30 maio 2009

A nuvem

Percy Bysshe Shelley

Sou a filha da Terra e da Água
E o rebento do Céu:
Passo pelos poros do oceano e das praias;
Eu me transformo, mas não posso morrer.
Pois após a chuva, quando, sempre imaculada,
A tenda do céu se mostra sem nenhum adorno,
E os ventos e as luzes do sol com seus raios convexos
Constroem a cúpula azul de ar,
Eu, silenciosamente, rio do meu próprio cenotáfio,
E de dentro das cavernas da chuva,
Como uma criança saindo do ventre, como um fantasma da tumba,
Eu me ergo e desmonto novamente.

Fonte: Pretor-Pinney, G. 2008. Guia do observador de nuvens. RJ, Intrínseca. Poema composto de seis estrofes – o trecho acima corresponde à última estrofe – e originalmente publicado em 1820.

27 maio 2009

Poema do milho

Cora Coralina

Milho...
Punhado plantado nos quintais.
Talhões fechados pelas roças.
Entremeado nas lavouras,
Baliza marcante nas divisas.
Milho verde. Milho seco.
Bem granado, cor de ouro.
Alvo. Às vezes vareia
– espiga roxa, vermelha, salpintada.

Milho virado, maduro, onde o feijão enrama.
Milho quebrado, debulhado
na festa das colheitas anuais.
Bandeira de milho levada para os montes,
largada pelas roças.
Bandeiras esquecidas na fartura.
Respiga descuidada
dos pássaros e dos bichos.

Milho empaiolado...
Abastança tranqüila
do rato,
do caruncho,
do cupim.
Palha de milho para o colchão.
Jogada pelos pastos.
Mascada pelo gado.
Trançada em fundos de cadeiras.

Queimada nas coivaras.
Leve mortalha de cigarros.
Balaio de milho trocado com o vizinho
no tempo da planta.
“– Não se planta, nos sítios, semente da mesma terra”.

Ventos rondando, redemoinhando.
Ventos de outubro.

Tempo mudado. Revôo de saúva.
Trovão surdo, tropeiro.
Na vazante do brejo, no lameiro,
o sapo-fole, o sapo-ferreiro, o sapo-cachorro.
Acauã de madrugada
marcando o tempo, chamando chuva.
Roça nova encoivarada,
começo de brotação.
Roça velha destocada.
Palhada batida, riscada de arado.

Barrufo de chuva.
Cheiro de terra, cheiro de mato.
Terra molhada. Terra saroia.
Noite chuvada, relampeada.
Dia sombrio. Tempo mudado, dando sinais.
Observatório: lua virada. Lua pendida...
Circo amarelo, distanciado,
marcando chuva.
Calendário, Astronomia do lavrador.

Planta de milho na lua-nova.
Sistema velho colonial.
Planta de enxada.
– Seis grãos na cova,
quatro na regra, dois de quebra.
Terra arrastada com o pé,
pisada, incalcada, mode os bichos.

Lanceado certo cabo-da-enxada.
Vai, vem... sobe, desce...
Terra molhada, terra saroia
– Seis grãos na cova; quatro na regra, dois de quebra.

Sobe. Desce...
Camisa de riscado, calça de mescla.
Vai, vem...
golpeando a terra, o plantador.

Na sombra da moita,
na volta do toco – o ancorote d’água.

Cavador de milho, que está fazendo?
Há que milênios vem você plantando.
Capanga de grãos dourados a tiracolo.
Crente da Terra. Sacerdote da terra.
Pai da terra.
Filho da terra.
Ascendente da terra.
Descendente da terra.
Ele, mesmo, terra.

Planta com fé religiosa.
Planta sozinho, silencioso.
Cava e planta.
Gestos pretéritos, imemoriais.
Oferta remota, patriarcal.
Liturgia milenária.
Ritual de paz.

Em qualquer parte da Terra
um homem estará sempre plantando,
recriando a Vida.
Recomeçando o Mundo.

Milho plantado; dormindo no chão, aconchegados
seis grãos na cova.
Quatro na regra, dois de quebra.
Vida inerte que a terra vai multiplicar.

Evém a perseguição:
o bichinho anônimo que espia, pressente.
A formiga-cortadeira – quenquém.
A ratinha do chão, exploradeira.
A rosca vigilante na rodilha.
O passo-preto vagabundo, galhofeiro,
vaiando, sirrindo...
aos gritos arrancando, mal aponta.
O cupim clandestino
roendo, minando,
só de ruindade.

E o milho realiza o milagre genético de nascer.
Germina. Vence os inimigos.
Aponta aos milhares.
– Seis grãos na cova.
– Quatro na regra, dois de quebra.
Um canudinho enrolado.
Amarelo-pálido,
frágil, dourado, se levanta.
Cria sustância.
Passa a verde.
Liberta-se. Enraíza.
Abre folhas espaldeiradas.
Encorpa. Encana. Disciplina,
com os poderes de Deus.

Jesus e São João
desceram de noite na roça,
botaram a bênção no milho.
E veio com eles
uma chuva maneira, criadeira, fininha,
uma chuva velhinha,
de cabelos brancos,
abençoando
a infância do milho.

O mato vem vindo junto.
Sementeira.
As pragas todas, conluiadas.
Carrapicho. Amargoso. Picão.
Marianinha. Caruru-de-espinho.
Pé-de-galinha. Colchão.
Alcança, não alcança.
Competição.
Pac... Pac... Pac...
a enxada canta.
Bota o mato abaixo.
Arrasta uma terrinha para o pé da planta.
“– Carpa bem feita vale por duas...”
quando pode. Quando não... sarobeia.
Chega terra. O milho avoa.

Cresce na vista dos olhos.
Aumenta de dia. Pula de noite.
Verde. Entonado, disciplinado, sadio.

Agora...
A lagarta da folha,
lagarta rendeira...
Quem é que vê?
Faz renda da folha no quieto da noite.
Dorme de dia no olho da planta.
Gorda. Barriguda. Cheia.
Expurgo... Nada... força da lua...
Chovendo acaba – a Deus querê.

“– O mio tá bonito...”
“– Vai sê bão o tempo pras lavoras todas...”
“– O mio tá marcando...”
Condicionando o futuro:
“– O roçado de seu Féli tá qui fais gosto...
Um refrigério!”
“– O mio lá tá verde qui chega a s’tar azur...”
Conversam vizinhos e compadres.

Milho crescendo, garfando,
esporando nas defesas...
Milho embandeirado.
Embalado pelo vento.

“Do chão ao pendão, 60 dias vão”.

Passou aguaceiro, pé-de-vento.
“– O milho acamou...” “– Perdido?”... “– Nada...
Ele arriba com os poderes de Deus”...
E arribou mesmo, garboso, empertigado, vertical.
No cenário vegetal
um engraçado boneco de frangalhos
sobreleva, vigilante.
Alegria verde dos periquitos gritadores...
Bandos em seqüência... Evolução...
Pouso... retrocesso.

Manobras em conjunto.
Desfeita formação.
Roedores grazinando, se fartando,
foliando, vaiando
os ingênuos espantalhos.

“Jesus e São João
andaram de noite passeando na lavoura
e botaram a bênção no milho”.
Fala assim gente de roça e fala certo.
Pois não está lá na taipa do rancho
o quadro deles, passeando dentro dos trigais?
Analogias... Coerências.

Milho embandeirado
bonecando em gestação.
– Senhor!... Como a roça cheira bem!
Flor de milho, travessa e festiva.
Flor feminina, esvoaçante, faceira.
Flor masculina – lúbrica, desgraciosa.

Bonecas de milho túrgidas,
negaceando, se mostrando vaidosas.
Túnicas, sobretúnicas...
Saias, sobre-saias...
Anáguas... camisas verdes.
Cabelos verdes...
Cabeleiras soltas, lavadas, despenteadas...
– O milharal é desfile de beleza vegetal.

Cabeleiras vermelhas, bastas, onduladas.
Cabelos prateados, verde-gaio.
Cabelos roxos, lisos, encrespados.
Destrançados.
Cabelos compridos, curtos,
queimados, despenteados...
Xampu de chuvas...
Flagrâncias novas no milharal.
– Senhor, como a roça cheira bem!...

As bandeiras altaneiras
vão-se abrindo em formação.
Pendões ao vento.
Extravasão da libido vegetal.
Procissão fálica, pagã.
Um sentido genésico domina o milharal.
Flor masculina erótica, libidinosa,
polinizando, fecundando
a florada adolescente das bonecas.

Boneca de milho, vestida de palha...
Sete cenários defendem o grão.
Gordas, esguias, delgadas, alongadas.
Cheias, fecundadas.
Cabelos soltos excitantes.
Vestidas de palha.
Sete cenários defendem o grão.
Bonecas verdes, vestidas de noiva.
Afrodisíacas, nupciais...

De permeio algumas virgens loucas...
Descuidadas. Desprovidas.
Espigas falhadas. Fanadas. Macheadas.
Cabelos verdes. Cabelos brancos.
Vermelho-amarelo-roxo, requeimado...
E o pólen dos pendões fertilizando...
Uma fragrância quente, sexual
invade num espasmo o milharal.

A boneca fecundada vira espiga.
Amortece a grande exaltação.
Já não importam as verdes cabeleiras rebeladas.
A espiga cheia salta da haste.
O pendão fálico vira ressecado, esmorecido,
no sagrado rito da fecundação.

Tons maduros de amarelo.
Tudo se volta para a terra-mãe.
O tronco seco é um suporte, agora,
onde o feijão verde trança, enrama, enflora.

Montes de milho novo, esquecidos,
marcando claros no verde que domina a roça.
Bandeiras perdidas na fartura das colheitas.
Bandeiras largadas, restolhadas.
E os bandos de passo-pretos galhofeiros
gritam e cantam na respiga das palhadas.

“Não andeis a respigar” – diz o preceito bíblico.
O grão que cai é o direito da terra.
A espiga perdida – pertence às aves
que têm seus ninhos e filhotes a cuidar.
Basta para ti, lavrador,
o monte alto e a tulha cheia.
Deixa a respiga para os que não plantam nem colhem.
– O pobrezinho que passa.
– Os bichos da terra e os pássaros do céu.

Fonte: Coralina, C. 2004. Melhores poemas, 2ª edição. SP, Global. Poema originalmente publicado em 1965.

25 maio 2009

A energia no universo

Freeman Dyson

[...]
O cosmos contém energia em várias formas – por exemplo, gravitacional, calor, luz e energia nuclear. A energia química, a forma que desempenha o papel mais importante nas atividades humanas hoje em dia, vale pouco no universo como um todo. No universo a forma predominante de energia é gravitacional. Cada massa dispersa pelo espaço possui energia gravitacional que pode ser liberada ou convertida em luz e calor fazendo-se com que ela se condense. Para qualquer massa suficientemente grande, essa forma de energia suplanta todas as outras.

As leis da termodinâmica afirmam que todas as quantidades de energia têm associadas a si uma qualidade característica chamada entropia. A entropia mede o grau de desordem associado à energia. A energia deve sempre fluir numa direção que aumente a entropia. Assim, podemos arranjar as diferentes formas de energia numa ‘ordem de mérito’, sendo a forma mais elevada aquela com menos desordem ou entropia. A energia de uma forma mais elevada pode ser rebaixada para uma forma mais simples, porém esta não pode ser totalmente reconvertida para uma forma mais elevada. A direção do fluxo de energia do universo é determinada por um fator básico: a energia gravitacional não é apenas predominante em quantidade mas também a mais alta em qualidade. A gravitação não carrega entropia, e é a primeira na ordem de mérito. É por esse motivo que uma usina hidroelétrica, convertendo a energia gravitacional da água em eletricidade, é capaz de obter uma eficiência próxima de cem por cento, que nenhuma usina química ou nuclear pode igualar. No universo como um todo, o lema principal do fluxo de energia é a contração gravitacional de objetos grandes, a energia gravitacional liberada na contração sendo convertida em energia de movimento, luz e calor. O fluxo da água de um reservatório para uma turbina situada um pouco mais próxima do centro da Terra é em essência uma contração gravitacional controlada da Terra, numa escala mais modesta que a considerada normalmente pelos astrônomos. O universo se desenvolve com a contração gravitacional de objetos de todos os tamanhos, desde agrupamentos de galáxias até planetas.
[...]

Fonte: Dyson, F. s/d [1992]. De Eros a Gaia. SP, Best Seller.

23 maio 2009

Descendo o rio


George Caleb Bingham (1811-1879). Fur traders descending the Missouri. 1845.

Fonte: Wikipedia.

21 maio 2009

O apelo

Jules Supervielle

Um apelo, um grito
Longínquo, abafado,
Quase imperceptível,
Erra no infinito
Coração da noite.
Do fundo da guerra,
Do fundo da França,
Expirando avança,
Desmaia, persiste,
Procura ganhar
Força e consistência
No espaço, procura
Com perseverança
Um apoio à beira
Do silêncio enorme.
Súbito me escolhe
E cala-se em mim.
Sirvo-lhe de abrigo,
Sirvo-lhe de leito,
Ajudo-o a acabar.
Como conseguiste,
Persistente apelo,
Passar o oceano,
Entrar no meu tempo,
Nele demorar?
De que lábio humano,
De que fundas trevas
Vens como expressão
De última vontade?
De que subterrâneo
Ou de que retiro
De lenta agonia
Até mim te elevas,
Lânguido suspiro,
Último suspiro?
Pequenino apelo
Quase a perecer,
Acabou-se a guerra,
A França renasce;
Poderás já agora
Ceder ao silêncio,
Deixar-te morrer.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira.

19 maio 2009

Sementes suicidas

Felipe A. P. L. Costa

A engenharia genética, também denominada manipulação genética ou tecnologia do DNA recombinante, pode ser definida como um conjunto de técnicas usadas na manipulação direta dos genes de uma célula. A aplicação dessas técnicas tem obtido algum sucesso na obtenção de organismos ‘engenheirados’ – isto é, organismos geneticamente modificados (OGM) ou transgênicos.
[...]

No entanto, apesar dos benefícios que essa tecnologia pode trazer, ela não tem sido usada apenas para ‘aprimorar’ (do ponto de vista humano) certas características desse ou daquele organismo, como plantas usadas na alimentação humana. Coisas escabrosas também têm sido desenvolvidas, como as chamadas ‘sementes suicidas’.
[...]

Para as empresas envolvidas com o desenvolvimento e produção de sementes suicidas, a tecnologia terminator seria apenas um ‘sistema de proteção de tecnologia’, isto é, um ‘selo de segurança’ que elas estariam agregando aos seus produtos. Deixando os eufemismos de lado, cabe notar que, em um mundo dominado por essa tecnologia, os agricultores não mais semearão a próxima safra usando para isso uma parcela dos grãos colhidos na safra anterior, como se pode fazer hoje. Ao contrário, sempre que um agricultor (ou qualquer outra pessoa) quiser semear alguma coisa, terá de comprar ‘sementes certificadas’ em algum revendedor autorizado, talvez sob risco de ser processado por ter uma lavoura ‘clandestina’.
[...]

Fonte: Costa, F. A. P. L. 2009. Banimento para as ‘sementes suicidas’. Ciência Hoje 259: 9. O sítio da revista está aqui.

17 maio 2009

O eremita

Guillaume Apollinaire

Um eremita descalço perto de um crânio embranquecido
Gritou: Eu vos amaldiçôo martírios e aflições
Tentações demais apesar de mim me acariciam
Tentações de lua e de disputas de palavras

Estrelas demais fogem quando eu rezo
Ó chefe de morta ó velho marfim Órbitas buracos
Das narinas roídas Tenho fome Meus gritos estão roucos
Eis para o meu jejum um pedaço de queijo

Ó Senhor açoite as nuvens do pôr-do-sol
Que estendem no céu tão belos cus rosas
E é a noite as flores do dia já se fecham
E os camundongos na sombra encantam o assoalho

Os humanos sabem tantos jogos o amor
O amor jogo dos umbigos ou jogo do ganso
O jogo do número ilusório dos dedos
Senhor faça Senhor que um dia eu me apaixone

Espero aquela que me estenderá seus dedos miúdos
Quantos sinais brancos nas unhas as preguiças
As mentiras no entanto espero que as erga
Suas mãos enamoradas diante de mim a desconhecida

Senhor o que te fiz Veja Sou unicórnio
No entanto apesar de seu belo medo concupiscente
Feito uma criança querida meu sexo é inocente
De estar angustiado sozinho e erguido como um marco

Senhor o Cristo está nu Joguem joguem sobre ele
A túnica sem costura apaguem os ardores
Ao poço vão afogar-se tantas batidas de horas
Quando em intervalos iguais caem as gotas de chuva

Velei trinta noites sob os louros rosas
Suaste sangue Cristo em Getsêmani
Crucificado responda Diga não Eu o nego
Pois esperei demais em vão os estigmas

Eu escutava ajoelhado apaixonarem-se as batidas
Do coração o sangue rodava sempre em suas artérias
Que são velhos corais ou são cogumelos
E a minha aorta era avarenta perdidamente

Uma gota caiu Suor E a sua cor
Luz O sangue tão vermelho e eu ri dos danados
Depois enfim entendi que eu sangrava do nariz
Devido aos perfumes violentos de minhas flores

E ri do velho anjo que não apareceu
De vôo muito indolente me dar um belo cálice
Ri da asa cinza e tiro meu cilício
Costurado de crinas sedosas por cruéis operárias

Vertuchou Riotant das vaginas das papisas
Santas sem peitos irei para as cidades
E lá talvez morrer pela minha virgindade
Entre as mãos as peles as palavras e as promessas

Apesar dos ventos azuis eu me ergo divino
Como um raio de lua adorado pelo mar
Em vão eu supliquei todos os santos fora do calendário
Nenhum me consagrou meus doces pães sem fermento

E eu ando Eu fujo à noite Lilith uiva
E clama em vão e vejo grandes olhos
Abrirem-se tragicamente ó noite vejo teus céus
Estrelarem-se calmamente de esplêndidas pílulas

Um esqueleto de rainha inocente está enforcado
A um longo fio de estrela em desespero severo
À noite os bosques são negros e morre a esperança verde
Quando morre o dia com um grito inesperado

E eu ando eu fujo ó dia a emoção da alvorada
Fechou o olhar fixo e doce de velho rubis
Das corujas e eis o olhar das ovelhas
E das porcas com tetas rosas como orelhas

Corvos de asas abertas igual a um til fazem
Uma sombra vã aos pobres campos de centeio maduro
Perto dos burgos onde os casebres são impuros
Por terem corujas mortas pregadas em seu teto

Meus quilômetros longos Minhas tristezas inteiras
Os esqueletos de dedos terminando os pinheiros
Perderam minha estrada e meus ombros de nenê
Muitas vezes e dormi no chão dos pinheirais

Enfim Ó noite pasmada No fim de meus caminhos
A cidade me apareceu muito grave ao som dos sinos
E minha luxúria morre agora que me aproximo
Entrando abençoei as multidões das duas mãos

Cidade eu ri de teus palácios como trufas
Brancas no chão cavado de clareiras azuis
Ora meus desejos vão embora todos em fila
Minha enxaqueca piedosa vestiu seu escapulário

Pois todas vieram confessar-me os seus pecados
E Senhor sou santo pelo voto das amantes
Zelotide e Lorie Luisa e Diamante
Disseram Podes saber ó tu o espantado

Eremita absolve nossas culpas nunca veniais
Ó tu o puro e o arrependido que nós amamos
Saiba nossos corações esconde os jogos que amamos
E nossos beijos quintessência como mel

E eu absolvo as confissões púrpuras como seu sangue
Das poetas nuas das fadas das fornicadoras
Nenhum pobre desejo enche o meu peito
Quando vejo à noite os casais se abraçando

Pois não quero mais nada a não ser deixar fechar
Meus olhos casal cansado no jardim ofegante
Cheio da agonia pomposa das groselheiras sangrentas
E da santa crueldade da flor da paixão

Fonte: Apollinaire. 2005. Álcoois e outros poemas. SP, Martin Claret. Poema – dedicado ‘A Félix Fénéon’ – publicado em livro em 1913.

15 maio 2009

Bolhas de sabão

Francisco Carvalho

Os homens se divertem com as palavras
como as crianças se divertem com bolhas de sabão.
Ai daquele que põe o coração nas palavras
porque depois vem a perdê-lo
como se perde a identidade da imagem num espelho
partido.
Ai daquele que depositou seu fardo de sonhos
às costas das palavras.
As palavras são como as velas de uma nau que perdesse
a rota da bússola.
Teu coração é um labirinto de palavras
mas as palavras precisam de tuas sensações para existir
e as tuas sensações não são menos abstratas
do que as sete verdades do arco-íris.

Mastigas diariamente as palavras
como se elas fossem um bálsamo para a alma.
As palavras te governam e te configuram
delimitam as fronteiras de tua solidão
os caminhos da eternidade e do adeus.
As palavras assinalam o momento de tua morte
e te ensinam a abrir a porta onde não existe porta.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1982.

13 maio 2009

Bétula na tempestade


I. C. [Johan Christian Klausson] Dahl (1788-1857). Bjerk i storm. 1849.

Fonte da foto: Wikipedia.

12 maio 2009

Dois anos e sete meses no ar

F. Ponce de León

Nesta terça-feira, 12/5, o Poesia contra a guerra completa dois anos e sete meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 66.437 visitas haviam sido registradas.

Desde o balanço mensal anterior – Dois anos e meio no ar – foram ao ar textos dos seguintes autores: Arthur Koestler, Edgar Morin, Eduardo Milán, Ernest Hemingway, Jacques Monod, José Gomes Ferreira, Lima Barreto, Lu Menezes, Norman Gimbel e Olive A. Wadsworth. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Caspar David Friedrich, Francesco Hayez e Jean-Honoré Fragonard.

11 maio 2009

A vida sem vida

Edgar Morin

Sendo nós mesmos seres vivos, habituamo-nos de tal modo a este mundo estranho que nos esquecemos de nos maravilharmos com ele. E, no entanto, reprodução, nascimento, crescimento, hereditariedade, pensamento são outros tantos enigmas para um físico ou um químico. Nada de semelhante se observa no mundo inanimado. A única coisa que podemos compreender é a morte e a decomposição dos sistemas vivos. – L. Brillouin.
[...]

Para nós, seres vivos, a vida parece evidente e normal, e a morte parece-nos espantosa e incrível. Mas, se nos colocarmos do ponto de vista do universo físico, então, como explica claramente a frase de Brillouin citada como epígrafe, é a vida que se torna espantosa e incrível enquanto a morte não é mais do que o regresso dos nossos átomos e moléculas à sua existência física normal. Como não nos podemos desprender da nossa condição de ser vivo, mas como também somos capazes de nos distanciar dela pelo espírito, então podemos simultaneamente espantar-nos de viver e de morrer.
[...]

Fonte: Morin, E. s/d [1980]. O método – 2. A vida da vida. Lisboa. Publicações Europa-América.

09 maio 2009

Lá longe, na campina

Olive A. Wadsworth

Lá longe, na campina,
Na areia, sob o sol,
Vivia a mamãe-sapa
Com sua filhinha só.
“Pisque”, dizia a mamãe-sapa;
“Pisco, sim senhora”;
E abria o olho e o fechava
Na areia, sob o sol.

Lá longe, na campina,
Onde é mais claro o riacho,
Vivia a mamãe-peixe
Com seus dois peixinhos-macho.
“Nadem”, dizia ela;
“Nadamos”, falavam baixo;
E nadavam e saltavam
Lá onde é claro o riacho.

Lá longe, na campina,
Aconchegados no ninho,
Vivia a mamãe-pássaro
Com os seus três passarinhos.
“Cantem”, dizia ela;
“Cantamos, os três juntinhos”
E cantavam e se alegravam
Aconchegados no ninho.

Lá longe, na campina,
Na ribeira, entre os juncos,
Vivia a mamãe-rata
Com quatro ratinhos junto.
“Mergulhem”, dizia ela;
“Mergulhamos em conjunto”;
E mergulhavam e escavavam
A ribeira, entre os juncos.

Fonte: Bennett, W. J., org. 1997. O livro das virtudes para crianças. RJ, Nova Fronteira. A versão original – intitulada ‘Over in the meadow’ – contém 10 estrofes e apareceu na segunda metade do século 19 (talvez antes). Embora de autoria duvidosa, o poema é comumente atribuído a Olive A. Wadsworth, pseudônimo de Katherine Floyd Dana.

07 maio 2009

Dizer aí é uma flor difícil

Eduardo Milán

Dizer aí é uma flor difícil
dizer aí é pintar tudo de pássaro
dizer aí é estar atraído
pela palavra áspera
cardo
e pelo cardeal cardeal
dizer aí é dizer tudo de novo
e começar pelo cavalo:
o cavalo está só
agora está só
não há agora escuro
não há agora de silêncio
não há agora de palavra
não há agora de silêncio contra o muro:
o cavalo está só quer dizer está negro
saltou por sobre a branca
realidade puríssima

o cavalo está aí
fuga
pelas dobras do dia
florescência
flui como a lua

o cavalo salta por sobre sua sombra
salta sobre o seu silêncio
salta sobre a realidade
salta sobre
um universo ainda negro
antes da soma
antes do cimo
das cores:
montanha verde sobre céu azul

a silhueta do cavalo é colorida
de sol colorida quando se oculta
agora se oculta
agora se perde no cavalo
moeda de sol
não há agora de silêncio
não há agora de palavra
não há agora de cavalo

Fonte: Costa, H. 1992. Antologia de poesia hispano-americana atual. Revista USP 13: 186-205. Poema originalmente publicado em 1985.

05 maio 2009

O acaso e a necessidade

Jacques Monod

[Prefácio]
Entre as ciências, a biologia ocupa um lugar ao mesmo tempo marginal e central. Marginal, no sentido em que o mundo vivo constitui apenas parte ínfima e bastante ‘especial’ do universo conhecido, de sorte que o estudo dos seres vivos parece que jamais deve revelar leis gerais, aplicáveis fora da biosfera. Mas, se a ambição última de toda ciência é, como penso, a de elucidar a relação do homem com o universo, então devemos reconhecer à biologia um lugar central pois ela é, entre todas as disciplinas, a que tenta penetrar mais diretamente no cerne dos problemas que devem ser resolvidos antes mesmo que possa ser colocado o da ‘natureza humana’ em termos diferentes do da metafísica.
[...]

Fonte: Monod, J. 1976 [1970]. O acaso e a necessidade, 3ª edição. Petrópolis, Vozes.

03 maio 2009

Mar de gelo


Caspar David Friedrich (1774-1840). Das Eismeer. 1822.

Fonte da foto: Web Gallery of Art.

01 maio 2009

Devia morrer-se de outra maneira

José Gomes Ferreira

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite para o ritual do Grande Desfazer: “Fulano de tal comunica ao mundo que vai transformar-se em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio.”
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. “Adeus! Adeus!”
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, numa lassidão de arrancar raízes... (primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... ) a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen... como aquela nuvem além (vêem?) – nesta tarde de outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado – com a indicação ‘(Na morte de Manuela Porto.)’ – em 1961.

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