31 agosto 2008

As regentes do asilo


Frans Hals (c. 1583-1666). De Regentessen van het Oude-Mannhuis te Haarlem. 1664.

Fonte da foto: Web Gallery of Art.

29 agosto 2008

Se tantas vezes te importuno, ó Deus meu vizinho

Rainer Maria Rilke

Se tantas vezes te importuno, ó Deus meu vizinho,
batendo forte à tua porta na noite extensa,
é porque te ouço respirar, da tua presença
sei: estás na sala, sozinho.
Se de algo precisares, não há ninguém ali
que possa te trazer um gole d’água sequer.
Vivo sempre à escuta. Dá-me um sinal qualquer.
Estou bem perto de ti.

Entre nós há apenas um muro, coisa pouca,
por mero acaso aliás;
bem pode ser que um grito da tua ou minha boca –
e eis que se desfaz
sem só rumor ou ruído.

Com imagens tuas o muro foi construído.

Diante de ti tuas imagens são como nomes.
E quando um dia dentro de mim esteja acesa
a luz com que te conhece minha profundeza,
será, nas molduras, brilho que se esbanja e some.

E os meus sentidos, que um torpor célere consome,
estão sem pátria, exilados da tua grandeza.

Fonte: Rilke, R. M. 1993. Poemas. SP, Companhia das Letras. Poema originalmente publicado em 1899.

28 agosto 2008

Pacifismo ativo

Albert Einstein

[...]
Não temos o direito de mentir a nós mesmos. A melhoria das condições humanas atuais, constrangedoras e desesperadoras, não pode ser imaginada como possível sem terríveis conflitos. Porque o pequeno número de pessoas decididas aos meios radicais pesa pouco diante da massa dos hesitantes e dos recuperados [récupéré]. E o poder das pessoas diretamente interessadas na manutenção da máquina da guerra continua considerável. Não recuarão diante de nenhum processo para obrigar a opinião pública a se dobrar diante de suas exigências criminosas.

Segundo todas as aparências, os estadistas atualmente no poder têm por objetivo estabelecer de modo duradouro uma paz sólida. Mas o incessante aumento das armas prova claramente que estes estadistas não têm peso diante das potências criminosas que só querem preparar a guerra. Continuo inabalável neste ponto: a solução está no povo, somente no povo. Se os povos quiserem escapar da escravidão abjeta do serviço militar, têm de se pronunciar categoricamente pelo desarmamento geral. Enquanto existirem exércitos, cada conflito delicado se arrisca a levar à guerra. Um pacifismo que só ataque as políticas de armas dos Estados é impotente e permanece impotente.

Que os povos compreendam! Que se manifeste sua consciência! Assim galgaríamos nova etapa no progresso dos povos entre si e nos recordaríamos do quanto a guerra foi a incompreensível loucura de nossos antepassados!

Fonte: Einstein, A. 1981 [1953]. Como vejo o mundo. RJ, Nova Fronteira.

26 agosto 2008

Sugestões do crepúsculo

Vicente de Carvalho

1.
Ao pôr do sol, pela tristeza
Da meia-luz crepuscular,
Tem a toada de uma reza
A voz do mar.

Aumenta, alastra e desce pelas
Rampas dos morros, pouco a pouco,
O ermo de sombra, vago e oco,
Do céu sem sol e sem estrelas.

Tudo amortece; a tudo invade
Uma fadiga, um desconforto...
Como a infeliz serenidade
Do embaciado olhar de um morto.

Domada então por um instante
Da singular melancolia
De em torno – apenas balbucia
A voz piedosa do gigante.

Toda se abranda a vaga hirsuta,
Toda se humilha, a murmurar...
Que pede ao céu que não a escuta
A voz do mar?

2.
Estranha voz, estranha prece
Aquela prece e aquela voz,
Cuja humildade nem parece
Provir do mar bruto e feroz;

Do mar, pagão criado às soltas
Na solidão, e cuja vida
Corre, agitada e desabrida,
Em turbilhões de ondas revoltas;

Cuja ternura assustadora
Agride a tudo que ama e quer,
E vai, nas praias onde estoura,
Tanto beijar como morder...

Torvo gigante repelido
Numa paixão lasciva e louca,
É todo fúria: em sua boca
Blasfema a dor, mora o rugido.

Sonha a nudez: brutal e impuro,
Branco de espuma, ébrio de amor,
Tenta despir o seio duro
E virginal da terra em flor.

Debalde a terra em flor, com o fito
De lhe escapar, se esconde – e anseia
Atrás de cômoros de areia
E de penhascos de granito:

No encalço dessa esquiva amante
Que se lhe furta, segue o mar;
Segue, e as maretas solta adiante
Como matilha, a farejar.

E, achado o rastro, vai com as suas
Ondas e a sua espumarada
Lamber, na terra devastada,
Barrancos nus e rochas nuas...

3.
Mais formidável se revela,
E mais ameaça, e mais assombra
A uivar, a uivar, dentro da sombra
Nas fundas noites de procela.

Tremendo e próximo se escuta
Varrendo a noite, enchendo o ar,
Como o fragor de uma disputa
Entre o tufão, o céu e o mar.

Em cada ríspida rajada
O vento agride o mar sanhudo:
Roça-lhe a face, com o agudo
Sibilo de uma chicotada.

De entre a celeuma, um estampido
Avulta e estoura, alto e maior,
Quando, tirano enfurecido,
Troveja o céu ameaçador.

De quando em quando, um tênue risco
De chama vem, da sombra em meio...
E o mar recebe em pleno seio
A cutilada de um corisco.

Mas a batalha é sua, vence-a:
Cansa-se o vento, afrouxa... e assim
Como uma vaga sonolência
O luar invade o céu sem fim...

Donas do campo, as ondas rugem;
E o monstro impando de ousadia,
Pragueja, insulta, desafia
O céu, cuspindo-lhe a salsugem.

4.
A alma raivosa e libertina
Desse tenaz batalhador
Que faz do escombro e da ruína
Como os troféus do seu amor;

A alma rebelde e mal composta
Desse pagão e desse ateu
Que retalia e dá resposta
À mesma cólera do céu;

A alma arrogante, a alma bravia
Do mar, que vive a combater,
Comove-se à melancolia
Conventual do entardecer...

No seu clamor esmorecido
Vibra, indistinta e espiritual,
Alguma coisa do gemido
De um órgão numa catedral.

E pelas praias aonde descem
Do firmamento – a sombra e a paz;
E pelas várzeas que emudecem
Com os derradeiros sabiás;

Ouvem os ermos espantados
Do mar contrito no clamor
A confidência dos pecados
Daquele eterno pecador.

Escutem bem... Quando entardece,
Na meia-luz crepuscular
Tem a toada de uma prece
A voz tristíssima do mar...

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1908.

25 agosto 2008

Notícias do bloqueio

Egito Gonçalves

Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
– único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos do silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os viveres escasseiam,
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se.

Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1953.

24 agosto 2008

Descida da cruz


Rogier [de le Pasture] van der Weyden (1399-1464). Kruisafneming. 1435.

Fonte da foto: Web Gallery of Art.

22 agosto 2008

Onde está o bom samaritano?

Hans Eysenck & Michael Eysenck

Uma das imagens mais comuns dos tempos modernos é a de uma pessoa sendo atacada e gritando por socorro no centro de uma cidade grande e impessoal, sem que seus gritos sejam ouvidos e sem que os transeuntes façam qualquer coisa além de continuar cuidando da própria vida. Esta apatia aparente tem sido citada como uma evidência das atitudes desumanizadoras e egoístas que as cidades modernas produzem na maioria dos seus habitantes.

Alguns incidentes ocorridos na vida real parecem confirmar esse quadro sombrio. Um exemplo famoso foi o caso de Kitty Genovese, esfaqueada até morrer na área de Queens, em Nova York, quando voltava do trabalho às três horas da manha. Isto, apesar das 38 testemunhas que não só viram, mas assistiram ao crime das janelas dos seus apartamentos, sem que nenhuma delas tentasse interferir. Apenas uma pessoa tomou a atitude relativamente comedida de chamar a polícia; e mesmo assim depois de ter procurado a orientação de um amigo em outra área da cidade.
[...]

John Darley e Bibb Latané ficaram intrigados com o caso de Kitty Genovese e apresentaram uma razão bastante inventiva para a aparente apatia dos espectadores. Eles mostraram que embora seja sensato supor que quanto maior for o número de pessoas a testemunhar um incidente, maior será a probabilidade da vítima receber assistência, no caso de Kitty Genovese ficou demonstrado, de maneira chocante, que isto não é verdade. Com tantas testemunhas do assassinato, alguém não deveria ter ido ao encontro da jovem?

Darley e Latané argumentam que, por mais paradoxal que isto possa parecer, uma vítima pode estar numa situação muito melhor se houver um único espectador do que vários, pois a responsabilidade de socorrer a vítima recai mais sobre os ombros de uma pessoa do que de muitas. Em outras palavras, quando existem muitas testemunhas de um crime ou de uma emergência, ocorre uma difusão de responsabilidade. Além disso, qualquer culpa potencial por ter deixado de ajudar é distribuída por muitas pessoas, não recaindo sobre uma única testemunha.
[...]

Fonte: Eysenck, H. & Eysenck, M. s/d [1981] Comportamento. SP, Círculo do Livro.

21 agosto 2008

Colibri

D. H. Lawrence

Posso imaginar, em algum outro mundo
De silêncio primevo, muito remoto
Naquela sua imobilidade terrível, apenas arfando e zumbindo,
Colibris a precipitar-se pelas avenidas.

Antes que alguma coisa tivesse alma,
Enquanto a vida era uma onda de matéria, meio inanimada,
Essa pequena lasca de brilho
Saiu a zunir pelas hastes lentas, imensas, suculentas.

Acredito que não havia flores então,
No mundo em que o colibri cintilava à frente da criação.
Acredito que ele furava as lentas veias das plantas com seu longo bico.

Era provavelmente grande
Como o musgo e os pequenos lagartos, dizem, eram outrora grandes.
Era provavelmente um monstro aterrorizador, apunhalador.
Nós o vemos pelo lado errado do telescópio do Tempo,
Felizmente para nós.

Fonte: Dawkins, R. 2000. Desvendando o arco-íris. SP, Companhia das Letras. Poema originalmente publicado em 1923.

20 agosto 2008

Afterglow

Tony Banks

Like the dust that settles all around me,
I must find a new home.
The ways and holes that used to give me shelter,
Are all as one to me now.
But I, I would search everywhere
Just to hear your call,
And walk upon stranger roads than this one
In a world I used to know before.
I miss you more.

Than the sun reflecting off my pillow,
Bringing the warmth of new life.
And the sounds that echoed all around me,
I caught a glimpse of in the night.
But now, now I’ve lost everything,
I give to you my soul.
The meaning of all that I believed before
Escapes me in this world of none, no thing, no one.

And I would search everywhere
Just to hear your call,
And walk upon stranger roads than this one
In a world I used to know before.
For now I’ve lost everything,
I give to you my soul.
The meaning of all that I believed before
Escapes me in this world of none,
I miss you more.

Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Wind & Wuthering (1976), do Genesis.

19 agosto 2008

Não se deve responder à Matintaperera!

Rogério Andrade Barbosa

[...]
Conselhos, geralmente, não adiantam. As pessoas sempre acham que nada de ruim vai lhes acontecer. Mas, muitas das vezes, acontece.

Anunciada, como dizem ser toda mulher, era curiosa. Um dia, deixou o medo de lado, largou os livros na canoa e se aproximou, cautelosamente, da sinistra casa. O primeiro cuidado que ela teve foi se benzer. Após certificar-se de que o casebre, cheio de teias de aranha, estava vazio, murmurou uma prece especial que a mãe lhe ensinara e deu uma volta na chave enferrujada, que estava do lado de fora da porta carcomida pelos cupins.

A oração e a volta na chave, conforme os entendidos, a protegeriam das bruxarias e fariam com que a Matintaperera, se ela existisse de verdade, retornasse à forma humana.
[...]

Fonte: Barbosa, R. 2005.
Contos de encantos, seduções e outros quebrantos. RJ, Bertrand.

18 agosto 2008

Fim-de-século

Armando Freitas Filho

Heroína. Não conheci sua guerra
as lendas e os hinos frios
levados de boca em boca
na velocidade funil das ruas.
Não provei o doce-amargo
de sua conquista e posse
da delícia
de afrouxar todos os laços
logo após a hora H do encontro
e ouvir sem armas
as árias estáticas e virtuais
de suas vitórias e aporias imóveis.
Nem vi sua bandeira pintada
no céu sem vento
podendo, chegada a paz
perder as cores e morrer sem medo
rasgada como uma rosa clássica
que se declina em latim
pétala a pétala.
Penso então no pensamento parado
de suas estátuas
que contemplam e completam
com a poesia do intervalo
as próprias ruínas abandonadas
num eterno domingo.
E apenas escrevo seu nome e atuação
neste livro de ocorrências, heroína.

Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema originalmente publicado em 1988.

17 agosto 2008

Et in Arcadia ego


Nicolas Poussin (1594-1665). Et in Arcadia ego [Les bergers d'Arcadie]. 1637-8.

Fonte da foto: Web Gallery of Art.

15 agosto 2008

Último instante

Manuel Gutiérrez Nájera

Quero morrer ao declinar do dia.
Em alto-mar, quando vem vindo a treva;
Lá me parecerá sonho a agonia,
E a alma uma ave que nos céus se eleva.

Não ouvir nos meus últimos instantes,
A sós com o mar e o céu, humanas mágoas,
Nem mais vozes e preces soluçantes,
Senão o grave retumbar das águas.

Morrer quando, ao crepúsculo, retira
A luz as áureas redes da onda verde,
E ser como esse sol que lento expira:
Algo de luminoso que se perde.

Morrer, e antes que o tempo me destrua
Da mocidade a esplêndida coroa;
Quando inda a vida ouço dizer: sou tua.
Saiba eu embora que nos atraiçoa.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira.

14 agosto 2008

A grande muralha da China

Franz Kafka

A grande muralha da China estava terminada no seu extremo norte. De sueste a sudoeste subia em duas secções, que acabavam por se unir ali. Este princípio da construção parcial era também aplicado numa escala de menor dimensão pelos dois grandes exércitos de trabalhadores, o de leste e o de oeste. Era feito do seguinte modo: formavam-se grupos de uns vinte trabalhadores, que tinham de realizar uma extensão, digamos, de uma quinhentas jardas de muralha, enquanto um grupo semelhante construía uma faixa do mesmo comprimento, para se encontrar com a primeira. Mas, depois de se encontrarem, não se continuava a partir do ponto onde terminavam estas mil jardas; em vez disso, os dois grupos de trabalhadores eram transferidos para paragens bastante diferentes, para recomeçarem a construir aí. Naturalmente que com este sistema foram sendo deixadas muitas brechas grandes, que só eram preenchidas gradualmente e pouco a pouco, algumas até, na verdade, só depois de se ter dado por terminada oficialmente a construção da muralha. Com efeito, conta-se que existem lacunas que nunca foram sequer preenchidas, uma afirmação, contudo, que provavelmente não passará de uma das muitas lendas a que a construção da muralha deu origem, e que não pode ser confirmada, pelo menos por uma só pessoa com os seus próprios olhos e juízo crítico, devido à extensão da estrutura.
[...]

Fonte: Kafka, F. 1976.
A grande muralha da China. Lisboa, Publicações Europa-América. Texto originalmente publicado em 1917.

13 agosto 2008

O carpinteiro de cenários

José Blanc de Portugal

Sou um carpinteiro de cenários
Dum ballet russo ou doutro qualquer.
Guardo as ferramentas do ofício
Pregos, dobradiças, apetrechos vários;
Um ar canhestro de quem é sempre mandado
E a certeza do acaso quando quer
Que alguém nos tome pela mão numa aventura
Inesperada só do outro lado dessa pobre alma
(“Pobre alma” vem do russo).
Ela ganha a certeza de que nada é por acaso
Perdendo a certeza de que nada dura
E alguma coisa fica do que era nada
Desespero da impossível calma
Esperança de que fique vício ou piedade
Em pedacinhos fragmentários
Pregos, dobradiças e a tinta escura ou viva
Que o sol ausente do teatro não comeu.

Cravo os pregos do amor por todo aquele armazém dos desperdícios
Que nenhuma vassoura limpará do pó das glórias mortas.
Fixo as dobradiças que me unirão p’ra sempre a tais memórias
Experimentando com cuidado e sem saber a serventia dessas portas
Que porão em cena novas glórias das ocasiões fatais
P’ra eu sofrer do alto da urdidura.
Anos de acaso fizeram-me um perito
A que recorrem os que não têm coragem
De mostrarem que não se admiram a si próprios
Senão quando todos aplaudem
E se revoltam com a confiança dos maîtres de ballet que falam duro
Mas, nos dias mornos, lhes é tudo indiferente.
A estrela untando as sapatilhas na resina
Olhou-me com os olhos a piscar, vermelhos.
Cairia se a não agarrasse e no escuro lhe dissesse
Porque atrasara o sexto fouetté do seu allegro.

Em cena todos os desculparam porque era estrela
Porque trinta e oito anos são uma idade perigosa
E amanhã não sucederia o mesmo
E há muitos anos não tinha amores a comentar e estava triste.
Mas eu sabia que onde ela passara o tablado tem sulcos que o tempo
Usou como fez para abrir as duas rugas
Que a pobre alma tem, como parênteses, em volta da pequena boca
Que floriu tantas Giselles e Odettes.
Não me casei porque vivo demais neste teatro
Que então já seria a minha casa que afinal não tenho.
Todos me tomam como uma parte desta casa.
E talvez sem o saberem me invejem
Tantos que nunca tiveram uma casa
Ou a que têm é apenas quanto dura
A Companhia ou a ligação de acaso.
Às vezes é um grande sol de amor que a ilumina
Sol de teatro como os velhos arcos voltaicos
Choques e carvões sempre sujos que eu dantes ajudava a limpar.
Eu encontrei a casa que é minha por não ser.
Sabe-lo foi tudo o que encontrei.

Aquela rapariga que iria longe
E ao primeiro grand pas de deux classique
Partiu um braço porque julgara já poder esquivar-se
Aos desejos naturais do premier danseur
Foi pena ter esquecido depressa demais o tempo em que podia
Tomar comigo um café e achar-me um pouco filósofo.
É tarde. Tudo isto é escuro e amanhã
– Cedinho, é preciso que cá estejas... –
Bem sei. Já não preciso dormir muito.
Guardo na caixa os pregos e as dobradiças.
Ao menos hoje a grande estrela
Aprendeu um segredo do palco.

Possa ela não se vingar aconselhando aquela diagonal
À pequena em que o diretor põe agora todas as esperanças
Só lhe direi o que ela quiser.
É tarde. É melhor ficar cá no teatro.
A única luz dá sobre a caixa da resina.
Basta-me apagá-la para adormecer.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1960.

12 agosto 2008

Um ano e dez meses no ar

F. Ponce de León

Nesta terça-feira, 12/8, o Poesia contra a guerra completa um ano e dez meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 43.376 visitas haviam sido registradas.

Desde o balanço mensal anterior – Vinte e um meses no ar – foram ao ar textos dos seguintes autores: António Maria Lisboa, Arturo Torres Rioseco, Dolores Duran, Felipe D’Oliveira, Francesco Cavalli-Sforza, Helena Cronin, Jean Ziegler, Junqueira Freire, Lou Reed, Luca Cavalli-Sforza, Marciano Vasques, Maria Ângela Alvim, Mário de Andrade, Roald Dahl, Roberto Domeneck, Roberto Echavarren, Simon Schama, Stephen Jay Gould e Torquato Neto. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Charles Gleyre, Jean-Baptiste-Siméon Chardin, Jean-Michel Basquiat, Joseph Wright of Derby e Quentin Massys.

11 agosto 2008

Louco

Junqueira Freire

(Hora de delírio)

Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
Aproxima-se mais à essência etérea.

Achou pequeno o cérebro que o tinha:
Suas idéias não cabiam nele;
Seu corpo é que lutou contra sua alma,
E nessa luta foi vencido aquele.

Foi uma repulsão de dois contrários:
Foi um duelo, na verdade, insano:
Foi um choque de agentes poderosos:
Foi o divino a combater coo humano.

Agora está mais livre. Algum atilho
Soltou-se-lhe do nó da inteligência:
Quebrou-se o anel dessa prisão de carne,
Entrou agora em sua própria essência.

Agora é mais espírito que corpo:
Agora é mais um ente lá de cima;
É mais, é mais que um homem vão de barro:
É um anjo de Deus, que Deus anima.

Agora, sim – o espírito mais livre
Pode subir às regiões supernas:
Pode, ao descer, anunciar aos homens
As palavras de Deus, também eternas.

E vós, almas terrenas, que a matéria
Ou sufocou ou reduziu a pouco,
Não lhe entendeis, por isso, as frases santas,
E zombando o chamais portanto: – um louco!

Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
Aproxima-se mais à essência etérea.

Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema – referido também como “Temor” – originalmente publicado em 1855.

10 agosto 2008

O banqueiro e sua esposa


Quentin Massys [Matsys] (1466-1530). Der Geldwechsler und seine Frau. 1514.

Fonte da foto: Wikipedia.

09 agosto 2008

Os vivos e a morte

Jean Ziegler

1.
Uma estranha dialética orienta as relações entre o sofrimento vivido pelos homens e a imagem da morte que constitui a sua recusa e resposta. Tanto mais intenso, desesperador e irremediável é o sofrimento, mais rico, cheio de nuanças e sutil é o sistema simbólico que o anula.

Em região alguma do Brasil encontrei situação econômica e estruturas sociais mais destruidoras do que no Maranhão. Contudo, em nenhuma outra parte a morte certa, liberadora, goza por parte dos vivos de atenção mais intensa. E em parte alguma também tantas forças criativas, imagens de sonho, são cotidianamente investidas na sua possível abolição.

Num continente onde as guerras, as repressões, a revolta e a fome abalaram profundamente as sociedades e as consciências, as cidades de São Luís, de Alcântara e de Timão constituem uma espécie de ilhota de arcaísmo. Nessas terras vazias, estruturas feudais aparentemente imutáveis conservam homens e coisas num estado de ruína assustador.
[...]

Fonte: Ziegler, J. 1977 [1975]. Os vivos e a morte. RJ, Zahar.

08 agosto 2008

Linear

Ricardo Domeneck

De boca em boca
o mundo mostra
os dentes e a garganta
infecciona-se em resposta.
Atento ao ambiente como
o ambiente ignora
a minha vontade.
Mesmo equivalências
geram colisões e o eixo
do sal denuncia
o doce na boca.
“.”
O herói contra
a corrente, o herói
à vela.
Não há apoteose
suficiente para todos,
a chuva muitas vezes
cai antes
da hora,
quer-se os créditos
e eles não sobem.
Beethoven
ludibriou-nos.
É claro que em Who’s
Afraid of Virginia Woolf?

Richard Burton, não,
George, recorre ao
útero vazio
de Elizabeth Taylor,
não,
Martha, para a
ofensa última.
A escala da
nutrição não
recomeça a cada
meia-noite, segue
a continuidade
do esôfago, do
termômetro, da
maré, da
infecção, da
ascensão e queda
dos efeitos
da cocaína, da cafeína.
Filiação da fome e
as ilusões da higiene.

Fonte: poema do livro Sons: Arranjo: Garganta (no prelo), de Ricardo Domeneck, publicado aqui com o devido consentimento do autor, a quem agradeço pela cortesia.

07 agosto 2008

Yesterday

Paul McCartney

Yesterday, all my troubles seemed so far away
Now it looks as though they’re here to stay
Oh, I believe in yesterday

Suddenly I’m not half the man I used to be
There’s a shadow hanging over me
Oh, yesterday came suddenly

Why she had to go
I don’t know, she wouldn’t say
I said something wrong
Now I long for yesterday

Yesterday, love was such an easy game to play
Now I need a place to hide away
Oh, I believe in yesterday

Fonte: álbum Help! (1965), dos Beatles.

05 agosto 2008

Confissão piramidal

Roberto Echavarren

pirámides formando en un momento (Julián del Casal)

Se a distribuição de azuis nessa vertigem
cônica, em vésperas de primavera
sobre a colcha, espera tudo da música
embora colabore para os espelhismos de finais
plenos de sentidos, é porque a vida
traz suas mancheias apertadas, seus ramalhetes, o torneado
turbante do qual o sol escapa girando
e não sabemos qual é a relação entre “arte” e “vida”
salvo quando o pêlo de uma gata no cio se eriça.
Se pudesses descrever a vida como uma coleção de vestidos
ou crimes que saltam à vista:
penso no instantâneo de um indonésio quando lhe atiram
na cabeça, mas essa imagem,
que está à minha disposição é uma entre outras
e no espelhismo do meu corpo absorve e expele,
à luz tíbia da janela, aparece uma onda de piolhos,
desenovela-se a pelugem de um macaco, fixada com coágulos de sangue contra o crânio,

mas seus olhos não se correspondem com essa ou outra imagem,
são os olhos da morte, ou melhor, do estar morrendo:
vertigem da mulher que acorda no teto de seu automóvel
transformado em nó de ferros, vê sua filha jazer a seu lado
e ao querer tocá-la nota que não há nada onde havia um braço,
que não tem braços, que foram abolidos
como uma folha solta aprisionada entre as páginas de um livro;
onde havia um mundo ainda há um mundo.
“Nós quase te quisemos. Faltou pouco
para nos convencermos. Talvez o problema não esteja em ti,
mas numa nova forma de ver que foi se insinuando ultimamente.
Ou talvez, e isso pode permitir-nos sermos mais exatos:
uma maneira de olhar que era a nossa
mas que já não consideramos útil, ou interessante, ou possível prosseguir.
Talvez os problemas de nossa economia
alterem as realidades de não digamos uma década,
mas daqueles poucos meses anteriores a esse brutal
começo da primavera. No próprio ar,
os altos repentinos no clima
desta cidade, os pináculos de ruído,
a luz do sol na água de alguns olhos verdes, a certa hora da tarde,
muda algo tão incongruente como o cardigan da hora de jantar.
E tua vida assim, entre os crepúsculos
instantâneos e os incertos períodos de cegueira,
transita ruas que rapidamente deixaram de ser as mesmas
e todos os trastes de uma incipiente parafernália
com suas particulares órbitas de interesse, seus contrastes
ou divergências dentro do espírito de uma época,
quando se buscava simplesmente expandir ou aprofundar
os limites da compreensão e as condições do diálogo,
tornaram-se agora os mensageiros tresnoitados de uma mudança
em que os indícios não revertem a um sistema, senão implicam de súbito
que os mais inocentes sonhos de império
ficaram sem o menor xale para cobrir as costas,
sem a menor possibilidade de acordo,
de somações que os desígnios provedores do princípio do dia
nos fazem ver agora como ruínas
antes que se tenha sequer acabado os fundamentos.
Mas a aventura é descrita em termos
tão encantadores, os cronistas continuam falando
de uma Flórida de saudações;
já não salões e salões, decorados e mobiliados
segundo o gosto prolixo dos aposentos de inverno,
onde a alvorada, tão cedo agora, chega para mostrar
o ligeiro desbotado ou deterioração dos materiais mais seguros,
o veludo, por exemplo, enroscando-se nos pingentes torturados
nas majestosas de um cortinado, pelo qual
o Príncipe de Urbino está envolto como uma crisálida
frente à alvorada já vermelha de desastres;
ou as amêndoas e o marzipan macerados nesta torta nupcial,
ou as fímbrias amassadas com as colunas ainda verticais
porém partidas, e os diademas, o índigo do mar
e o kohl de sobrancelhas e pestanas;
as camisas arrojadas a uma navegação de corpo perdido;
a paisagem decapitada; o indistinto
butim que um emigrado arrasta e incorpora,
do qual caem fragmentos, jóias são roubadas,
novos frisos aparecem como um mar esmeralda
ou o cone de um sorvete de menta.
Entre a colcha desgarrada saem os pés indenes,
os pés de barro do colosso,
prontos para calçar-se de novo para a empreitada
do conquistador do turno, pés alados,
pés cansados; pés que são de fato
o único espólio da batalha.”

Fonte: Costa, H. 1992. Antologia de poesia hispano-americana atual. Revista USP 13: 186-205. Poema originalmente publicado em 1988.

04 agosto 2008

A barca de Gleyre


Charles [Marc-Charles-Gabriel] Gleyre (1806-1874). Le Soir (ou Les illusions perdues). 1843.

Fonte da foto: Réunion de Musées Nationaux.

03 agosto 2008

A fantástica fábrica de chocolate

Roald Dahl

3.
– O príncipe Pondicherry escreveu uma carta para o Sr. Willy Wonka, pedindo para ele ir à Índia, construir um palácio colossal, inteirinho de chocolate – disse o Vovô José.

– E o Sr. Wonka construiu, vovô?

– Claro. E era um palácio lindo! Tinha cem aposentos, todos construídos de chocolate branco ou escuro! Os tijolos eram de chocolate, o cimento também era de chocolate, as janelas eram de chocolate, e todas as paredes e tetos eram feitos de chocolate, assim como os tapetes, os quadros, os móveis e as camas. E quando a gente abria as torneiras do banheiro delas escorria chocolate quente.
[...]

Fonte: Dahl, R. 1998 [1964]. A fantástica fábrica de chocolate, 2ª edição. SP, Martins Fontes.

02 agosto 2008

Sem fim

Cacaso

Quando me larguei
lá de onde eu vim
chão de sol à sol
ramo de alecrim
paletó de brim
tempo tão veloz
não achei meu pai
minha mãe não viu
desgarrei de nós
quando dei por mim
um sertão sem fim
pelo meu redor
“Coração não deixe de bater”

Quando meu amor
disse adeus pra mim
eu perdi a voz
quis dizer que sim
mas me desavim
e fiquei menor
não chamei meu pai
minha mãe saiu
me senti tão só
procurei por mim
um desvão sem fim
pelo meu redor
“Coração não deixe de bater”

Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Miltons (1988), de Milton Nascimento.

01 agosto 2008

O salto da morte

Felippe D’Oliveira

A melodia múrmura
à porta do rancho
derrama uma alma
na paisagem viva
e a paisagem viva
inspira e expira
o ar fino da noite
pelos brônquios sonoros
da gaita monótona.

Os sapos calaram
e escutam, pensando
que a Mãe-d’Água dos sapos
está cantando perto
no brejo da charneca
entre os nenúfares.

Os bois sonolentos
descerrando lentos
os olhos úmidos
olham o campo longo
batido de luar
e pasmam de já ser aurora
pois luz melodiosa
eles entendem o dia só
quando o sol acorda
à voz dos pássaros
adormecidos.

A gaita monótona
insufla um hálito
de pulmão humano
no ar que trescala
na noite clara.

As frondes das árvores
movem o gesto
que marca compasso
como cabeças
atentas à orquestra,
As duas janelas
ladeando a porta
do rancho calmo
têm a doçura
dos olhos ingênuos
e sorriem
no ouro das candeias
que enchem de ouro fluido
a sala caiada.
E da trepadeira
posta em mantilha
sobre o teto de sapé
sobe o cheiro morno
do jasmim branco
que a música faz mais tépido
como um perfume sobre a pele.

A gaita monótona
alonga o perfume
na noite oblonga
e a claridade unânime
é luar e perfume
dissolvidos na música.

Súbito, um acorde
mais cheio, mais forte,
soprado em ofego
ressoa e se cala
até o fim do espaço,
no fim da paisagem.

Só o luar vazio persiste
sobre a terra estática...

E, dentro do luar,
pênsil dos astros,
fica oscilando,
compassado,
o silêncio noturno,
como um trapézio balançado
de onde rolou
para morrer
no tombo mágico
o saltimbanco atônito.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1927.

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