A história da humanidade se confunde com a história das guerras. Deveríamos lutar para que se confundisse apenas com a história da literatura.
30 setembro 2007
Em defesa de um matemático
G. H. Hardy
10. O matemático, como o pintor ou o poeta, é um desenhista. Se os seus desenhos são mais duradouros que os deles, é porque são feitos com idéias. O pintor desenha com formas e cores, o poeta com palavras. [...]
Os desenhos do matemático, como os do pintor ou do poeta, devem ser belos; as idéias, como as cores ou as palavras, precisam entreligar-se de maneira harmoniosa. [...]
Seria difícil encontrar um homem instruído que fosse totalmente insensível aos atrativos estéticos da matemática. Pode ser muito difícil definir a beleza matemática, mas isso vale igualmente para a beleza de qualquer tipo – podemos não saber muito bem o que é um belo poema, mas isso não nos impede de reconhecer um quando o lemos. [...]
O fato é que existem poucas matérias mais “populares” que a matemática. A maioria das pessoas entende um pouco de matemática, assim como a maioria das pessoas consegue apreciar uma melodia agradável; e provavelmente existem mais pessoas interessadas em matemática do que em música. As aparências podem dar a entender o contrário, mas é fácil explicar isso. A música pode ser usada para estimular as emoções das massas, ao passo que a matemática não, e a incapacidade musical é tida (sem dúvida com razão) como uma imperfeição leve, ao passo que a maioria das pessoas tem tanto medo do nome da matemática que está sempre pronta, sem falsa modéstia, a exagerar a sua própria burrice matemática.
Um pouquinho de reflexão é suficiente para por a nu o absurdo da “superstição literária”. Há uma quantidade enorme de enxadristas em todos os países civilizados – na Rússia, quase toda a população instruída –, e todo jogador de xadrez consegue reconhecer e apreciar um jogo ou problema “bonito”. Não obstante, um problema de xadrez é simplesmente um exercício de matemática pura (não é esse o caso do jogo, já que a psicologia também desempenha nele o seu papel), e todos que consideram “bonito” um problema estão aplaudindo-lhe a beleza matemática, mesmo que seja uma beleza de espécie relativamente inferior. Os problemas de xadrez são as cantigas de roda da matemática.
A mesma coisa nos fica patente – num nível mais baixo, mas que envolve um público mais amplo – no caso do bridge, ou, descendo ainda mais, no das colunas de enigmas dos jornais populares. A imensa popularidade desses enigmas é, em sua imensa maior parte, um tributo aos atrativos da matemática elementar, e os melhores criadores de enigmas, como Dudeney ou “Caliban”, usam pouco mais que isso. Eles conhecem o seu negócio; o que o público quer é um pouco de estímulo intelectual, e nada produz um efeito tão estimulante quanto o da matemática. [...] Fonte: Hardy, G. H. 2000 [1940]. Em defesa de um matemático. SP, Martins Fontes.
Tarde da noite, a tempestade me acorda. Retorno de alguma dimensão perdida de meu próprio ser. A alma parece um corredor onde passos hesitantes ressoam. Impossível voltar a dormir. Na trama de meu mundo interior me lacero em arestas de antigos dilemas. Nesta terra infirma em vão me interrogo: ... e a mudança de coração, a esquina que necessita ser virada, a vida que tem de ser perdida para ser reencontrada? ... e a dureza inata, a rigidez que precisa ceder para que se possa passar pelo olho da agulha?
O vento amainou. Fecho os olhos e sem desesperar continuo procurando nos recessos de meu coração, a senda que poderá me levar à liberação de mim mesmo. Fonte: Penido, E. 2001. Sombras e distâncias. SP, Ateliê Editorial.
Raras centelhas no espaço escuro átimos de efêmeras paixões de desordenadas visões. É esta a nossa vida; o resto é sono, o sono sem fim que foi, o sono sem fim que será, misterioso imenso negro fantasma que mente humana não pode compreender ainda quando mudado em devastadora tormenta penetra e sacode o nosso espírito atraindo-lhe centelhas raras no espaço escuro. Fonte: Cappelletti, M. 1994. Centelhas. RJ, Nova Fronteira.
Por milagre, a flor mais suave, não a colheram os ventos. Ficou na haste toda a noite, trêmula e alta sob a chuva.
Quando foi de madrugada, o jardim pasmou: suas corolas jaziam sobre a terra umedecida; uma entretanto, a mais suave, sustinha-se contra a aragem.
As outras flores por terra, dálias, papoulas, crisântemos, – ruivas cabeças – plasmavam seus espasmos derradeiros: mártires decapitados, magdalas em desespero.
Nas fúrias espirituais e nas ardências do sangue dir-se-ia que estavam vivas. Entretanto a flor mais suave, como que ausente do mundo na sua pureza lívida, era um pequeno cadáver que todo o jardim chorava. Fonte: Lisboa, H. 2001. Melhores poemas. SP, Global. Poema originalmente publicado em 1941.
Transliterar significar transcrever um texto adotando um sistema alfabético diferente do original. A transliteração não pretende interpretar foneticamente um texto, mas reproduzir o original letra por letra de modo que seja possível a qualquer um reconstituir o texto em sua grafia primitiva, mesmo conhecendo apenas os dois alfabetos.
Recorre-se à transliteração para a maioria dos nomes históricos e geográficos, como também apara as palavras que não possuem correspondência em nossa língua.
Os sinais diacríticos são sinais que se acrescentam às letras normais do alfabeto para dar-lhes um particular valor fonético. São, pois, sinais diacríticos os nossos acentos comuns (por exemplo, o acento agudo ‘´’ dá ao ‘e’ final da palavra ‘pé’ uma pronúncia aberta), bem como a cedilha, o til e também o trema alemão de ‘ü’ e os sinais menos conhecidos de outros alfabetos: ‘ĕ’ russo, ‘ø’ dinamarquês, ‘ł’ polonês etc.
Numa tese que não seja de literatura polonesa, você poderá, por exemplo, eliminar a barra do ‘ł’: ao invés de escrever ‘Łodz’, escreverá ‘Lodz’, como fazem os jornais. Mas, para as línguas latinas, as exigências costumam ser maiores. Vejamos alguns casos.
Respeitamos, em qualquer livro, o uso de todos os sinais particulares do alfabeto francês. Eles possuem todos um tecla correspondente para as minúsculas, nas máquinas de escrever comuns. Para as maiúsculas, escrevemos Ça ira, mas Ecole, não École, A la reserche, não À la reserche..., porque, em francês, mesmo em tipografia, não se acentuam as maiúsculas.
Respeitamos sempre, quer para as minúsculas quer para as maiúsculas, o uso dos três sinais particulares do alfabeto alemão: ä, ö, ü. E escrevemos sempre ü, não ue (Führer, não Fuehrer).
Respeitamos, em qualquer livro, tanto para as minúsculas como para as maiúsculas, o uso dos sinais particulares do alfabeto espanhol: as vogais com acento agudo e o n com til: ñ.
Quanto às outras línguas, é preciso decidir caso por caso, e, como sempre, a solução será diferente conforme se cite uma palavra isolada ou se faça a tese sobre essa língua específica. [...] Fonte: Eco, U. 1996 [1977]. Como se faz uma tese, 14ª edição. SP, Perspectiva.
Vago, secreto, alheio e disfarçado No conforme cortejo da cidade, Dobro esquinas e paro separado, À espera de mim mesmo ou da metade Que ficou sem saber do outro lado.
Ponho letras bastardas a deslado Das palavras cruzadas do jornal, Dou um grito de aviso, arrepiado, Contra a luz encarnada do sinal E piso, como brasa, o chão molhado.
Fica atrás o meu fato amarrotado, A sangrar das costuras esgarçadas, Acode o alfaiate convocado, Enquanto vou pensando gargalhadas, Vivo, secreto, alheio e disfarçado. Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1966.
Havia o tempo guardado Entre os livros escolhidos, E a erudição do silêncio Desmotivando aos acasos.
Havia a pontualidade Fixando o escolher das datas De viagens acontecidas, E solidão compensada.
Nem o querer se iludia Com afeições e lembranças Que a recompensa guardara Pelo muito de se ter.
Nem os quadros questionavam O espelho, que refletia O ser ausente da vida, Artifício de passagem.
Apenas, o estar consciente Da emoção que se vigia, Do pensar que se angustia, Do partir que não se ausenta. Fonte: Guimarães, C. 1997. Lembranças de esquecer. SP, Ateliê Editorial.
É tarde. O estacionamento embaixo está quase vazio. As luzes são raras; e a torre Eiffel em miniatura ao fundo, equivalente no sentido oposto das “japonarias” do século 19 na Europa, tem apenas uma pontinha vermelha no topo.
Neste quarto banal, sem ligação com o passado e o futuro (onde por isso somos mais nós mesmos), no meio de um dia ou de uma noite qualquer, esse milagre que bruscamente se realiza, essa graça que por vezes desce: não um instante de felicidade, porque a felicidade não se conta em instantes, mas a súbita consciência de que a felicidade nos habita. Os objetos que compõem a vida regular de repente numa outra ordem voltam para nós sua face ensolarada. Enlevo do espírito e dos sentidos (Baudelaire não se enganou), levitação em que a alma flutua como sobre uma nuvem de ouro. Assim, no avião, as nuvens medonhas sob as quais a terra sufoca transformam-se a nossos pés em cintilantes geleiras brancas e azuis. Pura felicidade que em outros momentos poderia ser igualmente pura infelicidade. Bastaria que os mesmos elementos voltassem para nós sua face sombria. Nos dois casos, há plenitude, mas a da felicidade é solar.
A torre Eiffel autêntica e seu símile em Tóquio não passam de um cenário sob o qual o caos subsiste. Mas a felicidade, se sobrevém, dá por breve tempo um sentido às coisas: pelo menos uma parcela se sente liberta, salva. Na infelicidade, tanto quanto é possível, a coragem faz as vezes do sol. Fonte: Yourcenar, M. 1992. A volta da prisão. RJ, Nova Fronteira.
Adeus, cimos e vales e veredas, e bosques e clareiras e campinas soltas ao vento, sacudindo as crinas das espigas de sol na luz de seda.
Adeus, troncos e copas e alamedas, esmeraldas selvagens que as neblinas salpicavam de prata, adeus, colinas que iam subindo como labaredas
de cobalto no ar... Adeus, beleza irrepetível, que me viu nascer e toca-me deixar: a natureza
também é feita de deixar de ser, e eu levo agora a sombra e deixo a presa à luz do provisório amanhecer. Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1995.
No meio do expediente de ontem, segunda-feira, o Poesia contra a guerra superou a marca das quinze mil visitas. Do balanço anterior – ver “Dez mil visitas”, em 4/7 – até ontem (17/9) ocorreram em média cerca de 65,8 visitas/dia. Ontem, coincidentemente, foi alcançado também um novo recorde positivo de visitantes únicos em um só dia: 138.
Acredito que Salieri deve ter reagido a Mozart do modo que a maioria dos artistas o faz – com espanto, humildade, inveja e, finalmente, com gratidão. Pois, ao fim, a fonte da criação é acessível a todos nós, e aqueles que são abençoados pelo gênio são apenas mensageiros que trazem boas novas a um mundo escuro e por vezes insuportável. Fonte: Solman, J. 1991. Mozartiana: dois séculos de notas, citações e anedotas sobre Wolfgang Amadeus Mozart. RJ, Nova Fronteira.
Vinte Anos Depois é um romance de Alexandre Dumas duas décadas não são nada é a média de vida do homem primitivo do escravo romano é a idade de um cão muito muito velho é a média de glória de um artista maior o tempo sem celulite de uma cortesã o lapso de procriação depois do casamento quatro ou cinco mandatos políticos o auge de um Império vinte anos levou a Constantino reformar Bizâncio vinte anos fizeram a fortuna de Frick Morgan e Du Pont vinte anos entre a apresentação no Templo e a crucificação vinte anos é a matéria dos memorialistas vinte anos e o povo se cansa da Revolução vinte anos depois Odette está casada e Marcel morto a roda o computador pessoal a moda das perucas brancas se popularizaram em não mais de vinte anos Quéfren e Miquerinos construíram suas pirâmides em vinte curtos anos vinte anos depois o cadáver está frio olvidadíssimo vinte anos de exercício e o êxtase desce ao asceta nada nada são duas décadas vinte vezes nada a ponte nova entre aqui e ali está congestionada hoje a então chamada ponte do futuro já não serve mais agora quando estás nela também estás aqui tinhas o cabelo solto tinhas a rédea solta soltas tinhas as palavras há vinte anos entre aqui e ali Fonte: Costa, H. SP. 1999. Quadragésimo. SP, Ateliê Editorial.
Enterrado, vivo Em um infinito Dédalo de espelhos E me ouço, me sigo, Me busco no liso Muro do silêncio.
Porém não me encontro.
Olho, escuto, apalpo. Por todos os ecos O meu próprio acento Está pretendendo Chegar-me ao ouvido...
Porém não o advirto.
Alguém está preso Aqui neste frio, Lúcido recinto, Dédalo de espelhos... Alguém que eu imito. Se parte, me afasto; Se torna, regresso; E se dorme, sonho... – “És tu?” eu me digo.
Porém não respondo.
Cercado, ferido Pelo mesmo acento – Meu? Não sei dizê-lo – Contra o eco mesmo Da mesma lembrança, Eu nesta lembrança, Eu neste infinito Dédalo de espelhos Enterrado vivo. Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1937.
Ontem, quarta-feira (12/9), o Poesia contra a guerra completou onze meses no ar.
Desde o balanço mensal anterior, “Dez meses no ar”, foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Aguinaldo Gonçalves, Alfred W. Crosby, Alvarenga Peixoto, Betty Thatcher, Camilo Pessanha, Carlos Fiolhais, Cora Coralina, Douglas Messerli, Geraldo Falcão, Gerard Manley Hopkins, João Carlos Teixeira Gomes, José Nêumanne, Mário Chamie, Omar Ibsen Ibrahim El-Khaiami, Peter Ward, Victor Hugo e Vimala Devi. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Eugène Boudin, Johannes Vermeer, Joshua Reynolds e Paul Gauguin.
Desde o tempo de Galileu e Newton, que o Sistema Solar tem sido considerado um sistema ordenado, um sistema obediente às leis da física que vêem encarrapachadas nos livros. Todo o comportamento, tanto de maçãs e luas como de planetas e estrelas, pode ser explicado invocando a lei da gravitação universal de Newton, segundo a qual a força entre dois corpos celestes varia proporcionalmente ao inverso do quadrado da distância, e a segunda lei de Newton, que diz que um corpo responde a uma força mudando a sua velocidade.
No século 18, século das luzes, julgava-se que já se tinha feito totalmente luz sobre o Sistema Solar. O rei francês Luís 15, sucessor do Rei-Sol Luís 14, e antecessor do guilhotinado Luís 16, mandou construir no Palácio de Versalhes uma nova ala e no meio dela mandou colocar um mecanismo de relógio muito sofisticado. Esse relógio reproduzia bastante bem o movimento dos vários planetas conhecidos na altura em torno de um sol central e majestático. Incluía também algumas luas a girar pacatamente em torno dos respectivos planetas. O Sol impunha a ordem à sua volta, tal como o rei, afinal, impunha a ordem em França (ou, pelo menos, procurava impor; o reinado de Luís 15 foi um tanto ou quanto atribulado). O planetário do rei ia girando devagar, no palácio, numa imitação que se pretendia perfeita do movimento do mundo.
Fonte: Fiolhais, C. 1994. Física divertida, 4a edição. Lisboa, Gradiva.
De cuando en cuando soy feliz!, opiné delante de un sábio que me examinó sin pasión y me demonstró mis errores.
Tal vez no había salvación para mis dientes averiados, uno por uno se extraviaron los pelos de mi cabellera: mejor era no discutir sobre mi tráquea cavernosa: en cuanto al cauce coronário estaba lleno de advertencias como el hígado tenebroso que no me servia de escudo o este riñón conspirativo. Y con mi próstata melancólica y los caprichos de mi uretra me conducían sin apuro a un analítico final.
Mirando frente a frente al sábio sin decidirme a sucumbir le mostré que podía ver, palpar, oír y padecer en otra ocasión favorable. Y que me dejara el placer de ser amado y de querer: me buscaría algún amor por un mes o por una semana o por un penúltimo día.
El hombre sabio y desdeñoso me miró con la indiferencia de los camellos por la luna y decidió orgullosamente olvidarse de mi organismo.
Desde entonces no estoy seguro de si yo debo obedecer a su decreto de morirme o si debo sentirme bien como mi cuerpo me aconseja.
Y en esta duda yo no sé si dedicarme a meditar o alimentarme de claveles. Fonte: Neruda, P. 2007 [2004]. O coração amarelo. Porto Alegre, L&PM.
5. a máquina roçando a nuca poros amarelos e a poeira entrando nos olhos doloridos
6. nestas águas claras o poço mais profundo tem posse de um tesouro
7. rio manso corre para o mar bravio
8. peixes nadam peixes andam entre águas
9. mesmo que todo o calçamento esteja solto procurarei os pontos certos e chegarei ao porto sem vento Fonte: Gonçalves, A. 2000. Vermelho. SP, Ateliê Editorial. O título completo da obra seria “O périplo do imemorial (em nove movimentos)”.
Me colaram no tempo, me puseram uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo, a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação. Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluído, depois chego à consciência da terra, ando como os outros, me pregam numa cruz, numa única vida. Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia. Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos. Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado, gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar, alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem nem o mal. Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter, tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos, não acredito em nenhuma técnica. Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas, é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários, depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas, na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações... Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida. Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça. Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando, presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção o mundo vai mudar a cara, a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.
Andarei no ar. Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias, me aninharei nos recantos do corpo da noiva, na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários. Tudo transparecerá: vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra, o vento que vem da eternidade suspenderá os passos, dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres, vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar, me insinuarei nos quatro cantos do mundo.
Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes. Detesto os que se tapeiam, os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”... Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas, os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães, as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos. Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito... viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente. Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados, dos amores raros que tive, vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor, tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria, estou no ar, na alma dos criminosos, dos amantes desesperados, no meu quarto modesto da praia de Botafogo, no pensamento dos homens que movem o mundo, nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando, sempre em transformação. Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema originalmente publicado em 1930.
A dor, forte e imprevista, Ferindo-me, imprevista, De branca e de imprevista Foi um deslumbramento, Que me endoidou a vista, Fez-me perder a vista, Fez-me fugir a vista, Num doce esvaimento.
Como um deserto imenso, Branco deserto imenso, Resplandecente e imenso, Fez-se em redor de mim. Todo o meu ser suspenso, Não sinto já, não penso, Pairo na luz, suspenso... Que delícia sem fim!
Na inundação da luz Banhando os céus a flux, No êxtase da luz, Vejo passar, desfila (Seus pobres corpos nus Que a distancia reduz, Amesquinha e reduz No fundo da pupila).
Na areia imensa e plana Ao longe, a caravana Sem fim, a caravana Na linha do horizonte, Da enorme dor humana, Da insigne dor humana... A inútil dor humana! Marcha, curvada a fronte.
Até ao chão, curvados, Exaustos e curvados, Vão um a um, curvados, Os seus magros perfis; Escravos condenados, No poente recortados, Em negro recortados, Magros, mesquinhos, vis.
A cada golpe tremem Os que de medo tremem, E as pálpebras me tremem, Quando o açoite vibra. Estala! e apenas gemem, Pavidamente gemem, A cada golpe gemem, Que os desequilibra.
Sob o açoite caem, A cada golpe caem, Erguem-se logo. Caem, Soergue-os o terror... Até que enfim desmaiem! Por uma vez desmaiem! Ei-los que enfim se esvaem, Vencida, enfim, a dor...
E ali fiquem serenos, De costas e serenos... Beije-os a luz, serenos, Nas amplas frontes calmas. Ó céus claros e amenos, Doces jardins amenos, Onde se sofre menos, Onde dormem as almas!
A dor, deserto imenso, Branco deserto imenso, Resplandecente e imenso, Foi um deslumbramento. Todo o meu ser suspenso, Não sinto já, não penso, Pairo na luz, suspenso Num doce esvaimento.
Ó Morte, vem depressa, Acorda, vem depressa, Acode-me depressa, Vem-me enxugar o suor, Que o estertor começa. É cumprir a promessa. Já o sonho começa... Tudo vermelho em flor... Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1920.
Quando menino nunca amei leões. Preferi os animais mais delicados. Por patos mansos e por camaleões meu zôo infantil era habitado.
Tive um cão que foi predestinado: por sua amada se perdeu em fuga. E um gafanhoto místico e alado que pulava mais alto que uma pulga.
Amei abelhas, lagartos, formigões e galos magros de expelir auroras. Fiéis amigos que se foram embora!
Todos eles me encheram de lições de ternura que, homem, desaprendi... De leões só vim saber quando cresci. Fonte: Gomes, J. C. T. 1988. A esfinge contemplada. RJ, Nova Fronteira.
Há 200 milhões de anos, quando os dinossauros ainda perambulavam por aí, todos os continentes estavam juntos, num supercontinente a que os geólogos deram o nome de Pangéia. Ele se estendia por dezenas de graus de latitude, e por isso podemos inferir que apresentava algumas variações de clima. Nessa massa única de terra não havia grande variedade de formas de vida. [...]
Há uns 180 milhões de anos, a Pangéia começou a rachar e a romper-se, como algum imenso iceberg plano que começasse a derreter no calor da corrente do Golfo. Primeiro, ele se dividiu em dois grandes continentes e, em seguida, em massas menores, que se tornaram, com o tempo, os continentes que conhecemos. [...] [E]m linhas gerais, a Pangéia rompeu-se ao longo de linhas de intensa atividade sísmica, que mais tarde se converteram em cordilheiras submersas. A mais investigada dessas cordilheiras é a do Meio-Atlântico, que ferve e borbulha do mar da Groenlândia ao monte submarino Spiess, a vinte graus de latitude e vinte graus de longitude a sudoeste da Cidade do Cabo, na África do Sul. Dessa e de outras antigas cordilheiras submersas verteu (e, em alguns casos, ainda verte) a lava que construiu o novo fundo dos oceano, arrastando os continentes, de um lado e outro de determinada cordilheira, para cada vez mais longe uns dos outros. Fonte: Crosby, A. W. 1993. Imperialismo ecológico. SP, Companhia das Letras.
Eu não lastimo o próximo perigo, uma escura prisão, estreita e forte; lastimo os caros filhos, a consorte, a perda irreparável de um amigo.
A prisão não lastimo, outra vez digo, nem o ver iminente o duro corte; que é ventura também achar a morte, quando a vida só serve de castigo.
Ah, quem já bem depressa acabar vira este enredo, este sonho, esta quimera, que passa por verdade e é mentira!
Se filhos, se consorte não tivera, e do amigo as virtudes possuíra, um momento de vida eu não quisera. Fonte: Peixoto, A. 2002. Melhores poemas. SP, Global.
Não me fales com essa tua voz de silêncio De torturar os mortos, Tu que escalaste a montanha inacessível Da minha alma...
Porque não choras, não gritas, E olhas com esse teu rosto azul A lua do teu coval Como um esqueleto descarnado de ideais, Se és testemunha e não vítima Desta humanidade incolor? Porque não ergues o estandarte triunfal Dos “excluídos para sempre”?
Oh, não me fales da putrefacção, Nem da extinção da tua existência impoluta, Se não me prometeres que vais ser o Sol Verde Tingindo os Outonos de cabelos amarelos! Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura.