1. Fazer com que a palavra leve pese como a coisa que diga, para o que isolá-la de entre o folhudo em que se perdia.
2. Fazer com que a palavra frouxa ao corpo de sua coisa adira: fundi-la em coisa, espessa, sólida, capaz de chocar com a contígua.
3. Não deixar que saliente fale: sim, obrigá-la à disciplina de proferir a fala anônima, comum a todas de uma linha.
4. Nem deixar que a palavra flua como rio que cresce sempre: canalizar a água sem fim noutras paralelas, latente. Fonte: Melo Neto, J. C. 1994. Obra completa: volume único. RJ, Nova Aguilar. Poema publicado em livro em 1975.
Quando se pensa qualquer sociedade humana que tenha atingido o estágio de civilização urbana – em que a produção e/ou a captura de um excedente alimente permite a uma parte da população viver aglomerada, dedicando-se a outras atividades que não à produção de alimentos – a divisão entre urbe e campo aparece claramente aos olhos. São também aparentes as relações que se estabelecem entre os que vivem nas zonas urbanas e os que vivem na zona rural, mediante as quais os segundos fornecem aos primeiros parte da sua produção, em troca de produtos da cidade ou de certos serviços reais ou imaginários (governo, segurança, religião etc.). Já a divisão das mesmas sociedades em classes nem sempre aparece com a mesma clareza. Embora haja sempre uma estrutura social explícita, em castas, estamentos, grupos raciais ou religiosos etc., via de regra a divisão em classes não é óbvia. Um assalariado, por exemplo, pertence a uma classe diferente que o seu empregador, mas sendo ambos moradores da cidade (ou do campo) o seu status como membro da mesma comunidade ecológica é mais “evidente” que sua participação em classes diferentes. Somente em determinados momentos cruciais da história, quando a dinâmica da sociedade inclusiva enseja o enfrentamento global de classe contra classe, estando o futuro de toda sociedade em jogo, somente nestes momentos a estrutura de classes aparece à luz, sobrepujando as demais divisões sociais, inclusive a ecológica. Quando os camponeses da França arrasavam castelos, em apoio aos “sans-culottes” de Paris, ou quando os Junkers prussianos se aliaram aos industriais do Ruhr em apoio ao nazismo – para apontar apenas um momento revolucionário e outro contra-revolucionário – ninguém deixou de perceber que o antagonismo entre campo e cidade (ou entre agricultura e indústria) tinha um caráter historicamente muito menos decisivo que as contradições de classe. [...] Fonte: Singer, P. 1979. Economia política da urbanização, 6ª edição. SP, Brasiliense.
Não durmo, o sono escapa como um presságio. O fruto retorna à lama do caroço, recomeçando o sumo das ruínas.
Tento descansar no lado contrário. Careço de escuro no próprio escuro. Os objetos vão contornando a sombra, alforriando os pertences. A memória é o hábito de trocar os lençóis, mas há manchas que permanecem corroendo o tecido. Há manchas que limpam: o orvalho, o sêmen, a urina, sobras da natureza-morta.
Não durmo, protegida pelos punhos cerrados da cama. O sol da camisola branca confunde a pele, avulso, sufocado na colméia da noite. Um assassino rumina no insone, sem o perdão de um dia depois do outro.
Distraio os pensamentos por alguns minutos. Como ocupá-los em madrugadas inteiras?
Uma milícia de abelhas assopra as pálpebras, o assobio das asas. Assusto-me com o freio das juntas, ruído das vértebras e vísceras. Não encontro recato, velamento, para aquietar o fermento das veias.
Não entendo o silêncio e o subestimo como trégua da fala. Ele não começa ao cessar as palavras, não termina ao pronunciá-las.
Corro ao caminhar lenta, os chinelos arrastados, indecisa âncora, contrariando o leme e a direção da proa. A madeira se move, o solo é volúvel como a água. Os ombros carregam os parentes e as intrigas. Afundada no sopro, arqueio as costas. Estou presa à curvatura de um porão a céu aberto.
Enquanto as horas passam, o rosto pasta. Boi engordando o declive do campo.
Amadureci a covardia em sarcasmo. Posso rir do sofrimento. Mistérios existem para simular profundidade. Sou rasa, fútil. Não reverencio a primavera, a mais sádica das estações. Desde a infância, ela floresce minha asma.
Posso adiar a morte, nunca o nascimento. É impossível cortar a semente. Fonte: edição de abril/maio/junho de 2003 da revista Ciência & Cultura. Poema publicado em livro em 2004.
À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica do consumo e da abundância, criada pela multiplicação dos objectos, dos serviços, dos bens materiais, originando como que uma categoria de mutação fundamental na ecologia da espécie humana. Para falar com propriedade, os homens da opulência não se encontram rodeados, como sempre acontecera, por outros homens, mas mais por objectos. O conjunto das suas relações sociais já não é tanto o laço com os semelhantes quanto, no plano estatístico segundo uma curva ascendente, a recepção e a manipulação de bens e de mensagens, desde a organização doméstica muito complexa e com suas dezenas de escravos técnicos até ao “mobiliário urbano” e toda a maquinaria material das comunicações e das actividades profissionais, até ao espectáculo permanente da celebração do objecto na publicidade e as centenas de mensagens diárias emitidas pelo “mass media”; desde o formigueiro mais reduzido de quinquilharias vagamente obsessivas até aos psicodramas simbólicos alimentados pelos objetcos nocturnos, que vêm invadir-nos nos próprios sonhos. Os conceitos de “ambiente” e de “ambiência” só se divulgaram a partir do momento em que, no fundo, começávamos a viver menos na proximidade dos outros homens, na sua presença e no seu discurso; e mais sob o olhar mudo de objectos obedientes e alucinantes que nos repetem sempre o mesmo discurso – isto é, o do nosso poder medusado, da nossa abundância virtual, da ausência mútua de uns nos outros. Como a criança-lobo se torna lobo à força de com eles viver, também nós, pouco a pouco, nos tornamos funcionais. Vivemos o tempo dos objectos: quero dizer que existimos segundo o seu ritmo e em conformidade com a sua sucessão permanente. Actualmente, somos nós que os vemos nascer, produzir-se e morrer, ao passo que em todas as civilizações anteriores eram os objectos, instrumentos ou monumentos perenes, que sobreviviam às gerações humanas.
Os objectos não constituem nem uma flora nem uma fauna. No entanto, sugerem a impressão de vegetação proliferante e de selva em que o novo homem selvagem dos tempos modernos tem dificuldade em reencontrar os reflexos da civilização. A fauna e a flora que o homem produziu, que o assediam e atacam como nos maus romances de ficção científica, importa descrevê-las rapidamente como as contemplamos e vivemos – sem olvidar jamais que elas, no fausto e na profusão correspondentes, constituem o produto de uma actividade humana, sendo dominadas, não por leis ecológicas naturais mas pela lei do valor de troca. [...] Fonte: Baudrillard, J. 1981 [1970]. A sociedade de consumo. Lisboa, Edições 70.
La piedra es una frente donde los sueños gimen sin tener agua curva ni cipreses helados. La piedra es una espalda para llevar al tiempo con árboles de lágrimas y cintas y planetas.
Yo he visto lluvias grises correr hacia las olas levantando sus tiernos brazos acribillados, para no ser cazadas por la piedra tendida que desata sus miembros sin empapar la sangre.
Porque la piedra coge simientes y nublados, esqueletos de alondras y lobos de penumbra; pero no da sonidos, ni cristales, ni fuego; sino plazas y plazas y otras plazas sin muros.
Ya está sobre la piedra Ignacio el bien nacido. Ya se acabó; ¿qué pasa? Contemplad su figura: la muerte le ha cubierto de pálidos azufres y le ha puesto cabeza de oscuro minotauro.
Ya se acabó. La lluvia penetra por su boca. El aire como loco deja su pecho hundido, y el Amor, empapado con lágrimas de nieve, se calienta en la cumbre de las ganaderías.
¿Qué dicen? Un silencio con hedores reposa. Estamos con un cuerpo presente que se esfuma, con una forma clara que tuvo ruiseñores y la vemos llenarse de agujeros sin fondo.
¿Quién arruga el sudario? ¡No es verdad lo que dice! Aquí no canta nadie, ni llora en el rincón, ni pica las espuelas, ni espanta la serpiente: aquí no quiero más que los ojos redondos para ver ese cuerpo sin posible descanso.
Yo quiero ver aquí los hombres de voz dura. Los que doman caballos y dominan los ríos; los hombres que les suena el esqueleto y cantan con una boca llena de sol y pedernales.
Aquí quiero yo verlos. Delante de la piedra. Delante de este cuerpo con las riendas quebradas. Yo quiero que me enseñen dónde está la salida para este capitán atado por la muerte.
Yo quiero que me enseñen un llanto como un río que tenga dulces nieblas y profundas orillas, para llevar el cuerpo de Ignacio y que se pierda sin escuchar el doble resuello de los toros.
Que se pierda en la plaza redonda de la luna que finge cuando niña doliente res inmóvil; que se pierda en la noche sin canto de los peces y en la maleza blanca del humo congelado.
No quiero que le tapen la cara con pañuelos para que se acostumbre con la muerte que lleva. Vete, Ignacio: No sientas el caliente bramido. Duerme, vuela, reposa: ¡También se muere el mar! Fonte: Lorca, F. G. 1996. Obra poética completa, 3ª edição. SP, Martins Fontes. Poema publicado em livro em 1935.
Luz de estrela tão distante que me alcança aqui sozinho após viajar infinitos quilômetros e atravessar o entrefolhas de minha árvore favorita – o que a fez assim tão certeira?
Colecciono a matéria imperceptível deste canto murmurado árdua ventura de pássaro preso equilibrado em granadas de música luz arquitectura de crime antigo – a breve profanação de ruínas colecciono: de rostos ancorados na penumbra do álcool: nu abandono silencioso – ávida prisão a do próprio corpo à morte se condena: ofício de cinza onde sempre é noite – colecciono a suspensa hesitação do canto de tanta luz tão vulnerável – através da neve: e de guerras – Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1974.
Nesta terça-feira, 12/1, o Poesia contra a guerra completa três anos e três meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 83.649 visitas haviam sido registradas nesse período.
Desde o balanço mensal anterior – Três anos e dois meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Alan Macfarlane, Fernando Pinto do Amaral, George F. Kneller, Gordon Lightfoot, Hans Küng, J. K. Rowling, Óssip Mandelstam, Otacílio Batista e Robert Arking. Além de outros autores que já haviam sido publicados antes.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Gustave Moreau, Jacques-Louis David e Stefan Lochner.
Mulher nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor
Otacílio Batista
Numa luta de gregos e troianos Por Helena, a mulher de Menelau Conta a história que um cavalo de pau Terminava uma guerra de dez anos Menelau, o maior dos espartanos Venceu Páris, o grande sedutor Humilhando a família de Heitor Em defesa da honra caprichosa Mulher nova, bonita e carinhosa Faz o homem gemer sem sentir dor
Alexandre, figura desumana Fundador da famosa Alexandria Conquistava na Grécia e destruía Quase toda a população tebana A beleza atrativa de Roxana Dominava o maior conquistador Que depois de vencê-la, o vencedor Entregou-se à pagã mais que formosa Mulher nova, bonita e carinhosa Faz o homem gemer sem sentir dor
A mulher tem na face dois brilhantes Condutores fiéis do seu destino Quem não ama o sorriso feminino Desconhece a poesia de Cervantes A bravura dos grandes navegantes Enfrentando a procela em seu furor Se não fosse a mulher mimosa flor A história seria mentirosa Mulher nova, bonita e carinhosa Faz o homem gemer sem sentir dor
Virgulino Ferreira, o Lampião, Bandoleiro das selvas nordestinas Sem temer a perigo nem ruínas Foi o rei do cangaço no sertão Mas um dia sentiu no coração O feitiço atrativo do amor A mulata da terra do condor Dominava uma fera perigosa Mulher nova, bonita e carinhosa Faz o homem gemer sem sentir dor
Na velhice o sujeito nada faz A não ser uma igreja que visita Mas se acaso encontrar mulher bonita Ele troca Jesus por satanás Pensa logo no tempo de rapaz Diz pra ela me ame, por favor A resposta que vem é não senhor Sua idade passou, deixe de prosa Mulher nova bonita e carinhosa Faz o homem gemer se sentir dor Fonte (para as estrofes 1-4): Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema publicado em livro em 1976.
1. [...] Olhando através da História, verificamos que a natureza tem sido estudada por várias razões. No Liceu de Aristóteles, ela era estudada para esclarecer e aperfeiçoar aquele que buscava o conhecimento; na Europa renascentista, para desvendar o plano de Deus em Sua criação; nos tempos modernos, para ampliar o conhecimento, tanto por amor ao saber quanto por seus usos sociais e técnicos. Mas os cientistas parecem ter sido inspirados menos por esses ambiciosos propósitos do que por duas emoções primordiais: o assombro e o medo. O homem primitivo estava em grande parte à mercê da natureza. Talvez o seu motivo mais forte para instigação natural fosse atingir a paz de espírito, através de alguma explicação plausível para os desastres da natureza. Ele queria descobrir a causa de terremotos, inundações, incêndios, e doenças. Na China os filósofos naturais taoístas, na Europa antiga os estóicos, os epicuristas e os adeptos do atomista Demócrito, todos praticavam a Ciência por esse motivo. Epicuro escreveu que, “se não fôssemos perturbados por apreensões acerca de fenômenos no céu e a respeito da morte, se nada disso nos afetasse de um modo ou de outro, e também se não fôssemos perturbados por nosso fracasso em perceber os limites das dores e dos desejos, não teríamos necessidade alguma de estudar a natureza”.
O medo é aliviado pelo reconhecimento de que a natureza é ordenada e inteligível. O assombro começa com esse reconhecimento. À medida que a Ciência crescia e os homens começavam a dominar o mundo, o assombro converteu-se na força motriz das grandes realizações científicas. [...] [...]
A finalidade da Ciência é chegar a um entendimento exato e abrangente da ordem da natureza. Como os elementos constituintes da natureza são quase infinitamente diversos, essa busca já consumiu muitos séculos e consumirá muitos mais. Por conseguinte, a Ciência é intrinsecamente histórica. Não só o conhecimento científico mas também as técnicas pelas quais ele é produzido, as tradições de pesquisa que o produzem e as instituições que as apóiam, tudo isso muda em resposta a desenvolvimentos nelas e no mundo social e cultural a que pertencem. Se quisermos entender o que a Ciência realmente é, devemos considerá-la em primeiro lugar e acima de tudo como uma sucessão de movimentos dentro do movimento histórico mais amplo da própria civilização. [...] Fonte: Kneller, G. F. 1980. A Ciência como atividade humana. RJ & SP: Zahar & Edusp.
Estou no imo da idade – encobre- se a rota, o tempo impõe distância – e o freixo do bordão se cansa, e é reles o bolor do cobre. Fonte: Campos, H.; Schnaiderman, B. & Archer, N. 1991. “Glasnost” e poesia. Revista USP 10: 104-8. Poema publicado em livro em 1937.
Afinal, tudo que há de mais nobre e mais puro Neste mundo de sombras e aparências Fui eu quem revelou ou concebeu...
Fui a primeira luz neste planeta obscuro! Fui a suprema voz de todas as consciências! Fui o mais alto intérprete de Deus!
Dei alma à Natureza indiferente, Inteligência às coisas, sentimentos Às forças cegas e automáticas do Cosmos!...
Acompanhei e dirigi os povos Na sua eterna migração para o Poente; Levantei os primeiros monumentos E os primeiros impérios milenários; Teci as grandes lendas tutelares, Despertei na memória das criaturas A sua antiga tradição divina, Criando as religiões, as fábulas, os mitos Para iludir a dor universal; Abri os horizontes infinitos; Bebi o néctar das primeiras raças; Plasmei os altos símbolos humanos. Sutilizei o instinto e imaginei o amor; Fui a força ideal das civilizações! O gênio transfigurador da História! O espírito anônimo dos séculos! E, harmonioso, profético, profundo, Passei humanizando as coisas pelo mundo, Para divinizar os homens sobre a Terra! Fonte: Leoni, R. 1998. Luz mediterrânea. BH, Garnier. Poema publicado em livro em 1922.