Em primeiro lugar as magnólias. Com seus cálices e corolas: aquarelas de todas as tonalidades e suma delicadeza do toque. Pequena aurora diluída com doçura, nos tanques.
Depois a música: frêmito e susto de pássaro. As valsas – que sorrateiras. E as flautas. As noites com flauta sob a janela inaugurando a lua nascida para o suspirado amor.
Mais tarde os campos, as grutas, a maravilha. E o caos. Com seus favos e suas hidras, o mundo. O mar com seus apelos, horizontes para o éter, desespero em mergulho.
Com o tempo, o ocaso. As lentas plumas, os reposteiros com seus moucos ouvidos, a tíbia madeira para o resguardo das cinzas, as entabulações – e com que recuos – da paz.
Finalmente os endurecidos espelhos, os cristais sob o quebra-luz, dos ângulos o verniz, o ouro com parcimônia, a prata, o marfim com seus esqueletos. Fonte: Lisboa, H. 2001. Melhores poemas. SP, Global. Poema originalmente publicado em 1949.
No ermo da mata o som da trompa ecoa, Vem expirar embaixo da colina. E uma dor de orfandade se imagina Na brisa, que em ladridos erra à toa.
A alma do lobo nessa voz ressoa... Enche os vales e o céu, baixa à campina, Numa agonia que à ternura inclina E que tanto seduz quanto magoa.
Para tornar mais suave esse lamento, Através do crepúsculo sangrento, Como linho desfeito a neve cai.
Tão brando é o ar da tarde, que parece Um suspiro do outono. E a noite desce Sobre a paisagem lenta que se esvai. Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1880.
Agora eu estava num beco sem saída. Estava ali, a cavalo, atravessando, sozinho, uma região isolada e triste. Trouxera comigo a disposição de passar uma temporada com Roderick Usher, que tinha sido um dos meus alegres companheiros de infância. Mas já fazia muito tempo que não nos víamos. Para ser franco, nem me lembrava muito dele. Por isso mesmo, espantava-me a pressa com que eu atendera seu pedido para que o visitasse. Sua carta inteira era um apelo. A própria letra já evidenciava uma grande agitação nervosa. E assim todo o conteúdo da carta. Pedia-me Usher que viesse fazer-lhe um pouco de companhia. Falava de uma enfermidade física e de uma perturbação mental. Esperava que pudesse aliviar um pouco os seus males com minha jovialidade. Estava muito só. Precisa de mim. E, nesse tom, tudo isso e muito mais fora dito. Nem pensei duas vezes. Embarquei logo. E, agora, eis-me num beco sem saída. Tudo ali naquele lugar me dava arrepios. E, durante um dia inteiro, passei eu a cavalo à procura da casa de Usher. [...] Fonte: Poe, E. A. 1996. Histórias extraordinárias de Allan Poe, 9ª edição. RJ, Ediouro. Conto originalmente publicado em 1839.
Escrevia no espaço. Hoje, grafo no tempo, na pele, na palma, na pétala, luz do momento. Sôo na dúvida que separa o silêncio de quem grita do escândalo que cala, no tempo, distância, praça, que a pausa, asa, leva para ir do percalço ao espasmo.
Eis a voz, eis o deus, eis a fala, eis que a luz se acendeu na casa e não cabe mais na sala. Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema originalmente publicado em 1991.
Os homens das cavernas acabariam precisando daquilo que todas as línguas proporcionam – maneiras de distinguir entre causa e efeito, presente e passado, realidade e fantasia, estado e processo. Eles precisariam de um jeito de mostrar especificidade, de modo que ‘Vamos comer carne no jantar’ não fosse interpretado como ‘Vamos comer o Rex’. Podemos imaginar o que os homens das cavernas precisariam eventualmente dizer: antropólogos e fisiologistas que estudam crânios antigos podem até adivinhar quando eles começaram a dizê-lo. Mas não existem pistas nos fósseis de como a linguagem surgiu.
Talvez possamos deduzir alguma coisa a partir da comunicação entre os animais. Os chimpanzés, por exemplo, foram ensinados a conversar em linguagem de sinais e alguns teóricos sugerem que a linguagem humana começou a partir de um sistema de gestos ou com gritos de alarme. Outros têm objeções quanto a isso, pois não há como traçar, com certeza, uma linha desde as comunicações entre animais até a sutil e complexa linguagem dos seres humanos. [...] Fonte: Leigh, J. & Savold, D., orgs. 1991 [1988]. O dia em que o raio correu atrás da dona-de-casa. SP, Nobel.
Irmã, Sóror Saudade me chamaste... E na minh’alma o nome iluminou-se Como um vitral ao sol, como se fosse A luz do próprio sonho que sonhaste.
Numa tarde de Outono o murmuraste; Toda a mágoa do Outono ele me trouxe; Jamais me hão de chamar outro mais doce; Com ele bem mais triste me tornaste...
E baixinho, na alma de minh’alma, Como bênção de sol que afaga e acalma, Nas horas más de febre e de ansiedade,
Como se fossem pétalas caindo, Digo as palavras desse nome lindo Que tu me deste: “Irmã, Sóror Saudade”... Fonte: Espanca, F. 1996. Poemas de Florbela Espanca. SP, Martins Fontes. Poema – com a dedicatória “A Américo Durão” – originalmente publicado em 1923. Tanto o título do livro como o do poema comparecem entre aspas na edição original da obra; todavia, o uso contínuo sem aspas acabou por consagrá-los assim.
Lá vem ela de novo Juntando milhares Que se espremem nas praças Sai da frente, deixa eu ver, deixa eu acompanhar Eu não quero perder
Infelizmente Anunciam por todos os cantos Que ela ainda não chegou
Não é legal (Não tem nada a ver) Quando a espera é muito grande (Tanto tempo em pé) Quanto mais você espera (Parece que vai chover) Mais você tende a esperar E eu quero ver quem que preenche Esse vazio que ficou
– Eu vim pra ver se ela e bonita E se o que ela diz me faz feliz
Quando as luzes alucinam As retinas da platéia Os pensamentos se desprendem Leves como um balão
Infelizmente Anunciam por todos os cantos Que Esperança Ribeiro Por motivo de força maior Hoje não vem Mil desculpas ao povo E um beijo bem grande Para todos os seus fãs Fonte: encarte que acompanha o álbum Caprichoso (1985), do grupo Rumo.
1. Marley estava morto – para começar. Sem dúvida alguma. O registro do enterro estava assinado pelo clérigo, pelo escrivão, pelo agente funerário e pelo homem que encabeçava o cortejo fúnebre. Scrooge também assinou. E a assinatura de Scrooge valia ali tanto quanto na Bolsa, em qualquer coisa em que ele quisesse pôr as mãos. O velho Marley estava mortinho-da-silva.
Atenção! Com isso não estou querendo dizer que eu saiba, que tenha conhecimentos próprios, sobre o que há de particularmente morto numa da-silva. Para mim, silva lembra uma espécie de selva, local de coisas silvestres e selvagens, e de minha parte me inclinaria a considerá-la como um lugar especialmente cheio de vida. Mas a sabedoria de nossos ancestrais inventou essa expressão e não está em minhas pobres mãos o poder de perturbá-la, ou então coisas assim acabam liquidando o país. Portanto, permitam-me que repita, com ênfase, que Marley estava mortinho-da-silva. [...] Fonte: Dickens, C. 2002 [1843]. Uma história de Natal, 5ª edição. SP. Ática.
I am just a poor boy Though my story’s seldom told, I have squandered my resistance For a pocketful of mumbles, Such are promises. All lies and jest, Still a man hears what he wants to hear, And disregards the rest.
When I left my home And my family, I was no more than a boy In the company of strangers In the quiet of the railway station Running scared, Laying low, Seeking out the poorer quarters Where the ragged people go, Looking for the places Only they would know.
Asking only workman’s wages I come looking for a job, But I get no offers, Just a come-on from the whores on Seventh Avenue. I do declare, There were times when I was so lonesome, I took some comfort there.
Now the years are rolling by me They are rocking evenly I am older than I once was Younger than I’ll be But that’s not unusual No it isn’t strange After changes upon changes We are more or less the same After changes we are more or less the same
Then I’m laying out my winter clothes And wishing I was gone, Going home Where the New York City winters Aren’t bleeding me, Leading me, To go home.
In the clearing stands a boxer And a fighter by his trade, And he carries the reminders Of ev’ry glove that laid him down Or cut him till he cried out In his anger and his shame, “I am leaving, I am leaving.” But the fighter still remains. Fonte: encarte que acompanha os LPs do álbum duplo The concert in Central Park (1981), de Simon & Garfunkel. Canção originalmente gravada em 1970.
1. De zonas putrefactas e sujas o longo apelo avança. Despenteados cabelos presos num caixão. A criança em repouso – ao lado o ventre ainda dolorido. Dois corpos na tepidez de Maio vinculados na posse.
Dos cabelos, dos corpos, da criança, o apelo se nutre, se avoluma, percorre de onde a onde as distâncias da Terra, enlaça as células, sorri na luz imaginada, perfuma-se de nardo e da flor do cardo, ascende sem medida no espaço e nele se situa, calculada abóbada para abrigo dos homens, porta e torre.
2. Na seca pastagem, entre tojo rapado, nasceu a novilha. Fecundaram de súbito os velhos sem esperança; em longa procissão a aldeia os seguiu, transportando a arca possuída já, sangue formando o desejado coração das colinas eternas, cercado de lírios o alqueive para o trigo que dum grão germinará. A rosa de cerrada corola era flâmula na torre, batente na porta, fonte e sustento do cordeiro.
Escorria o tempo no espelho: três vezes se contaram os anos pelos dedos da mão direita, da esquerda e da direita.
3. Que te darei em troca do amor? Dá-me a tua morte e tuas dores.
Mil dias e o voto se cumpriu. Ao grito responderam gritos, enovelaram-se neles os cabelos, soltaram-se os cabelos e uma criança fugiu. Os corpos dos soldados lançaram-se na estrada, exaustos da viagem. Velozes cruzaram-se os homens; na vinha, dobrados corpos levam mais cestos para o lagar. O medo e os muros são a nossa obra.
Por entre o fogo, o coro dos insectos sibilava – quando virá a paz? silvos aspirando a pax, não eirene, anseios de modorra, inversão da escada, calma transportada pela brisa, paz que os pulmões dos homens não sopravam, desequilíbrio mantido em equilíbrio, fecho, não começo. Só que a trégua é longe do caminho onde se ergue a torre, onde floriu a rosa, onde o sangue da arca construiu o apelo, a abóbada de que o sangue se nutriu, onde a guerra definiu o caminho para se definir.
Ergue a tua casa, negoceia com o teu dinheiro; tece um vestido que te fique bem; segue, em sua vida breve, a vida da flor do feno. Entra na comédia e diz o teu papel. Aguarda, desperta em teu leito, o teu Esposo. Só da guerra se engendra a tua paz: eirene, eirene.
4. Nos caminhos da aldeia germina a lama que o Inverno semeou. Soltos, cabelos grossos cobrem corpos mortos. Faminta, a criança trinca inutilmente a murcha flor do cardo. No lagar, homens sem vindima esmagam grainhas ressequidas. Pelos montes, uma recordação tênue agita o feno levemente; a mulher mais velha guarda na memória a imagem de uma avó, um coração ardendo na lareira. Acendem-se as lâmpadas ao escurecer, antes da primeira estrela. Para lá de janelas abertas desconhecidos encontram-se nos leitos. Os carros de bois passam vazios no caminho, sem ruído, na lama. Paz sem espada.
Só na torre a torre, uma rosa mantendo seu perfume. Pela porta inviolada escapam-se as palavras, uma a uma, formando o discurso, o canto, o cântico da flor possuída no princípio dos caminhos: Firmei minhas raízes sobre a tua cabeça e elevei-me, oliveira a florir no campo, plátano junto ao rio. Cedo ao discurso, ao canto, para encaminhar teu ardor para o meu perfume forte, sedutor como a canela. Sou a torre e a porta, sou a rosa.
E coloca um sinal sobre o teu coração: por ti nasceu a novilha entre o tojo rapado. Efigênia fugiu mas eu fiquei – em breve terás vento, apresta teus navios p’ra batalha. No golpe mais forte de uma espada, na lama que o teu ódio levantar, na hora do saque, tu me encontrarás: sou mais ágil do que o teu movimento e todas as riquezas estão em minhas mãos.
Repousa na vitória deste encontro. Trago comigo as tuas sete feridas: vou levar-te para a tua tenda, cobrir o teu sono com os meus cabelos.
Passados os três dias e as noites, ao acordar, ver-me-ás no centro da luz, sentada à tua porta. Não procures a torre nem a flâmula da rosa: eu estou como sempre fui, e a minha formosura te deslumbrará. Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1963.
A barata diz que tem Sete saias de filó. É mentira da barata, Ela tem é uma só.
A barata diz que tem Um anel de formatura. É mentira da barata, Ela tem é casca dura.
A barata diz que tem Uma cama de marfim. É mentira da barata, Ela tem é de capim.
A barata diz que tem Um sapato de fivela. É mentira da barata, O sapato é da mãe dela.
A barata diz que tem O cabelo cacheado. É mentira da barata, Ela tem coco rapado. Fonte: edição No. 195 (outubro de 2008) da revista Ciência Hoje das Crianças.
1. Na Inglaterra dos períodos Tudor e Stuart, a visão tradicional era que o mundo fora criado para o bem do homem e as outras espécies deviam se subordinar a seus desejos e necessidades. Tal pressuposto fundamenta as ações dessa ampla maioria de homens que nunca pararam um instante para refletir sobre a questão. Entretanto, os teólogos e intelectuais que sentissem a necessidade de justificá-lo podiam apelar protamente para os filósosos clássicos e a Bíblia. A natureza não fez nada em vão, disse Aristóteles, e tudo teve um propósito. As plantas foram criadas para o bem dos animais e esses para o bem dos homens. Os animais domésticos existiam para labutar, os selvagens para serem caçados. Os estóicos tinham ensinado a mesma coisa: a natureza existia unicamente para servir os interesses humanos. [...] Fonte: Thomas, K. 1988. O homem e o mundo natural. SP, Companhia das Letras.
Como se te perdesse, assim te quero. Como se não te visse (favas douradas Sob um amarelo) assim te apreendo brusco Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se tudo o mais me permitisses, A mim me fotografo nuns portões de ferro Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima No dissoluto de toda despedida.
Como se te perdesse nos trens, nas estações Ou contornando um círculo de águas Removente ave, assim te somo a mim: De redes e de anseios inundada. Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema originalmente publicado em 1989.
A música viva das folhas mortas nos contagiou. Por isso giram
os astros, as crianças e as peripécias da poeira num raio de sol são eternas
que desconhecidos brincam de roda roda nos escuros pátios do poema? Fonte: Costa, H. 1992. Antologia de poesia hispano-americana atual. Revista USP 13: 186-205. Poema originalmente publicado em 1988.
Nesta quarta-feira, 12/11, o Poesia contra a guerra completa vinte e cinco meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 52.951 visitas haviam sido registradas.
Desde o balanço mensal anterior – Aniversário de dois anos – foram ao ar textos dos seguintes autores: Antonio Machado, Bastos Tigre, Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, Carl Djerassi, Carlito Azevedo, Charles Darwin, E. M. de Melo e Castro, Faria Neves Sobrinho, Geraldo Carneiro, Hedy West, Henri Zerner, John B. Calhoun, Manuel da Fonseca, Múcio Teixeira, Richard Conniff, Sebastião Uchoa Leite, Sérgio Capparelli e Thomas Malthus. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Hans Meming, Jules Joseph Lefebvre, Lawrence Alma-Tadema, William Bouguereau e William Merritt Chase.
os insetos voavam estranhamente sobre a verdura e a barraca de peixe permanecia um momento intocada em seus reflexos de luz e de prata e você a ver navios percorria o tormentoso labirinto da feira se imaginava um conquistador espanhol que se perdeu no rumo das Índias e construiu um castelo à beira-mar. vendedores vendedoras ficções sonoras verdes vegetais como se houvesse uma deusa sonhadora em cada alface e os dragões cuspissem fogo e silêncio emaranhados numa réstia de cebola. Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.
16. Durante vinte e cinco minutos, 11 de outubro foi o melhor dia da vida de Cantor. Pouco depois das seis da manhã, enquanto tomava banho, o telefone tocou. A persistência de quem telefonava finalmente o levou a sair do banho e ir pingando até o telefone ao lado de sua cama.
“Professor Isidore Cantor?” A voz com sotaque era desconhecida; além disso, ninguém o chamava de Isidore há décadas.
Apesar da excitação que crescia em seu peito, ele decidiu ser neutro. “Quem está falando?”
“Ulf Lundholm, do Svenska Dagblader de Estocolmo.”
“Sim?” Cantor mal podia emitir uma palavra, repleto que estava de suspense, desejo, triunfo e alguma dissimulação. Queria fingir neutralidade fria, mas seu coração disparava. Ele se viu pensando, com a parte de sua mente que continua a viver sua existência normal mesmo quando o resto dele perdia a calma, por que o primeiro telefonema invariavelmente vinha de um repórter. “Sim”, ele acrescentou com mais vigor, “é o professor Isidore Cantor.” Isidore Cantor? Meu Deus, soa como um completo estranho! “Em que posso ajudá-lo?” [...] Fonte: Djerassi, C. 1999. O dilema de Cantor. RJ, Nova Fronteira.
um linguajar no interior de mim encubro tão di ferente o soluço tão uma disciplina que
tropeço no que peço de mim no arco todo neste marco que meço de metros e de lodo
feito estrutura des- conheço o sentido que ligo que esqueço
para ficar só mão que vai ao fundo para voltar ou não Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1963.
1. As grandiosas e inesperadas descobertas nos últimos anos na filosofia natural, a difusão crescente do conhecimento geral da extensão da arte de imprimir, o ardente e desinibido espírito de investigação que predomina em todo o mundo letrado e iletrado, as novas e extraordinárias luzes lançadas sobre os temas políticos que deslumbram e surpreendem a compreensão e, em particular, o tremendo fenômeno no horizonte político, a Revolução Francesa, que, como um cometa incandescente, parece destinado a inspirar com uma nova vida e vigor ou incendiar e destruir os habitantes receosos da Terra – tudo isto concorreu para induzir em muitos homens lúcidos a opinião de que entrávamos num período repleto das mudanças mais importantes, mudanças essas que seriam, de certo modo, decisivas do futuro destino da humanidade.
Afirmou-se que se acha lançada a grande questão, sobre se o homem passará a deslocar-se em velocidade acelerada em direcção ao ilimitável e, portanto, para o progresso inconcebido, ou estará condenado a uma oscilação perpétua entre a felicidade e o infortúnio, e, após cada esforço, continuar a uma distância incomensurável do alvo almejado. [...] Fonte: Malthus, T. R. s/d [1798]. Ensaio sobre o princípio da população. Lisboa, Publicações Europa-América.
E como eu caminhasse solitário por uma mesma estrada pedregosa cujas margens sumissem num crepúsculo que não por calmo eludia o perigoso e das árvores só a força ressaltasse ou o dúbio conforto que estendiam como signos de quietude ao viandante mas também de esconderijos e tocaias de alimárias e possíveis bestas-feras e suas frondosidades multiformes justapusessem-se em massas inconsúteis que só aos corpos celestes confessassem de seu conteúdo o interior, e como notasse eu a simultânea pertença e diferença de meu ser frente a estes, àquelas e a tudo e as torcidas ilhargas do terreno em suas reentrâncias e clareiras a montes tumulares recordassem e menhires e castros de outras eras, e se tivera eu antes desistido, por nojo, simples fado ou inconsciência, da idéia acalentada desde a infância de que entre naturezas e atributos de elementos vários imperava que houvesse para lá da superfície um fio de tessitura e harmonia entre ser e pedra, e arroio e sentido, e se a costura à qual me acostumara se desfiasse e me surpreendesse revelando-se sob forma hipotética e de meu corpo os dentes se exilassem a um estado anterior do mesmo corpo e o sólido letargo do ambiente apenas traduzisse-se no assombro de um homem a quem tivessem-lhe fugido o oxigênio, a gravidade, as entranhas, e me escavasse uma oca identidade e o que remanescesse dessa busca fossem as minha mãos que descobria imóveis e espalmadas no crepúsculo, e a leveza alívio não trouxesse e só nos meu pés se concentrasse frente à noite que subia passo a passo e soçobrava sombras e sinais num espesso negro líquido insípido, e como eu caminhasse solitário por uma mesma estrada pedregosa, ereto, ali, no meio do caminho, finda a distância que me definira e posta a idéia à prova sem sucesso, rompidas as coisas todas e eu nelas, fundindo-me e no entanto já fundido ao que ao desvanecer-se me engolia e obrigava contar cada milímetro de meu derrube à desrazão e ao medo, prestes a imaterializar-me suspenso e plantado na poeira, cara ao céu, pensos braços e testículos, disseminando-me e disseminado, com o caminho a desaparecer comigo e em mim, quando silenciavam as últimas humanas estridências e inda não rebentavam as animais, por fim indissolúveis e solutos estrada e caminhante, noite e eu, e propusesse-me a explosão da vida apenas sua mera e permanente aceitação direta e indubitável, e posto que isso tudo sucedesse em súbita sucessiva sucessão, êxul, em pé, no meio do caminho, parei-me. E um único vagalume avançou lento do fundo do negror, restaurando, com sua autoridade, general de exércitos e ordenanças, Nelson ou Narses, César na Gália de meu terror, a ordem que perdera, ou bem sua ilusão, por apontar seu brilho entre o arvoredo e contra (parco, intermitente) o oceano de estrelas. E como eu caminhasse solitário, o vagalume foi transunto anônimo de meu quadragésimo aniversário. Fonte: Costa, H. SP. 1999. Quadragésimo. SP, Ateliê Editorial.
A história da arte, o discurso sobre a arte, está preso, para não dizer que está comprimido, entre a historia e a crítica. Empírica e positivista, a história tradicional da arte mostra-se extremamente desconfiada para com toda teoria e mesmo para com toda interpretação aprofundada das obras. A crítica, por seu lado, toma quase sempre como postulado que aquilo que procura definir, iluminar na obra, o que faz com que ela seja obra de arte, escapa ao tempo e, em conseqüência, à história. Já se afirmou, no entanto, já se demonstrou, seria eu tentado a dizer, que uma reflexão bem fundamentada sobre a arte, uma ‘ciência’ da arte teria que ser, ao mesmo tempo, história e crítica.
Um outro obstáculo consiste em que a crítica choca-se, logo de princípio, contra o fato de que o visível não se pode dizer, não se reduz a um discurso. Essa dificuldade, que pode parecer insuperável, constitui, na verdade, o interesse da história da arte. Os filósofos, os psicólogos, os etnólogos vêem na arte o modelo de um meio de expressão [não-verbal], e – por motivos que não podemos procurar elucidar aqui – as artes plásticas ocupam, a esse respeito e hoje em dia, o lugar que a música ocupava na estética romântica. A história da arte, no entanto, que há meio século sofre de uma profunda estagnação teórica, não se encontra em condição de responder às perguntas que lhe são feitas. [...] Fonte: Zerner, H. 1976. A arte. In: J. Le Goff & P. Nora, orgs. História: novas abordagens. RJ, Francisco Alves.
eu não sou eu nem o meu reflexo especulo-me na meia sombra que é meta de claridade distorço-me de intermédio estou fora de foco atrás de minha voz perdi todo o discurso minha língua é ofídica minha figura é a elipse Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1979.
Senhora numa cidade, a cidade abandonou... – porque lá ninguém a queria...
Jogou-se às estradas da vida, caminhos do Alentejo, esbanjando braçados cheios da grande vida que tinha!
E os campaniços leais que bem a compreendiam! Raparigas de olhos pretos o modo como a olhavam! Maiorais de largo gado ínvios atalhos desciam até as estradas reais.
Moinhos presos nos cerros, velas pelo céu giravam; nos longes do descampado ardem queimadas vermelhas!... E Florbela, de negro, esguia como quem era, seus longos braços abria esbanjando braçados cheios da grande vida que tinha! Fonte: Espanca, F. 1996. Poemas de Florbela Espanca. SP, Martins Fontes. Poema originalmente publicado em 1941.