu que o teu destino Ligado ao meu, outro fora, Pensar que te vejo agora, Por culpa minha, infeliz; Pensar que a tua ventura Deus ab eterno a fizera, No meu caminho a pusera... E eu! Eu fui que a não quis!
15. És doutro agora, e para sempre! Eu a mísero desterro Volto, chorando o meu erro, Quase descrendo dos céus! Dói-te de mim, pois me encontras Em tanta miséria posto, Que a expressão deste desgosto Será um crime ante Deus!
16. Dói-te de mim, que te imploro Perdão, a teus pés curvado; Perdão!... de não ter ousado Viver contente e feliz! Perdão da minha miséria, Da dor que me rala o peito, E se do mal que te hei feito, Também do mal que me fiz!
17. Adeus que eu parto, senhora; Negou-me o fado inimigo Passar a vida contigo, Ter sepultura entre os meus; Negou-me nesta hora extrema, Por extrema despedida, Ouvir-te a voz comovida Soluçar um breve Adeus!
18. Lerás porém algum dia Meus versos, da alma arrancados, De amargo pranto banhados, Com sangue escritos; – e então Confio que te comovas, Que a minha dor te apiade Que chores, não de saudade, Nem de amor, – de compaixão,
Fonte: Dias, G. 2003. I-Juca-Pirama. Os Timbiras. Outros poemas. SP, Martin Claret.
1. Ó Allah, incerto, vacilante, sem rumo, inteiramente desorientado, não consigo provar a realidade do Teu ser.
Profundas meditações, trabalhosas lucubrações são simples devaneios, pesquisas no vácuo em busca da Tua existência, que não consigo vislumbrar.
Em sã consciência, não posso compreender de que modo Tu existes, embora muita gente consagre e descreva os mais fantasiosos predicados que Te resolveram emprestar.
A conclusão de tudo isso é que ninguém Te poderá conhecer – com exceção de Ti mesmo.
2. Somos joguetes nas mãos do Destino. Simples brinquedos, à nossa custa diverte-se o Universo.
Joguetes que vivem redemoinhando ao sabor dos ventos.
Não se trata de metáfora, nem há exagero no que digo: esta é a realidade.
No passado, ingenuamente brincávamos no tablado da vida.
Seremos hoje, uns após outros, carregados no féretro do não-ser.
3. Se me tivessem consultado sobre minha vinda até estas paragens, eu teria dito: – Não!
A própria existência, se dependesse da minha vontade tê-la ou não a ter, eu opinaria pela negativa.
Lastimei-me! Quando me queixei por haver caído neste cárcere asfixiante!
Lamentei haver nascido, crescido e vivido nele! Lamentações e mais lamentações!
4. Ó Allah, se me consideras escravo desobediente, rebelado, onde estão, dize-me, Tua benevolência e Teu perdão?
Será duro e negro meu coração, pérfida minh’alma: mas onde se encontra toda essa Tua pureza, em que espaços fulgirão as luzes da Tua bondade?
Se me acenas com as delícias do Paraíso como prêmio de uma indigna submissão, será isso um abarganha supeita que mercadores ávidos gostariam de fazer.
Que diferença entre Ti e eles haveria então?
Assim, desconcertado e confuso, como poderei exaltar a Tua compreensão, a Tua magnificência, a Tua divindade? Fonte: Khayyám, O. 2005. Rubáiyát. SP, Martin Claret. A obra completa contém 182 rubaiatas, as quatro primeiras das quais são reproduzidas aqui. Obra e autor são comumente grafados como “Rubáiyát” e “Omar Khayyám”, respectivamente.
Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem-comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbados O lirismo difícil e pungente dos bêbados O lirismo dos clowns de Shakespeare
– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1930.
Por trás de toda palavra há uma trama cavada. Só não se cava nem se sagra a palavra enclausurada.
A clausura da palavra é a palavra lacrada; é a usura da palavra que não abre suas veias se se envenena de nada.
Só se salva a palavra contaminada por outra palavra sangrada: – pois a palavra infectada pelo que outra desata é a palavra que em sua casca se rasga contra o nada da palavra enclausurada.
Por trás de toda palavra que não se perde lacrada há a trama envenenada de toda palavra tramada. Fonte: Chamie, M. 1998. Caravana contrária. SP, Geração Editorial.
A idéia de que os continentes não estão fixados na superfície da Terra, mas podem de algum modo se mover, não é nova. A congruência notável da forma dos litorais da África ocidental e do leste da América do Sul despertou a atenção dos geógrafos tão logo se tornaram disponíveis mapas precisos do Novo Mundo. Mas inúmeras idéias malucas pulularam através da história, e essa pareceu ainda mais excêntrica que a maioria. O conceito de deriva continental foi seriamente considerado pela primeira vez no final do século 19, quando o então famoso geólogo austríaco Eduard Suess sugeriu que a África, Madagascar e Índia estiveram outrora unidos como uma única massa de terra, separando-se somente depois. Suess baseou sua proposição herética na grande semelhança de tipos de rochas encontradas em todas as três áreas. Ele batizou esse antigo continente de Gonduana, derivando o nome de um lugar na Índia habitado por uma tribo denominada Gonds. [...]
As várias linhas de discussão em favor do conceito de um supercontinente antigo e sulino foram reunidas em um livro notável, publicado por um meteorologista alemão em 1912. Alfred Weneger estava convencido de que a grande semelhança entre os litorais da África ocidental e do leste da América da Sul transcendia qualquer possibilidade de coincidência. Ele reuniu o máximo de informações paleontológicas e geológicas possível em apoio à sua causa. Mas em muitos aspectos, a prova principal foi a presença de fósseis de mesosauro em camadas de idade semelhante dos diferentes membros de Gonduana agora separados.
Weneger tinha a confiança cega de um fanático religioso. Entretanto, faltavam-lhe os conhecimentos geológicos detalhados para realmente apoiar sua hipótese. A publicação do livro de Weneger foi recebida com aplausos discretos e uma sensação crescente de admiração pelos cientistas do hemisfério sul e com apupos ensurdecedores pelos muitos mais numerosos (e ignorantes) geólogos do hemisfério norte. “Como é possível continentes se moverem sobre o fundo sólido dos oceanos?”, pradaram os críticos. Os geofísicos, aqueles geólogos que lidavam com o interior e a física da Terra, foram particularmente contundentes em suas críticas, esquecendo que fizeram parte do mesmo grupo de cientistas que garantiu ao mundo que Darwin estava errado sobre a antigüidade da Terra – que, de acordo com os cálculos deles, não tinha mais de 5 milhões de anos. (Eles erraram por um fator de mil.) Quando Weneger morreu em um acidente de balão sobre a capota de gelo da Groenlândia, em 1930, a comunidade geológica emitiu um mal dissimulado suspiro de alívio. Mas não por muito tempo.
No início do século 20, um jovem geólogo sul-africano chamado A. L. du Toit, começou a cruzar a África do Sul, gastando vinte anos examinando a estrutura das rochas, mapeando vastas extensões de território, arquivando assim vastas quantidades de informação em sua memória enciclopédica. Du Toit, que logo percebeu que a escandolosa hipótese de Weneger explicava muitos dos aspectos geológicos do sul da África, publicou em 1921 seu primeiro estudo sobre a possibilidade de “deslocamento dos continentes”. [...]
Em 1937, du Toit publicou um livro monumental sobre Gonduana chamado Our wandering continents: An hypothesis of continental drifting. Seus detratores o espinafraram. Os mesosauros poderiam facilmente nadar através dos oceanos, clamaram; a semelhança nos estratos e o encaixe dos litorais dos diferentes membros de Gonduana não passavam de coincidências, zombaram. Por 25 anos, a idéia esteve morta nas mentes dos geólogos, exceto uns poucos obstinados; o resto do mundo científico parece ter ignorado o conselho oportuno na capa do grande livro de du Toit: “A África forma a Chave”. Fonte: Ward, P. 1997. O fim da evolução. RJ, Campus.
Grave, imaterial, igual, harmonizante, abarcante, voluminoso… assombroso, O anoitecer quer ser do tempo a vasta noite, útero-de-tudo, morada-de-tudo, tumba-de-tudo. Seu doce crescente de luz amarela, enrolado para o poente, sua erma oca luz grisalha, na altura pendente, Desmaiam; suas estrelas primeiras, estrelas princesas, estrelas principais, debruçam-se sobre nós, Em fogo mapeando o céu. Pois a terra seu ser desatou, seus matizes se apagam, ex- traviando-se, esfriando, entrando uns pelos outros em tropel; ser em ser imersos, esmagados, – de todo Deslembrados, desmembrados agora. Coração, é certo o que me sussurras: Nossa tarde baixa sobre nós; nossa noite engolfa-nos, engolfa-nos, e dá cabo de nós. Só os galhos com folhas em boca-de-dragão adamascam a luz baça, de aço; negros, Nigérrimos contra ela. Nossa história, Ó nosso oráculo! Que a vida minguante, ah! que a vida enrole Suas meadas, outrora variegadas, mescladas, raiadas – junte tudo em dois carretéis; separe, aparte, encurrale Seu tudo agora só em dois bandos, dois rebanhos: preto, branco; certo, errado. Calcule apenas, apenas pense, imagine Só estes dois; cuidado com um mundo onde estes dois apenas contem, um do outro separados; uma tortura Onde, em si-mesmos espremidos, a si mesmos amarrados, desembainhados, sem abrigo, pensamentos contra pensamentos trituram-se em gemidos. Fonte: Hopkins, G. M. 1989. Poemas. SP, Companhia das Letras. Poema originalmente publicado em 1918.
A procissão de ventos desde a aurora avança por aldeias, por desertos, cantando vem chegando, vai embora, ziguezagueia em seu vagar incerto.
Dedos inquietos, saltam bailarinos nas hastes escamadas das palmeiras soam flautas, violões e violinos seguindo a voz de louca feiticeira.
Os ventos vão erguendo entre as estrelas solene catedral a Sebastian: torres de solidão, vozes e velas, chamas de linho ardendo na manhã.
Harpas marulham em vastidões escuras por onde o vento passa indiferente, desatando canções que são loucura na garganta perdida dos dementes.
Ventos de luz e flamas que confluem, silfo de cinza e sal eu me desfaço em nuvens que do chão ao céu refluem no azul que cai ao chão feito em pedaços. Fonte: Falcão, G. 1997. O viajante anônimo. SP, Ateliê Editorial.
Querida carruagem no verão enquanto estanca e lentamente se desmancha em conclusão, o galope é um instantâneo a semelhança. O futuro empresta problemas do galho e a cada bifurcação hesita frente à contenda.
Como agüentar a luz intensa, branca do verão presente, em foco sobre a grama pensativa, seca a ponto de estalo, quando a tarde se fia no que voa? Nuvens fogem entre as asas dos pássaros, e a vibração trama algo que os dedos querem apalpar: ausente, à espera, e não no tom exato. Fonte: Messerli, D. 1999. Primeiras palavras. SP, Ateliê Editorial.
1. Em um dos primeiros dias de outubro, em 1815, antes do pôr-do-sol, um homem viajava a pé. Tinha aparência assustadora. Seria difícil encontrar alguém com aspecto mais miserável. Era forte, de estatura mediana. Parecia ter de quarenta e cinco a cinqüenta anos. Na cabeça, um boné com aba de couro. A camisa, de tecido grosseiro, mal-fechada deixava ver o peito cabeludo. Calças esfarrapadas. Sapatos sem meias. Nas costas, um volumoso saco de viagem de soldado. Trazia na mão um cajado de madeira, cheio de nós. Cabeça raspada e barba crescida. O suor e o pó da estrada tornavam sua aparência ainda pior. [...]
3. Durante a madrugada, Jean Valjean acordou.
O ex-condenado pertencia a uma família camponesa. Quando criança, não aprendeu a ler. Ao crescer, tornou-se podador de árvores. Órfão de pai e mãe, foi criado por uma irmã mais velha, casada e com sete filhos. Quando tinha vinte e cinco anos, a irmã enviuvou. O filho mais velho tinha oito anos, o mais novo um. Jean Valjean tornou-se o arrimo da família. Passou a sustentar a irmã e os sobrinhos com trabalhos grosseiros e mal remunerados. Nunca namorou, nem nunca se soube que estivesse apaixonado. Vivia para a família. Falava pouco, tinha o semblante pensativo. Quando comia, muitas vezes a irmã tirava o melhor pedaço de seu prato para dar a uma das crianças, e ele sempre permitia. Mas seu trabalho e o da irmã eram insuficientes para sustentar uma família tão grande. A miséria aumentou. Certo ano, em um inverno rigoroso, Jean Valjean não encontrou trabalho. A família ficou sem pão. Sem pão. Exatamente como está escrito. Sete crianças. [...] Fonte: Hugo, V. 2001 [1862]. Os miseráveis. SP, Editora FTD.
Quando eu era menina bem pequena, em nossa casa, certos dias da semana se fazia um bolo, assado na panela com um testo de borralho em cima.
Era um bolo econômico, como tudo, antigamente. Pesado, grosso, pastoso. (Por sinal que muito ruim.)
Eu era menina em crescimento. Gulosa, abria os olhos para aquele bolo que me parecia tão bom e tão gostoso.
A gente mandona lá de casa cortava aquele bolo com importância. Com atenção. Seriamente. Eu presente. Com vontade de comer o bolo todo. Era só olhos e boca e desejo daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha governava. Regrava. Me dava uma fatia, tão fina, tão delgada... E fatias iguais às outras manas. E que ninguém pedisse mais! E o bolo inteiro, quase intangível, se guardava bem guardado, com cuidado, num armário, alto, fechado, impossível.
Era aquilo uma coisa de respeito. Não pra ser comido assim, sem mais nem menos. Destinava-se às visitas da noite, certas ou imprevistas. Detestadas da meninada.
Criança, no meu tempo de criança, não valia mesmo nada. A gente grande da casa usava e abusava de pretensos direitos de educação.
Por dá-cá-aquela-palha, ralhos e beliscão. Palmatória e chineladas não faltavam. Quando não, sentada no canto de castigo fazendo trancinhas, amarrando abrolhos. “Tomando propósito”. Expressão muito corrente e pedagógica.
Aquela gente antiga, passadiça, era assim: severa, ralhadeira.
Não poupava as crianças. Mas, as visitas... – Valha-me Deus!... As visitas... Como eram queridas, recebidas, estimadas, conceituadas, agradadas!
Era gente superenjoada. Solene, empertigada. De velhas conversas que davam sono. Antiguidades...
Até os nomes, que não se percam: D. Aninha com Seu Quinquim. D. Milécia, sempre às voltas com receitas de bolo, assuntos de licores e pudins. D. Benedita com sua filha Lili. D. Benedita – alta, magrinha. Lili – baixota, gordinha. Puxava de uma perna e fazia crochê. E, diziam dela línguas viperinas: “– Lili é a bengala de D. Benedita”. Mestra Quina, D. Luisalves, Saninha de Bili, Sá Mônica. Gente do Cônego Padre Pio.
D. Joaquina Amâncio... Dessa então me lembro bem. Era amiga do peito de minha bisavó. Aparecia em nossa casa quando o relógio dos frades tinha já marcado 9 horas e a corneta do quartel, tocado silêncio. E só se ia quando o galo cantava.
O pessoal da casa, como era de bom-tom, se revezava fazendo sala. Rendidos de sono, davam o fora. No fim, só ficava mesmo, firme, minha bisavó.
D. Joaquina era uma velha grossa, rombuda, aparatosa. Esquisita. Demorona. Cega de um olho. Gostava de flores e de vestido novo. Tinha seu dinheiro de contado. Grossas contas de ouro no pescoço.
Anéis pelos dedos. Bichas nas orelhas. Pitava na palha. Cheirava rapé. E era de Paracatu. O sobrinho que a acompanhava, enquanto a tia conversava contando “causos” infindáveis, dormia estirado no banco da varanda. Eu fazia força de ficar acordada esperando a descida certa do bolo encerrado no armário alto. E quando este aparecia, vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário cheio de grandes bolos ao meu alcance. De manhã cedo quando acordava, estremunhada, com a boca amarga, – ai de mim – via com tristeza, sobre a mesa: xícaras sujas de café, pontas queimadas de cigarro. O prato vazio, onde esteve o bolo, e um cheiro enjoado de rapé. Fonte: Coralina, C. 2004. Melhores poemas, 2ª edição. SP, Global. Poema originalmente publicado em 1965.
Ontem, domingo (12/8), o Poesia contra a guerra completou dez meses no ar.
Desde o balanço mensal anterior, “O tempo de uma gravidez”, foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Amaral Maia, Antero de Quental, Carlos de Oliveira, Dave Pirner, Frances Ashcroft, Geraldo Espíndola, Gonçalves Dias, Henriqueta Lisboa, Henry David Thoreau, Jorge Wanderley, José Régio, Kate Bush, Majela Colares, Noel Rosa, Orides Fontela, Paul Dirac, Paula Padilha, Raul de Leoni, Robert M. Pirsig e Stephen Hawking. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Andrea Mantegna, Goya, Jean-François Millet e Pierre Bonnard.
“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces, Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: “vem por aqui” Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali...
A minha glória é esta: Criar desumanidade, Não acompanhar ninguém. – Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre a minha Mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde, Por que me repetis: “vem por aqui”? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos arrastar os pés sangrentos, A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós Que me dareis machados, ferramentas, e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátrias, tendes tectos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios. Eu tenho a minha Loucura! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém. Todos tiveram pai, todos tiveram mãe, Mas eu, que nunca principio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: “vem por aqui”! A minha vida é um vendaval que se soltou, É uma onda que se alevantou. É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, Não sei por onde vou, – Sei que não vou por aí! Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1925.
Foi em vão a batalha da voz tensa que findou na gagueira atormentada mais em vão foi pensar que não se pensa
quanto a vida é promessa, só, mais nada que se oculta na fala e se afugenta na certeza da angústia aprofundada
nos suspiros da ânsia que alimenta os desejos ambíguos desvendados essa febre que a mente humana inventa
refúgio de mistérios confinados pressentidos em gestos inconstantes dos momentos agrestes exalados
entre os mitos dos sensos conflitantes que a memória retarda quando ausente o perfeito equilíbrio exposto e antes
da sensata mudez que se consente no final da batalha a reticência conspirando a cegueira do presente
em linguagem fingindo à evidência... nos limites dos sons ecoa a infância reescrita nos olhos da existência. Fonte: Colares, M. 1997. O soldador de palavras. SP, Ateliê Editorial.
Conheci a Beleza que não morre E fiquei triste. Como quem da serra Mais alta que haja, olhando aos pés a terra E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,
Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre; Assim eu vi o mundo e o que ele encerra Perder a cor, bem como a nuvem que erra Ao pôr-do-sol e sobre o mar discorre.
Pedindo à forma, em vão, a idéia pura, Tropeço, em sombras, na matéria dura, E encontro a imperfeição de quanto existe.
Recebi o batismo dos poetas, E assentado entre as formas incompletas Para sempre fiquei pálido e triste. Fonte: Quental, A. 2004. Melhores poemas. SP, Global. Poema originalmente publicado em 1886.
Nem sempre é o vento que abre estas janelas E agita vegetais já resignados. Às vezes, noite-a-dentro, um ser antigo Surgido de outros montes lança um dado Acaso tumultuário entre cortinas: Espírito de amargas caravelas, Sabor de sangue ao fôlego tomado, Chega (nem sempre o vento) e busca abrigo Na sala, pelos móveis, lado a lado Com rosas e camélias meninas.
Nem sempre a noite cobre estas montanhas, Deita olhos negros, densos, no jardim. Às vezes, entre plantas e canteiros Dança uma névoa de flores carpida E noivas anuncia do infinito: Essa promessa raro se acompanha De fatos como abelhas e jasmins. Cobre (nem sempre a noite) o tempo inteiro Uma sofrida mágica, partida Em ser e não estar, um quase grito.
Nem sempre chega até meu nome a arte Para me converter no aturdimento Às vezes chega apenas a certeza Mas com vazias malas, enganada, Um pássaro empalhado como peito: Dama sagrada, ainda assim reparte Migalhas de seu sonho, um rudimento. Manhãs (nem sempre a arte) da pobreza Urdidas na rotina palmilhada Explodem sem ruído e sem proveito.
Ainda assim, nem sempre é de extinção O canto-orvalho às vezes consumado. Um globo se imagina todo luz E, gota dágua, um pássaro impreciso Pode deixar-lhe acesa a irrealidade: Dali pode partir um raio à mão Que serve oculta o bem mais preservado. Algo (nem sempre o orvalho) assim reduz O metro de cantares indecisos Ao casto desencontro da verdade. Fonte: Wanderley, J. 2001. Antologia poética. SP, Ateliê Editorial. Poema originalmente publicado em 1974 e dedicado “A Ricardo Oliveira que tem o mar à direita.”
Goya [Francisco de Goya y Lucientes] (1746-1828). El tres de mayo de 1808 en Madrid [Los fusilamentos de la montaña del Príncipe Pío]. 1814. Fonte da foto: Wikipedia.
O Homem desperta e sai cada alvorada Para o acaso das cousas... e, à saída, Leva uma crença vaga, indefinida, De achar o Ideal nalguma encruzilhada...
As horas morrem sobre as horas... Nada! E ao Poente, o Homem, com a sombra recolhida, Volta, pensando: “Se o Ideal da Vida Não veio hoje, virá na outra jornada...”
Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim, Mais ele avança, mais distante é o fim, Mais se afasta o horizonte pela esfera;
E a Vida passa... efêmera e vazia: Um adiamento eterno que se espera, Numa eterna esperança que se adia... Fonte: Leoni, R. 1998. Luz mediterrânea. BH, Garnier. Poema originalmente publicado em 1922.
Eu poderia viver recluso numa casca de noz e me considerar rei do espaço infinito... – Shakespeare, Hamlet, Ato 2, Cena 2.
Hamlet talvez quisesse dizer que embora nós, seres humanos, sejamos muito limitados fisicamente, nossas mentes estão livres para explorar todo o universo e para avançar audaciosamente para onde até mesmo Jornada nas estrelas teme seguir – se os maus sonhos permitirem. [...]
A coisa mais óbvia sobre o espaço é que ele continua e continua e continua. Isso tem sido confirmado por modernos instrumentos, como o telescópio Hubble, que nos permite sondar profundamente o espaço. O que vemos são bilhões e bilhões de galáxias de várias formas e tamanhos. Cada galáxia possui incontáveis bilhões de estrelas, muitas com planetas à sua volta. Vivemos em um planeta que orbita uma estrela em um braço externo na galáxia espiral Via Láctea. [...]
Embora o universo pareça ser quase igual em cada posição do espaço, ele está definitivamente mudando no tempo. Isso foi percebido no início do século 20. Até então, pensava-se que o universo fosse essencialmente constante no tempo. Ele poderia ter existido por um tempo infinito, mas isso parecia levar a conclusões absurdas. Se as estrelas viessem irradiando por um tempo infinito, teriam aquecido o universo às suas temperaturas. Mesmo à noite, o céu inteiro seria tão brilhante quanto o Sol, porque toda linha de visão terminaria em uma estrela ou em uma nuvem de poeira que teria sido aquecida até que ficasse tão quente quanto as estrelas.
A observação que todos fazemos, de que o céu à noite é escuro, é muito importante. Isso significa que o universo não pode ter sempre existido no estado que vemos atualmente. Algo deve ter acontecido no passado para fazer as estrelas se acenderem a um tempo finito, o que significa que a luz de estrelas muito distantes ainda não teve tempo de nos alcançar. Isso explicaria porque o céu noturno não brilha em todas as direções. [...] Fonte: Hawking, S. 2002. O universo numa casca de noz, 2a edição. São Paulo, Mandarim.
Onde você quer ir meu bem? Diga logo pra eu ir também Você quer pegar aquele trem? É naquele trem que eu vou também É pra Ponta-Porã? Cunhataiporã chero rai rô É pra Corumbá? É lá que eu vou pegar um barco E descer o rio Paraguai Cantando as canções que não se ouvem mais Fonte: álbum Pássaros na garganta (1982), de Tetê Espíndola.