A história da humanidade se confunde com a história das guerras. Deveríamos lutar para que se confundisse apenas com a história da literatura.
28 setembro 2009
Tangerine-girl
Rachel de Queiroz
De princípio, a interessou o nome da aeronave: não ‘zepelim’ nem dirigível, ou qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso de metal brilhante chamava-se modernissimamente blimp. Pequeno como um brinquedo, independente, amável. A algumas centenas de metros de sua casa ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de amarração dos dirigíveis. E de vez em quando eles deixavam o poste e davam uma volta, como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio de vôo. Assim, de começo, aos olhos da menina, o blimp existia como uma coisa em si – como um animal de vida própria; fascinava-a como prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de prata, como uma jóia, librando-se majestosamente pouco abaixo das nuvens. Tinha coisas de ídolo, evocava-lhe um pouco o gênio escravo de Aladim. Não pensara nunca em entrar nele; não pensara sequer que pudesse alguém andar dentro dele. Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de um golfinho; e, no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode águia e golfinho, numa admiração gratuita – pois parece que é mesmo uma das virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe, em troca de sua contemplação pura e simples.
Os olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem nenhum desejo particular, sem a sombra de uma reivindicação. Verdade que via lá dentro umas cabecinhas espiando, mas tão minúsculas que não davam impressão de realidade – faziam parte da pintura, eram elemento decorativo, obrigatório como as grandes letras negras U.S. Navy gravadas no bojo de prata. Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados em folha que fazem de chofer nos automóveis de brinquedo.
O seu primeiro contato com a tripulação do dirigível começou de maneira puramente ocasional. Acabara o café da manhã; a menina tirara a mesa e fora à porta que dá para o laranjal sacudir da toalha as migalhas de pão. Lá de cima um tripulante avistou aquele pano branco tremulando entre as árvores espalhadas e a areia, e o seu coração solitário comoveu-se. Vivia naquela base como um frade no seu convento – sozinho entre soldados e exortações patrióticas. E ali estava, juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um pano entre a mancha verde das laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O marinheiro agitou-se todo com aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara aquela casa, vira gente embaixo entrando e saindo; e pensara quão distantes vivem os homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. Ele estava sempre voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as e, se algumas erguiam os olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro da nave; queriam só ver a beleza prateada vagando pelo céu. [...] Fonte: Mello, M. A., org. 2003. Nossas palavras. RJ, José Olympio. Conto originalmente publicado em 1942.
Um pastor costumava levar seu rebanho para fora da aldeia. Um dia resolveu pregar uma peça nos vizinhos.
– Um lobo! Um lobo! Socorro! Ele vai comer minhas ovelhas!
Os vizinhos largaram o trabalho e saíram correndo para o campo para socorrer o menino. Mas encontraram-no às gargalhadas. Não havia lobo nenhum.
Ainda outra vez lê fez a mesma brincadeira e todos vieram ajudar. E ele caçoou de todos.
Mas um dia o lobo apareceu de fato, e começou a atacar as ovelhas. Morrendo de medo, o menino saiu correndo.
– Um lobo! Um lobo! Socorro!
Os vizinhos ouviram, mas acharam que era caçoada. Ninguém socorreu e o pastor perdeu todo o rebanho. Fonte: Bennett, W. J., org. 1997. O livro das virtudes para crianças. RJ, Nova Fronteira. Fábula atribuída a Esopo (620-560 a.C.).
É a vaidade, Fábio, nesta vida, Rosa, que da manhã lisonjeada, Púrpuras mil, com ambição dourada, Airosa rompe, arrasta presumida.
É planta, que de abril favorecida, Por mares de soberba desatada, Florida galeota empavesada, Sulca ufana, navega destemida.
É nau enfim, que em breve ligeireza, Com presunção de Fênix generosa, Galhardias apresta, alentos presa:
Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa De que importa, se aguarda sem defesa Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa? Fonte: Spina, S. 1995. A poesia de Gregório de Matos. SP, Edusp.
Avestruz: O sarcasmo de duas asas breves (Ânsia frustrada de espaço e luz, De coisas frágeis, líricas, leves);
Patas afeitas ao chão; Voar? Até onde o pescoço dá. Bicho sem classificação: Nem cá, nem lá.
Isto sou (Dói-me a ironia – Pudor nem eu sei de quê). Daí a absurda fantasia De me esconder na poesia, Por crer que ninguém a lê. Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1949.
Num edifício residencial, o piso do apartamento de cima é o teto para o apartamento de baixo e vice-versa. O mesmo ocorre em um mundo formado de níveis sobrepostos: “O que”, dizem os Kampa, “é para nós terra firme, é um céu aéreo para os seres que vivem abaixo de nós, e o céu aéreo constitui a terra firme daqueles que vivem acima”. Não é de se espantar que num universo assim os problemas de coabitação assumam proporções cósmicas. Índios que vivem em cabanas rudimentares e, em geral, diretamente sobre o chão não deixam de perceber de modo bastante realista as ‘chateações’ que, nas reuniões de condomínio, constituem o tema inexaurível das reclamações de uns vizinhos contra os outros: barulho, vazamentos, terraços sujos de cascas e pontas de cigarro...
Os Munduruku acreditam que um povo de espíritos inofensivos habita o mundo inferior. Esses espíritos organizam expedições de pesca com timbó: “Essas pescarias sempre são barulhentas, mas as dos Kokeriwat são tão tempestuosas que provocam uma ventania. Isso é sentido, no mundo terrestre, nas ondas de frio que atingem o país munduruku em junho, durante dois ou três dias. As pescarias dos Munduruku, em compensação, provocam quedas de temperatura no mundo subterrâneo”. [...] Fonte: Lévi-Strauss, C. 1986. A oleira ciumenta. SP, Brasiliense.
Ânfora, tuas formas inúteis. (Serão inúteis – tão belas?)
Quedas a um canto, vazia de conteúdo, vazia de néctar, de água. Jamais serviste. E exiges com ar de orgulho que te sirvam – há séculos – o ambiente, a luz.
Mas ó donaire, caçoila rara, flor de lua, que segrego insuflou teu assomo, que sonho nas tuas curvas paira, que invisível abraço anelas, a que deus enigmático és fiel na tua contenção, que suspiro de nuvens exalas, que aura de madrugada exorna teu sangue azul, que estirpe fugidia restauras, que éter de nostalgia te transforma em espírito, em música – para além da matéria –, ó infecunda, ó eterna? Fonte: Lisboa, H. 2001. Melhores poemas. SP, Global. Poema originalmente publicado em 1958.
Primeira pista: da biologia Só a informação genética pode evoluir através da seleção natural, porque só ela passa a longo prazo através das gerações. Se bem que esteja contida num material genético, a informação genética não é em si substância. É forma. [...]
Segunda pista: da bioquímica O DNA é uma molécula suburbana muito afastada do centro das vias bioquímicas atuais. O mesmo se pode dizer do RNA. Quer do ponto de vista bioquímico, quer do químico são, evidentemente, moléculas difíceis de produzir; mesmo para fabricar apenas as suas unidades nucleotídicas a partir das mais simples moléculas centrais da bioquímica são necessárias muitas etapas. [...]
Terceira pista: das técnicas de construção Para fazer um arco de pedras são necessários andaimes de certo tipo; algo que suporte as pedras antes de elas estarem no seu lugar e se poderem suportar umas às outras. [...]
Quarta pista: da natureza das cordas Nenhuma das fibras de uma corda precisa de estar esticada de uma extremidade até a outra, desde que elas estejam suficientemente entrelaçadas para se segurarem mutuamente pelos lados. [...]
Quinta pista: da história da tecnologia A maquinaria primitiva é normalmente diferente na sua configuração (e conseqüentemente nos materiais de construção) da maquinaria moderna equivalente. A maquinaria primitiva tem de ser fácil de fazer a partir de materiais imediatamente disponíveis e ela tem de funcionar, mais ou menos, com o mínimo de estardalhaço. [...]
Sexta pista: da química Os cristais constroem-se por si próprios, de forma que poderia ser apropriada para materiais genéticos de ‘baixa tecnologia’. Mesmo o tipo mais primitivo de processo de impressão genética teria de ser razoavelmente rigoroso e envolver a associação de um número razoável de átomos. [...]
Sétima pista: da geologia A Terra está permanentemente a fabricar argila, como se pode ver pelas enormes quantidades dela que são transportadas pelos rios. Os minerais de argila são minúsculos cristais que crescem a partir de soluções aquosas resultantes da desagregação das rochas duras. [...] Fonte: Cairns-Smith, A. G. 1986. Sete pistas para a origem da vida. Lisboa, Editorial Presença.
Neste sábado, 12/9, o Poesia contra a guerra completa dois anos e onze meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 74.277 visitas haviam sido registradas.
Desde o balanço mensal anterior – Dois anos e dez meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Erich Fromm, Ernest Becker, Francisco Rodrigues Lobo, Goethe, Guenádi Aigui, Luís Veiga Leitão, Luiz Olavo Fontes, Manoel Caboclo, Paul Davies e Roberto Drummond. Além de outros autores que já haviam sido publicados antes.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Bartolomé Esteban Murillo, Jean-Baptiste Corot e Johan Barthold Jongkind.
O poeta é um repórter De pensamento ligado Ouvindo o que o povo diz Fazendo todo apanhado E sai contando na rua Tudo quando foi passado
Se viu na televisão Contando toda verdade Que um cientista disse Que há possibilidade De um homem ter um filho Havendo oportunidade
Agora chegou o tempo Das coisas tudo mudar O homem ficar em casa E a mulher vai trabalhar Não querendo ter mais filhos Mandando a trompa ligar
Com esse aperto de vida Aumenta o peso da cruz A fome avança no lar O dinheiro se reduz Apareceu este meio Para o homem dar à luz
Começou por Zé Totonho Maria da Conceição. A mulher disse para ele: Vou fazer a ligação Eu não quero mais ter filhos. Totonho disse: isto não
Ele disse Mariquinha Isto você não arranja Porque deixa a mulher fria Igual a um pinto de granja A mulher disse eu vou Nem que o diabo ‘franja’
A mulher do meu vizinho Tem quase setenta anos Fez agora ligação Para não perder os planos E eu vou fazer também Pra não haver desenganos
Seguiu dali foi ao médico E fez logo a ligação Para nunca mais ter filhos. Totonho disse então: Saiba que eu vou embora E arrumou o matulão
Daquele dia por diante Totonho se ausentou E não dormiu mais em casa Num cabaré se arranchou Quando menos esperava Totonho engravidou
Nisto ele conheceu Que a mulher tinha razão, Vendo o bucho crescer Totonho passava a mão O menino dava pulos Parecia um tubarão
Segurado numa corda Totonho em agonia Se contorcendo de dores O menino estremecia E a negrada dizendo: Zé Totonho vai dar cria?
Chamaram dona Maria Para pegar a criança A parteira experiente Disse logo sem tardança Pra este menino nascer Precisa cortar a pança
Mandaram chamar um médico Que era única esperança Quando o médico chegou De Totonho cortou a pança No dia 4 de agosto Nasceu a dita criança
Deu-se um grande rebuliço Quando o menino nasceu Às doze horas da noite Um terremoto se deu Pro lado do estrangeiro Que muita gente morreu
Os galos se espantaram Numa zoada tremenda Os cachorros alarmaram Numa enorme contenda Todo povo admirado De ver aquela legenda
Nisto o menino falou Para o povo que assistia Dizendo meu pai agora Me leve à água da pia Porque este mundo velho Está chegando o último dia
Desde o ano de oitenta Quando começou o jogo As coisas mudaram muito O mundo vai pegar fogo Já foi marcado por Deus Não adianta mais rogo
Logo o menino calou-se O pai ficou conformado Dizendo isto acontece A quem está desempregado Mas minha mulher trabalha Vai criá-lo com cuidado
Mariquinha disse: Totonho A preguiça é um horror Quando se perde o emprego Procura outro qualquer for Pois nunca falta serviço Pro homem trabalhador
Totonho lhe respondeu: O trabalho é muito ruim Abandonei a enxada Pode ela levar fim Quando eu puxava por ela Ela puxava por mim
É melhor se ter um filho E durante seu resguardo Beber caldo de urubu Comer cururu torrado Ou ser um guia de cego De que ir para o roçado
A mulher disse Totonho Esse ato é muito baixo Eu não sou bananeira Pra criar milho de macho Vou chamar Zé capador Para derribar-lhe o caixo Fonte: Moriconi, I., org. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema de cordel publicado em livro em 2000.
1. Li a notícia, de três a quatro linhas, na página 5 do Estado de Minas. Dizia que o deputado Teófilo Pires, do PR, tinha denunciado a existência do tráfico de nordestinos em Montes Claros, na Assembléia Legislativa.
2. Recortei a notícia e corri à redação do Binômio. Na mesma hora, José Maria Rabêlo decidiu: eu e o fotógrafo Antônio Cocenza íamos voar para Montes Claros.
3. O avião jogava muito e eu disse a Cocenza: Se esse avião não cair conosco, nós vamos comprar um nordestino e voltar com ele para Belo Horizonte...
4. Uma manhã, em Montes Claros, tudo parecia um rebate falso. Então surgiu um pau-de-arara carregado de nordestinos. Era um caminhão com placa de Campina Grande, Paraíba, e nós o paramos.
5. O motorista, Seu Juca, o dono do caminhão e daqueles homens e mulheres empoeirados que estavam na carroceria do pau-de-arara, estacionou num curral abandonado. Mandou os retirantes descerem e os colocou em fila.
6. Enquanto eu os examinava, olhando as mãos, a boca, os dentes, Cocenza disparava sua Rolleyflex. Combinamos uma estratégia: para todos os efeitos, eu era o filho de um fazendeiro do Vale do Rio Doce, e ia precisar de um recibo da compra.
7. Depois de muita conversa, Seu Juca concordou em dar o recibo de próprio punho. Compramos um casal e nordestinos, Manuel e Francisca, por quatro mil cruzeiros (o equivalente, hoje, a cerca de duzentos dólares). Seu Juca recebeu o dinheiro e nos entregou Manuel e Francisca, que, a partir daquele momento, segundo documento em meu poder, eram meus.
8. Então surgiu um problema: estávamos sem dinheiro para as passagens aéreas de Manuel e de Francisca até Belo Horizonte. Procuramos um irmão do jornalista Cipião Martins Pereira, Edgard, e ele nos emprestou o que precisávamos.
9. Quando o avião decolou, uma comitiva, em vários carros, chefiada pelo prefeito Simeão Pires Ribeiro (irmão do deputado Teófilo Pires), vinha chegando ao aeroporto. Objetivo: tomar de nós o casal de nordestinos, para não ‘conspurcar’ o nome de Montes Claros.
10. Foi uma sorte: a reportagem, publicada com destaque pelo Binômio, teve repercussão internacional. Até a revista Time deu a notícia. Pela primeira vez, na história da imprensa brasileira, o tráfico de nordestinos era mostrado e documentado.
11. Manuel e Francisca foram levados para a fazenda de meu primo Oswaldo Drummond, em Ferros. Eram livres. Eles não se deram bem lá e voltaram. Depois tomaram o rumo de São Paulo e nunca mais deram notícia. Fonte: Rabêlo, J. M. 1997. Binômio: edição histórica. BH, Armazém de Idéias & Barlavento Grupo Editorial.
Essa gente toda aí fora Os cães O cheiro da chuva A luz através da janela O vidro quebrado O piso frio de ladrilhos A mesa de centro O copo O resto de água Meu último pulmão