Se tantas vezes te importuno, ó Deus meu vizinho, batendo forte à tua porta na noite extensa, é porque te ouço respirar, da tua presença sei: estás na sala, sozinho. Se de algo precisares, não há ninguém ali que possa te trazer um gole d’água sequer. Vivo sempre à escuta. Dá-me um sinal qualquer. Estou bem perto de ti.
Entre nós há apenas um muro, coisa pouca, por mero acaso aliás; bem pode ser que um grito da tua ou minha boca – e eis que se desfaz sem só rumor ou ruído.
Com imagens tuas o muro foi construído.
Diante de ti tuas imagens são como nomes. E quando um dia dentro de mim esteja acesa a luz com que te conhece minha profundeza, será, nas molduras, brilho que se esbanja e some.
E os meus sentidos, que um torpor célere consome, estão sem pátria, exilados da tua grandeza. Fonte: Rilke, R. M. 1993. Poemas. SP, Companhia das Letras. Poema originalmente publicado em 1899.
[...] Não temos o direito de mentir a nós mesmos. A melhoria das condições humanas atuais, constrangedoras e desesperadoras, não pode ser imaginada como possível sem terríveis conflitos. Porque o pequeno número de pessoas decididas aos meios radicais pesa pouco diante da massa dos hesitantes e dos recuperados [récupéré]. E o poder das pessoas diretamente interessadas na manutenção da máquina da guerra continua considerável. Não recuarão diante de nenhum processo para obrigar a opinião pública a se dobrar diante de suas exigências criminosas.
Segundo todas as aparências, os estadistas atualmente no poder têm por objetivo estabelecer de modo duradouro uma paz sólida. Mas o incessante aumento das armas prova claramente que estes estadistas não têm peso diante das potências criminosas que só querem preparar a guerra. Continuo inabalável neste ponto: a solução está no povo, somente no povo. Se os povos quiserem escapar da escravidão abjeta do serviço militar, têm de se pronunciar categoricamente pelo desarmamento geral. Enquanto existirem exércitos, cada conflito delicado se arrisca a levar à guerra. Um pacifismo que só ataque as políticas de armas dos Estados é impotente e permanece impotente.
Que os povos compreendam! Que se manifeste sua consciência! Assim galgaríamos nova etapa no progresso dos povos entre si e nos recordaríamos do quanto a guerra foi a incompreensível loucura de nossos antepassados! Fonte: Einstein, A. 1981 [1953]. Como vejo o mundo. RJ, Nova Fronteira.
1. Ao pôr do sol, pela tristeza Da meia-luz crepuscular, Tem a toada de uma reza A voz do mar.
Aumenta, alastra e desce pelas Rampas dos morros, pouco a pouco, O ermo de sombra, vago e oco, Do céu sem sol e sem estrelas.
Tudo amortece; a tudo invade Uma fadiga, um desconforto... Como a infeliz serenidade Do embaciado olhar de um morto.
Domada então por um instante Da singular melancolia De em torno – apenas balbucia A voz piedosa do gigante.
Toda se abranda a vaga hirsuta, Toda se humilha, a murmurar... Que pede ao céu que não a escuta A voz do mar?
2. Estranha voz, estranha prece Aquela prece e aquela voz, Cuja humildade nem parece Provir do mar bruto e feroz;
Do mar, pagão criado às soltas Na solidão, e cuja vida Corre, agitada e desabrida, Em turbilhões de ondas revoltas;
Cuja ternura assustadora Agride a tudo que ama e quer, E vai, nas praias onde estoura, Tanto beijar como morder...
Torvo gigante repelido Numa paixão lasciva e louca, É todo fúria: em sua boca Blasfema a dor, mora o rugido.
Sonha a nudez: brutal e impuro, Branco de espuma, ébrio de amor, Tenta despir o seio duro E virginal da terra em flor.
Debalde a terra em flor, com o fito De lhe escapar, se esconde – e anseia Atrás de cômoros de areia E de penhascos de granito:
No encalço dessa esquiva amante Que se lhe furta, segue o mar; Segue, e as maretas solta adiante Como matilha, a farejar.
E, achado o rastro, vai com as suas Ondas e a sua espumarada Lamber, na terra devastada, Barrancos nus e rochas nuas...
3. Mais formidável se revela, E mais ameaça, e mais assombra A uivar, a uivar, dentro da sombra Nas fundas noites de procela.
Tremendo e próximo se escuta Varrendo a noite, enchendo o ar, Como o fragor de uma disputa Entre o tufão, o céu e o mar.
Em cada ríspida rajada O vento agride o mar sanhudo: Roça-lhe a face, com o agudo Sibilo de uma chicotada.
De entre a celeuma, um estampido Avulta e estoura, alto e maior, Quando, tirano enfurecido, Troveja o céu ameaçador.
De quando em quando, um tênue risco De chama vem, da sombra em meio... E o mar recebe em pleno seio A cutilada de um corisco.
Mas a batalha é sua, vence-a: Cansa-se o vento, afrouxa... e assim Como uma vaga sonolência O luar invade o céu sem fim...
Donas do campo, as ondas rugem; E o monstro impando de ousadia, Pragueja, insulta, desafia O céu, cuspindo-lhe a salsugem.
4. A alma raivosa e libertina Desse tenaz batalhador Que faz do escombro e da ruína Como os troféus do seu amor;
A alma rebelde e mal composta Desse pagão e desse ateu Que retalia e dá resposta À mesma cólera do céu;
A alma arrogante, a alma bravia Do mar, que vive a combater, Comove-se à melancolia Conventual do entardecer...
No seu clamor esmorecido Vibra, indistinta e espiritual, Alguma coisa do gemido De um órgão numa catedral.
E pelas praias aonde descem Do firmamento – a sombra e a paz; E pelas várzeas que emudecem Com os derradeiros sabiás;
Ouvem os ermos espantados Do mar contrito no clamor A confidência dos pecados Daquele eterno pecador.
Escutem bem... Quando entardece, Na meia-luz crepuscular Tem a toada de uma prece A voz tristíssima do mar... Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1908.
Aproveito a tua neutralidade, o teu rosto oval, a tua beleza clara, para enviar notícias do bloqueio aos que no continente esperam ansiosos.
Tu lhes dirás do coração o que sofremos nos dias que embranquecem os cabelos... Tu lhes dirás a comoção e as palavras que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.
Tu lhes dirás o nosso ódio construído, sustentando a defesa à nossa volta – único acolchoado para a noite florescida de fome e de tristezas.
Tua neutralidade passará por sobre a barreira alfandegária e a tua mala levará fotografias, um mapa, duas cartas, uma lágrima...
Dirás como trabalhamos em silêncio, como comemos silêncio, bebemos silêncio, nadamos e morremos feridos do silêncio duro e violento.
Vai pois e noticia com um archote aos que encontrares de fora das muralhas o mundo em que nos vemos, poesia massacrada e medos à ilharga.
Vai pois e conta nos jornais diários ou escreve com ácido nas paredes o que viste, o que sabes, o que eu disse entre dois bombardeamentos já esperados.
Mas diz-lhes que se mantém indevassável o segredo das torres que nos erguem, e suspensa delas uma flor em lume grita o seu nome incandescente e puro.
Diz-lhes que se resiste na cidade desfigurada por feridas de granadas e enquanto a água e os viveres escasseiam, aumenta a raiva e a esperança reproduz-se. Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1953.
Uma das imagens mais comuns dos tempos modernos é a de uma pessoa sendo atacada e gritando por socorro no centro de uma cidade grande e impessoal, sem que seus gritos sejam ouvidos e sem que os transeuntes façam qualquer coisa além de continuar cuidando da própria vida. Esta apatia aparente tem sido citada como uma evidência das atitudes desumanizadoras e egoístas que as cidades modernas produzem na maioria dos seus habitantes.
Alguns incidentes ocorridos na vida real parecem confirmar esse quadro sombrio. Um exemplo famoso foi o caso de Kitty Genovese, esfaqueada até morrer na área de Queens, em Nova York, quando voltava do trabalho às três horas da manha. Isto, apesar das 38 testemunhas que não só viram, mas assistiram ao crime das janelas dos seus apartamentos, sem que nenhuma delas tentasse interferir. Apenas uma pessoa tomou a atitude relativamente comedida de chamar a polícia; e mesmo assim depois de ter procurado a orientação de um amigo em outra área da cidade. [...]
John Darley e Bibb Latané ficaram intrigados com o caso de Kitty Genovese e apresentaram uma razão bastante inventiva para a aparente apatia dos espectadores. Eles mostraram que embora seja sensato supor que quanto maior for o número de pessoas a testemunhar um incidente, maior será a probabilidade da vítima receber assistência, no caso de Kitty Genovese ficou demonstrado, de maneira chocante, que isto não é verdade. Com tantas testemunhas do assassinato, alguém não deveria ter ido ao encontro da jovem?
Darley e Latané argumentam que, por mais paradoxal que isto possa parecer, uma vítima pode estar numa situação muito melhor se houver um único espectador do que vários, pois a responsabilidade de socorrer a vítima recai mais sobre os ombros de uma pessoa do que de muitas. Em outras palavras, quando existem muitas testemunhas de um crime ou de uma emergência, ocorre uma difusão de responsabilidade. Além disso, qualquer culpa potencial por ter deixado de ajudar é distribuída por muitas pessoas, não recaindo sobre uma única testemunha. [...] Fonte: Eysenck, H. & Eysenck, M. s/d [1981] Comportamento. SP, Círculo do Livro.
Posso imaginar, em algum outro mundo De silêncio primevo, muito remoto Naquela sua imobilidade terrível, apenas arfando e zumbindo, Colibris a precipitar-se pelas avenidas.
Antes que alguma coisa tivesse alma, Enquanto a vida era uma onda de matéria, meio inanimada, Essa pequena lasca de brilho Saiu a zunir pelas hastes lentas, imensas, suculentas.
Acredito que não havia flores então, No mundo em que o colibri cintilava à frente da criação. Acredito que ele furava as lentas veias das plantas com seu longo bico.
Era provavelmente grande Como o musgo e os pequenos lagartos, dizem, eram outrora grandes. Era provavelmente um monstro aterrorizador, apunhalador. Nós o vemos pelo lado errado do telescópio do Tempo, Felizmente para nós. Fonte: Dawkins, R. 2000. Desvendando o arco-íris. SP, Companhia das Letras. Poema originalmente publicado em 1923.
Like the dust that settles all around me, I must find a new home. The ways and holes that used to give me shelter, Are all as one to me now. But I, I would search everywhere Just to hear your call, And walk upon stranger roads than this one In a world I used to know before. I miss you more.
Than the sun reflecting off my pillow, Bringing the warmth of new life. And the sounds that echoed all around me, I caught a glimpse of in the night. But now, now I’ve lost everything, I give to you my soul. The meaning of all that I believed before Escapes me in this world of none, no thing, no one.
And I would search everywhere Just to hear your call, And walk upon stranger roads than this one In a world I used to know before. For now I’ve lost everything, I give to you my soul. The meaning of all that I believed before Escapes me in this world of none, I miss you more. Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Wind & Wuthering (1976), do Genesis.
[...] Conselhos, geralmente, não adiantam. As pessoas sempre acham que nada de ruim vai lhes acontecer. Mas, muitas das vezes, acontece.
Anunciada, como dizem ser toda mulher, era curiosa. Um dia, deixou o medo de lado, largou os livros na canoa e se aproximou, cautelosamente, da sinistra casa. O primeiro cuidado que ela teve foi se benzer. Após certificar-se de que o casebre, cheio de teias de aranha, estava vazio, murmurou uma prece especial que a mãe lhe ensinara e deu uma volta na chave enferrujada, que estava do lado de fora da porta carcomida pelos cupins.
A oração e a volta na chave, conforme os entendidos, a protegeriam das bruxarias e fariam com que a Matintaperera, se ela existisse de verdade, retornasse à forma humana. [...] Fonte: Barbosa, R. 2005. Contos de encantos, seduções e outros quebrantos. RJ, Bertrand.
Heroína. Não conheci sua guerra as lendas e os hinos frios levados de boca em boca na velocidade funil das ruas. Não provei o doce-amargo de sua conquista e posse da delícia de afrouxar todos os laços logo após a hora H do encontro e ouvir sem armas as árias estáticas e virtuais de suas vitórias e aporias imóveis. Nem vi sua bandeira pintada no céu sem vento podendo, chegada a paz perder as cores e morrer sem medo rasgada como uma rosa clássica que se declina em latim pétala a pétala. Penso então no pensamento parado de suas estátuas que contemplam e completam com a poesia do intervalo as próprias ruínas abandonadas num eterno domingo. E apenas escrevo seu nome e atuação neste livro de ocorrências, heroína. Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema originalmente publicado em 1988.
Quero morrer ao declinar do dia. Em alto-mar, quando vem vindo a treva; Lá me parecerá sonho a agonia, E a alma uma ave que nos céus se eleva.
Não ouvir nos meus últimos instantes, A sós com o mar e o céu, humanas mágoas, Nem mais vozes e preces soluçantes, Senão o grave retumbar das águas.
Morrer quando, ao crepúsculo, retira A luz as áureas redes da onda verde, E ser como esse sol que lento expira: Algo de luminoso que se perde.
Morrer, e antes que o tempo me destrua Da mocidade a esplêndida coroa; Quando inda a vida ouço dizer: sou tua. Saiba eu embora que nos atraiçoa. Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira.
A grande muralha da China estava terminada no seu extremo norte. De sueste a sudoeste subia em duas secções, que acabavam por se unir ali. Este princípio da construção parcial era também aplicado numa escala de menor dimensão pelos dois grandes exércitos de trabalhadores, o de leste e o de oeste. Era feito do seguinte modo: formavam-se grupos de uns vinte trabalhadores, que tinham de realizar uma extensão, digamos, de uma quinhentas jardas de muralha, enquanto um grupo semelhante construía uma faixa do mesmo comprimento, para se encontrar com a primeira. Mas, depois de se encontrarem, não se continuava a partir do ponto onde terminavam estas mil jardas; em vez disso, os dois grupos de trabalhadores eram transferidos para paragens bastante diferentes, para recomeçarem a construir aí. Naturalmente que com este sistema foram sendo deixadas muitas brechas grandes, que só eram preenchidas gradualmente e pouco a pouco, algumas até, na verdade, só depois de se ter dado por terminada oficialmente a construção da muralha. Com efeito, conta-se que existem lacunas que nunca foram sequer preenchidas, uma afirmação, contudo, que provavelmente não passará de uma das muitas lendas a que a construção da muralha deu origem, e que não pode ser confirmada, pelo menos por uma só pessoa com os seus próprios olhos e juízo crítico, devido à extensão da estrutura. [...] Fonte: Kafka, F. 1976. A grande muralha da China. Lisboa, Publicações Europa-América. Texto originalmente publicado em 1917.
Sou um carpinteiro de cenários Dum ballet russo ou doutro qualquer. Guardo as ferramentas do ofício Pregos, dobradiças, apetrechos vários; Um ar canhestro de quem é sempre mandado E a certeza do acaso quando quer Que alguém nos tome pela mão numa aventura Inesperada só do outro lado dessa pobre alma (“Pobre alma” vem do russo). Ela ganha a certeza de que nada é por acaso Perdendo a certeza de que nada dura E alguma coisa fica do que era nada Desespero da impossível calma Esperança de que fique vício ou piedade Em pedacinhos fragmentários Pregos, dobradiças e a tinta escura ou viva Que o sol ausente do teatro não comeu.
Cravo os pregos do amor por todo aquele armazém dos desperdícios Que nenhuma vassoura limpará do pó das glórias mortas. Fixo as dobradiças que me unirão p’ra sempre a tais memórias Experimentando com cuidado e sem saber a serventia dessas portas Que porão em cena novas glórias das ocasiões fatais P’ra eu sofrer do alto da urdidura. Anos de acaso fizeram-me um perito A que recorrem os que não têm coragem De mostrarem que não se admiram a si próprios Senão quando todos aplaudem E se revoltam com a confiança dos maîtres de ballet que falam duro Mas, nos dias mornos, lhes é tudo indiferente. A estrela untando as sapatilhas na resina Olhou-me com os olhos a piscar, vermelhos. Cairia se a não agarrasse e no escuro lhe dissesse Porque atrasara o sexto fouetté do seu allegro.
Em cena todos os desculparam porque era estrela Porque trinta e oito anos são uma idade perigosa E amanhã não sucederia o mesmo E há muitos anos não tinha amores a comentar e estava triste. Mas eu sabia que onde ela passara o tablado tem sulcos que o tempo Usou como fez para abrir as duas rugas Que a pobre alma tem, como parênteses, em volta da pequena boca Que floriu tantas Giselles e Odettes. Não me casei porque vivo demais neste teatro Que então já seria a minha casa que afinal não tenho. Todos me tomam como uma parte desta casa. E talvez sem o saberem me invejem Tantos que nunca tiveram uma casa Ou a que têm é apenas quanto dura A Companhia ou a ligação de acaso. Às vezes é um grande sol de amor que a ilumina Sol de teatro como os velhos arcos voltaicos Choques e carvões sempre sujos que eu dantes ajudava a limpar. Eu encontrei a casa que é minha por não ser. Sabe-lo foi tudo o que encontrei.
Aquela rapariga que iria longe E ao primeiro grand pas de deux classique Partiu um braço porque julgara já poder esquivar-se Aos desejos naturais do premier danseur Foi pena ter esquecido depressa demais o tempo em que podia Tomar comigo um café e achar-me um pouco filósofo. É tarde. Tudo isto é escuro e amanhã – Cedinho, é preciso que cá estejas... – Bem sei. Já não preciso dormir muito. Guardo na caixa os pregos e as dobradiças. Ao menos hoje a grande estrela Aprendeu um segredo do palco.
Possa ela não se vingar aconselhando aquela diagonal À pequena em que o diretor põe agora todas as esperanças Só lhe direi o que ela quiser. É tarde. É melhor ficar cá no teatro. A única luz dá sobre a caixa da resina. Basta-me apagá-la para adormecer. Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1960.
Nesta terça-feira, 12/8, o Poesia contra a guerra completa um ano e dez meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 43.376 visitas haviam sido registradas.
Desde o balanço mensal anterior – Vinte e um meses no ar – foram ao ar textos dos seguintes autores: António Maria Lisboa, Arturo Torres Rioseco, Dolores Duran, Felipe D’Oliveira, Francesco Cavalli-Sforza, Helena Cronin, Jean Ziegler, Junqueira Freire, Lou Reed, Luca Cavalli-Sforza, Marciano Vasques, Maria Ângela Alvim, Mário de Andrade, Roald Dahl, Roberto Domeneck, Roberto Echavarren, Simon Schama, Stephen Jay Gould e Torquato Neto. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Charles Gleyre, Jean-Baptiste-Siméon Chardin, Jean-Michel Basquiat, Joseph Wright of Derby e Quentin Massys.
Não, não é louco. O espírito somente É que quebrou-lhe um elo da matéria. Pensa melhor que vós, pensa mais livre, Aproxima-se mais à essência etérea.
Achou pequeno o cérebro que o tinha: Suas idéias não cabiam nele; Seu corpo é que lutou contra sua alma, E nessa luta foi vencido aquele.
Foi uma repulsão de dois contrários: Foi um duelo, na verdade, insano: Foi um choque de agentes poderosos: Foi o divino a combater coo humano.
Agora está mais livre. Algum atilho Soltou-se-lhe do nó da inteligência: Quebrou-se o anel dessa prisão de carne, Entrou agora em sua própria essência.
Agora é mais espírito que corpo: Agora é mais um ente lá de cima; É mais, é mais que um homem vão de barro: É um anjo de Deus, que Deus anima.
Agora, sim – o espírito mais livre Pode subir às regiões supernas: Pode, ao descer, anunciar aos homens As palavras de Deus, também eternas.
E vós, almas terrenas, que a matéria Ou sufocou ou reduziu a pouco, Não lhe entendeis, por isso, as frases santas, E zombando o chamais portanto: – um louco!
Não, não é louco. O espírito somente É que quebrou-lhe um elo da matéria. Pensa melhor que vós, pensa mais livre, Aproxima-se mais à essência etérea. Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema – referido também como “Temor” – originalmente publicado em 1855.
1. Uma estranha dialética orienta as relações entre o sofrimento vivido pelos homens e a imagem da morte que constitui a sua recusa e resposta. Tanto mais intenso, desesperador e irremediável é o sofrimento, mais rico, cheio de nuanças e sutil é o sistema simbólico que o anula.
Em região alguma do Brasil encontrei situação econômica e estruturas sociais mais destruidoras do que no Maranhão. Contudo, em nenhuma outra parte a morte certa, liberadora, goza por parte dos vivos de atenção mais intensa. E em parte alguma também tantas forças criativas, imagens de sonho, são cotidianamente investidas na sua possível abolição.
Num continente onde as guerras, as repressões, a revolta e a fome abalaram profundamente as sociedades e as consciências, as cidades de São Luís, de Alcântara e de Timão constituem uma espécie de ilhota de arcaísmo. Nessas terras vazias, estruturas feudais aparentemente imutáveis conservam homens e coisas num estado de ruína assustador. [...] Fonte: Ziegler, J. 1977 [1975]. Os vivos e a morte. RJ, Zahar.
De boca em boca o mundo mostra os dentes e a garganta infecciona-se em resposta. Atento ao ambiente como o ambiente ignora a minha vontade. Mesmo equivalências geram colisões e o eixo do sal denuncia o doce na boca. “.” O herói contra a corrente, o herói à vela. Não há apoteose suficiente para todos, a chuva muitas vezes cai antes da hora, quer-se os créditos e eles não sobem. Beethoven ludibriou-nos. É claro que em Who’s Afraid of Virginia Woolf? Richard Burton, não, George, recorre ao útero vazio de Elizabeth Taylor, não, Martha, para a ofensa última. A escala da nutrição não recomeça a cada meia-noite, segue a continuidade do esôfago, do termômetro, da maré, da infecção, da ascensão e queda dos efeitos da cocaína, da cafeína. Filiação da fome e as ilusões da higiene. Fonte: poema do livro Sons: Arranjo: Garganta (no prelo), de Ricardo Domeneck, publicado aqui com o devido consentimento do autor, a quem agradeço pela cortesia.
pirámides formando en un momento (Julián del Casal)
Se a distribuição de azuis nessa vertigem cônica, em vésperas de primavera sobre a colcha, espera tudo da música embora colabore para os espelhismos de finais plenos de sentidos, é porque a vida traz suas mancheias apertadas, seus ramalhetes, o torneado turbante do qual o sol escapa girando e não sabemos qual é a relação entre “arte” e “vida” salvo quando o pêlo de uma gata no cio se eriça. Se pudesses descrever a vida como uma coleção de vestidos ou crimes que saltam à vista: penso no instantâneo de um indonésio quando lhe atiram na cabeça, mas essa imagem, que está à minha disposição é uma entre outras e no espelhismo do meu corpo absorve e expele, à luz tíbia da janela, aparece uma onda de piolhos, desenovela-se a pelugem de um macaco, fixada com coágulos de sangue contra o crânio,
mas seus olhos não se correspondem com essa ou outra imagem, são os olhos da morte, ou melhor, do estar morrendo: vertigem da mulher que acorda no teto de seu automóvel transformado em nó de ferros, vê sua filha jazer a seu lado e ao querer tocá-la nota que não há nada onde havia um braço, que não tem braços, que foram abolidos como uma folha solta aprisionada entre as páginas de um livro; onde havia um mundo ainda há um mundo. “Nós quase te quisemos. Faltou pouco para nos convencermos. Talvez o problema não esteja em ti, mas numa nova forma de ver que foi se insinuando ultimamente. Ou talvez, e isso pode permitir-nos sermos mais exatos: uma maneira de olhar que era a nossa mas que já não consideramos útil, ou interessante, ou possível prosseguir. Talvez os problemas de nossa economia alterem as realidades de não digamos uma década, mas daqueles poucos meses anteriores a esse brutal começo da primavera. No próprio ar, os altos repentinos no clima desta cidade, os pináculos de ruído, a luz do sol na água de alguns olhos verdes, a certa hora da tarde, muda algo tão incongruente como o cardigan da hora de jantar. E tua vida assim, entre os crepúsculos instantâneos e os incertos períodos de cegueira, transita ruas que rapidamente deixaram de ser as mesmas e todos os trastes de uma incipiente parafernália com suas particulares órbitas de interesse, seus contrastes ou divergências dentro do espírito de uma época, quando se buscava simplesmente expandir ou aprofundar os limites da compreensão e as condições do diálogo, tornaram-se agora os mensageiros tresnoitados de uma mudança em que os indícios não revertem a um sistema, senão implicam de súbito que os mais inocentes sonhos de império ficaram sem o menor xale para cobrir as costas, sem a menor possibilidade de acordo, de somações que os desígnios provedores do princípio do dia nos fazem ver agora como ruínas antes que se tenha sequer acabado os fundamentos. Mas a aventura é descrita em termos tão encantadores, os cronistas continuam falando de uma Flórida de saudações; já não salões e salões, decorados e mobiliados segundo o gosto prolixo dos aposentos de inverno, onde a alvorada, tão cedo agora, chega para mostrar o ligeiro desbotado ou deterioração dos materiais mais seguros, o veludo, por exemplo, enroscando-se nos pingentes torturados nas majestosas de um cortinado, pelo qual o Príncipe de Urbino está envolto como uma crisálida frente à alvorada já vermelha de desastres; ou as amêndoas e o marzipan macerados nesta torta nupcial, ou as fímbrias amassadas com as colunas ainda verticais porém partidas, e os diademas, o índigo do mar e o kohl de sobrancelhas e pestanas; as camisas arrojadas a uma navegação de corpo perdido; a paisagem decapitada; o indistinto butim que um emigrado arrasta e incorpora, do qual caem fragmentos, jóias são roubadas, novos frisos aparecem como um mar esmeralda ou o cone de um sorvete de menta. Entre a colcha desgarrada saem os pés indenes, os pés de barro do colosso, prontos para calçar-se de novo para a empreitada do conquistador do turno, pés alados, pés cansados; pés que são de fato o único espólio da batalha.” Fonte: Costa, H. 1992. Antologia de poesia hispano-americana atual. Revista USP 13: 186-205. Poema originalmente publicado em 1988.
3. – O príncipe Pondicherry escreveu uma carta para o Sr. Willy Wonka, pedindo para ele ir à Índia, construir um palácio colossal, inteirinho de chocolate – disse o Vovô José.
– E o Sr. Wonka construiu, vovô?
– Claro. E era um palácio lindo! Tinha cem aposentos, todos construídos de chocolate branco ou escuro! Os tijolos eram de chocolate, o cimento também era de chocolate, as janelas eram de chocolate, e todas as paredes e tetos eram feitos de chocolate, assim como os tapetes, os quadros, os móveis e as camas. E quando a gente abria as torneiras do banheiro delas escorria chocolate quente. [...] Fonte: Dahl, R. 1998 [1964]. A fantástica fábrica de chocolate, 2ª edição. SP, Martins Fontes.
Quando me larguei lá de onde eu vim chão de sol à sol ramo de alecrim paletó de brim tempo tão veloz não achei meu pai minha mãe não viu desgarrei de nós quando dei por mim um sertão sem fim pelo meu redor “Coração não deixe de bater”
Quando meu amor disse adeus pra mim eu perdi a voz quis dizer que sim mas me desavim e fiquei menor não chamei meu pai minha mãe saiu me senti tão só procurei por mim um desvão sem fim pelo meu redor “Coração não deixe de bater” Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Miltons (1988), de Milton Nascimento.
A melodia múrmura à porta do rancho derrama uma alma na paisagem viva e a paisagem viva inspira e expira o ar fino da noite pelos brônquios sonoros da gaita monótona.
Os sapos calaram e escutam, pensando que a Mãe-d’Água dos sapos está cantando perto no brejo da charneca entre os nenúfares.
Os bois sonolentos descerrando lentos os olhos úmidos olham o campo longo batido de luar e pasmam de já ser aurora pois luz melodiosa eles entendem o dia só quando o sol acorda à voz dos pássaros adormecidos.
A gaita monótona insufla um hálito de pulmão humano no ar que trescala na noite clara.
As frondes das árvores movem o gesto que marca compasso como cabeças atentas à orquestra, As duas janelas ladeando a porta do rancho calmo têm a doçura dos olhos ingênuos e sorriem no ouro das candeias que enchem de ouro fluido a sala caiada. E da trepadeira posta em mantilha sobre o teto de sapé sobe o cheiro morno do jasmim branco que a música faz mais tépido como um perfume sobre a pele.
A gaita monótona alonga o perfume na noite oblonga e a claridade unânime é luar e perfume dissolvidos na música.
Súbito, um acorde mais cheio, mais forte, soprado em ofego ressoa e se cala até o fim do espaço, no fim da paisagem.
Só o luar vazio persiste sobre a terra estática...
E, dentro do luar, pênsil dos astros, fica oscilando, compassado, o silêncio noturno, como um trapézio balançado de onde rolou para morrer no tombo mágico o saltimbanco atônito. Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1927.