27 fevereiro 2014

O dióxido de carbono e a água

Richard Corfield

Muito pouco do CO2 dissolvido em águas naturais está na forma de gás dissolvido como tal. Quando as moléculas do gás CO2 se dispersam na água, uma parte reage com a água para produzir um ácido fraco, o ácido carbônico (H2CO3), mas a maior parte ocorre como CO2 hidratado – escrito como CO2(aq) –, onde cada molécula de CO2 é cercada por moléculas de água. Como é difícil distinguir analiticamente entre CO2(aq) e H2CO3(aq), na prática o dióxido de carbono dissolvido é normalmente referido apenas como ácido carbônico. Seguindo essa abreviação conveniente, a equação química para a solução do gás CO2 na água pode ser escrita como

CO2(aq) + H2O → H2CO3(aq)                       (2.3a)

Sob qualquer temperatura, a quantidade de CO2 que se dispersa na água depende da concentração de CO2 na atmosfera e da concentração de ácido carbônico na água.

Quando H2CO3 suficiente se acumula na água, parte do carbono dissolvido é liberado como CO2 para a atmosfera na reação inversa:

H2CO3(aq) → CO2(aq) + H2O                       (2.3b)

Eventualmente, a reação direta (Eq. 2.3a) e a reação inversa (Eq. 2.3b) ocorrem em proporções iguais e um estado de equilíbrio dinâmico e equilíbrio químico é estabelecido. Em equilíbrio, os reagentes (do lado esquerdo da equação) estão formando produtos (do lado direito da equação) à mesma taxa que os produtos se decompõem para seus reagentes constituintes. Embora as concentrações de produtos e reagentes não mudem, há uma troca constante e igual entre eles em nível molecular. Para representar isso, os sistemas de equilíbrio são escritos com duas setas apontando em direções opostas:

CO2(aq) + H2O ⇌ H2CO3(aq)                       (2.3c)
[...]

Fonte: Corfield, R. 2011 [2008]. O ciclo do carbono. In: Cockell, C., org. Sistema Terra-vida: Uma introdução. SP. Oficina de Textos.

25 fevereiro 2014

Uma noite encontrei uma pedra

Herberto Helder

Uma noite encontrei uma pedra
oh pedra pedra!
verde ou azul, de lado, como se estivesse morta.
Encontrei a noite como uma pedra inclinada
sobre o meu corpo
puro, profundo como um sino.
Vi que havia em mim um pensamento
inocente, uma pedra
quando se entra na noite pelo lado onde
há menos gente.
Ou era um sino de um futuro
maior silêncio, tão
grande silêncio para se habitar só em gestos.

Aí eu poderia erguer-me na ponta
dos pés e ficar para sempre: chama
que a noite viesse alimentar com sua
própria matéria que se queima. Noite –
– lenha para nossa leveza humana. Encontrei
uma coisa caída, talvez madura, um pouco
metida pela terra dentro.
Alguma coisa dessas coisas da imobilidade, objecto
executado pelo sono,
onde eu passava os dedos apavorados e doces.

Som ou degrau que eu beijaria,
elevando-se da terra, não como uma árvore
ou uma mulher
desenvolvida em sua atmosfera de doçura
e dolorosa exaltação. Alguma coisa
subida de raízes mais milagrosas, que se não
exprimia com a brevidade
subtil de folhas, ou a quente agudeza de dedos espalhados.
Algo não levantado inteiramente da obscuridade
de uma vida sepulta,
e não jacente por sobre o qual milhares de estrelas
rodassem as asas de gelo.
Uma coisa numa existência demorada entre
o êxtase e a força sombria
das estações.

Encontrei uma pedra pedra
que não era uma colina com o mês de março em volta.
Nem, era a boca materna aberta
debaixo dos rios lisos.
Uma coisa para se encostar a cabeça, oh não
para morrer. Para alguém subir
e de onde não era possível gritar. Uma pedra
sem folhas, um sino
sem pensamento. Encontrei algo que não andava
pelos montes nem seria atravessado
por uma flecha. E não sangrava.
Que não se ouvia se cantava. Talvez fosse fria
ou vivesse abrasada sobre a ilusão.

Era verde na noite quando se vem de longe,
ou azul, ou verde pelo milagre
que não existe. Ou então
era clara de certas flores que se dobram.
Ou então era alta, ou esmagada, ou degolada,
no meio de um silêncio global.
Encontrei em mim essa clareira desarrumada na seiva,
como se um poço distante ressoasse,
ou como
se os dias se fossem aproximando da minha idade
triunfante,
e eu me calasse e movesse o rosto aberto
pela luz para a abstracta violência
da solidão.

Encontrei
um animal adormecido, uma flor hipnotizada,
uma viola ferozmente taciturna.
Era amarela só se eu levantasse a cabeça, ou era
tão escura na infância grande.
Encontrei uma verde pedra cravada no mundo
das pessoas, à entrada da candura,
tão admirável pelo azul da terra dentro.
Uma coisa incompreendida no instante
de morrer para a frente.

Encontrei ondas e ondas contra mim, como se eu fosse
um homem morto entre palavras.
Campos de cevada inspirados no fogo que batiam
nas costas das minhas mãos,
aldeias inteiras cantando sua pureza
quase louca. Encontrei depois o lugar
onde deitar a cabeça e não ser mais ninguém
que se saiba. Uma pedra
pedra seca, uma vida entre muitos dons.
Com as raízes de quem divaga.
Uma pedra sem som como quem se move
sobre os alimentos.

Encontrei como quem arrasta para a noite
um símbolo pesado e ardente.
Ou a ideia
da morte mais leve que o coração sem nada
do amor.
Se me perguntam, digo: encontrei
a lua, o sol.
Somente o meu silêncio pensa.
– Se era uma pedra, um sino. Uma vida verdadeira.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1962.

23 fevereiro 2014

Efemeridade, efemeridade

Lindolf Bell

A palavra não é nebulosa estrela.
Sequer desarticulada ilha de afinidades.

Estopim aceso, sim, águas de inquietação,
a palavra não é jogo de dados.
Jogo de dúvidas, sim, dádivas,
dardos envenenados de selvagem silêncio.

Por um fio a palavra é prata.
Por um fio a palavra é pata de cavalo.
Por um fio, ato de injustiça.

Não há nenhuma pressa na palavra
em seu destino de lesma.
A palavra, flor justa se for bem usada.
A palavra de fogo-fátuo feita.
A palavra que não faz acordos em vão.

A palavra
é não dar com a língua nos dentes.
Ainda que arranquem a língua.
E cortem a palavra em pedaços
e a exponham em postes públicos da degradação.

Não é sempre a palavra
só tiro de festim.
Pode ser fim de linha.
Quimera, exato fingimento de vôo.
Nada, tudo, nunca e ninguém.
Assentimento, delicada práxis de afetos,
que somente se adivinha.

A palavra
que em breve
será a palavra dentro em breve.
A palavra
que se reveste de linho real
na linha real da vida:
efemeridade,
efemeridade.

Fonte (seis versos): Nejar, C. 2011. História da literaturabrasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1984.

21 fevereiro 2014

Segredos


Ximena Armas (1946-). Secretos. 1998.

Fonte da foto: Wikipedia.

19 fevereiro 2014

Manifestações sonoras

Helmut Sick

Para as diversas espécies animais, as manifestações sonoras são exatamente tão características como aspectos morfológicos. No Brasil nada existe que possa orientar a esse respeito. E precisamente o Brasil oferece material, dos mais atraentes, em abundância nesse campo.

As manifestações sonoras compreendem dois fenômenos: a vocalização e a chamada música instrumental.

Vocalização

A voz trai uma ave que não se vê ou que não se consegue ver suficientemente bem, na densa vegetação, no vôo, à hora do crepúsculo ou à noite. [...]

A ave produz sua voz na siringe, localizada na extremidade inferior da traquéia, na bifurcação dos brônquios. Nisso difere do homem e dos mamíferos em geral, cuja voz vem da laringe, situada na extremidade superior da traquéia; na ave esta serve sobretudo para vedar o sistema respiratório enquanto ela bebe e come. [...]

Música instrumental

Alguns sons emitidos pelas aves para fins de comunicação não o são pela siringe, nas vias respiratórias, mas de outro modo. São denominados música instrumental, em contraposição à música vocal ou voz, como definido por Darwin (1871). [...]

Existe o estalar com o bico, às vezes reforçado até tornar-se um matracar, na maioria dos casos produzido por aves que se sentem ameaçadas por algum perigo. [...]

Na música instrumental ocupam o primeiro lugar os ruídos produzidos com as asas. [...]

As penas das asas ou rêmiges podem se transformar em penas sonoras, como na jacutinga, Pipile jacutinga ou no cuspidor, Conopophaga lineata. [...]

Fonte: Sick, H. 1999. Ornitologia brasileira, 2ª edição. RJ, Nova Fronteira.

17 fevereiro 2014

Cairá o bastão de nossa mão

Pär Lagerkvist

Cairá o bastão de nossa mão,
o vagar terá um fim.
Deserta ficará a terra dos homens,
nada mais acontecerá.
Nenhum homem sequer olhará mais longe.
Nenhum jovem estará desperto.
Nem sequer o peregrino sobre o duro leito de palha
saboreará a beatitude de sua alma.

Já se terão ido aqueles que aqui viveram.
Em silêncio afastaram-se de tudo o que exista.
Nenhum jamais regressou.

As estrelas ainda flamejam na eternidade,
por tempos infinitos.
O cintilar da Via Láctea, a nebulosa,
ainda atravessa os espaços.
E tudo é como antes. Somente nós não somos mais.
O fogo das nossas barracas se apagou.

Fonte: Freire, C. 2004. Babel de poemas: uma antologia multilíngüe. Porto Alegre, L&PM.

15 fevereiro 2014

Vandalismo

Augusto dos Anjos

Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Como os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

Fonte: Anjos, A. 2004. Eu e outros poemas, 46ª edição. RJ, Bertrand. A primeira edição do livro foi publicada em 1912.

13 fevereiro 2014

A dupla hélice

James D. Watson

1.
Nunca vi Francis Crick num estado de espírito modesto. Talvez com outras pessoas ele se mostrasse assim, mas nunca tive razões para o julgar de outra forma. Isto nada tem a ver com a sua presente fama. Ele já é hoje bastante falado, habitualmente com reverência, e talvez um dia seja incluído na categoria de um Bohr ou de um Rutherford. Tal, porém, não acontecia quando, no outono de 1951, cheguei aos Laboratórios Cavendish, da Universidade de Cambridge, para me reunir a um pequeno grupo de físicos e químicos que trabalhavam em estruturas tridimensionais de proteínas. Nessa época tinha ele 35 anos e era quase completamente desconhecido. Embora alguns dos seus mais próximos colegas tivessem consciência do valor da sua mente rápida e penetrante, e frequentemente procurassem o seu conselho, muitas vezes era pouco apreciado e muita gente pensava que [ele] falava [demais].
[...]

Fonte: Watson, J. D. 1987 [1968]. A dupla hélice. Lisboa, Gradiva.

12 fevereiro 2014

Oitenta e oito meses no ar

F. Ponce de León

Nesta terça-feira, 12/2, o Poesia contra a guerra completa sete anos e quatro meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 234.941 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Sete anos e três meses no ar – foram aqui publicados pela primeira vez textos dos seguintes autores: Bernardo Gavião, Carl G. Hempel, Cláudio Murilo Leal, Cyro Siqueira, Fredy Blank, J. J. Thomas, Janez Menart, José Honório Rodrigues, Nicholas Lund e Paul Amos Moody. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Jules Bastien-Lepage, Mark Catesby e Philip Wilson Steer.

11 fevereiro 2014

O feno


Jules Bastien-Lepage (1848-1884). Les foins. 1877.

Fonte da foto: Wikipedia.

09 fevereiro 2014

A explicação como redução ao conhecido

Carl G. Hempel

Afirma-se, algumas vezes, que o papel de uma explicação é o de tornar compreensível um fato novo ou não conhecido, por meio de processo que o assimile ou reduza a fatos que já nos são familiares. Contudo, não há dúvida de que essa idéia não caracteriza adequadamente a explicação científica.

Sem cogitarmos da fluidez e subjetividade da noção de familiaridade aqui invocada, diremos que essa concepção sugere, antes de tudo, que os fatos familiares não requerem explicações. Entretanto, se, em nossa vida cotidiana, podemos admitir essa maneira de ver, não pode ocorrer o mesmo no campo da Ciência. Em verdade, a Ciência tem-se dado a grandes esforços para explicar a variação das marés, as tempestades, o arco-íris, o azul do céu, as semelhanças entre pais e filhos, os lapsos no falar e no escrever, as lacunas de memórias e muitas outras coisas ‘familiares’. O ponto é ilustrado, de maneira marcante, pelo paradoxo de Olbers. Em 1826, o astrônomo alemão Heinrich Olbers notou que, como conseqüência de umas poucas presunções simples e extremamente plausíveis, inclusive algumas leis da ótica e a hipótese de que as estrelas se distribuem uniformemente por todo o universo, o céu deveria mostrar-se muito brilhante em todas as direções, dia e noite. Dessa forma, o fato de a noite ser escura, fato que nos é tão familiar, foi visto como fonte de sério problema, para o qual se reclamava explicação. Resposta foi recentemente sugerida com base na teoria cosmológica de um universo em expansão: pode ser demonstrado, em verdade, que a extinção de remotas fontes de luz responde pelo fato de a escuridão dominar a noite. Eis, pois, um fato muito conhecido que vem a ser explicado em termos de uma teoria onde se reúnem idéias pouco familiares e, para dizer tudo, muito estranhas.
[...]

Fonte: Morgenbesser, S. org. 1979. Filosofia da ciência. SP, Cultrix.

07 fevereiro 2014

Soneto para Sacha

Fredy Blank

Precisava de irmão a princesinha.
Deus o queria assim, era o destino:
Por isso uma manhã teve a mãezinha,
– Uma manhã de sol – esse menino.

Tamanha era a alegria que se tinha
No lar, que, a bem dizer, não imagino
Como emoção tão grande à casa vinha
Dar, por nascer, um ser tão pequenino!

Alegria sem dor também não era.
A mãe sofreu, e antes daquele dia
Sofrera a filha a dor da longa espera.

Sua vida era pálida e sombria,
Deus deu-lhe o sol, um sol de primavera:
A princesinha teve o que queria.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. A autora, a quem Manuel Bandeira se referia como Mme. Blank ou Moussy, era mãe de Joanita Blank.

05 fevereiro 2014

O futuro da observação de aves

Nicholas Lund

Há algum aspecto da vida humana ao qual ainda não tenha sido oferecida uma mãozinha intrometida da tecnologia? Há uma entorpecida esquerda ludista no planeta que não tenha sido forçada, de um jeito ou de outro, a recolher-se ao holofote frio da eficiência eletrônica? Pode ser que nós nunca saibamos com certeza (eles não respondem às minhas mensagens de correio eletrônico), mas o meu palpite é que naum.

Mesmo nós, observadores de aves – que necessitamos de pouco mais do que um par de binóculos e um bom guia de campo –, somos constantemente confrontados com uma sucessão de novidades. De fato, vivemos em uma época de expansão dos guias ornitológicos nos Estados Unidos. Aqueles livros com fotos bonitas de aves selvagens e mapas de distribuição – você provavelmente já viu um empoeirando no peitoril da janela de sua avó – estão passando hoje por um turbilhão de inovações, debates e controvérsias. Eles evoluem a um ritmo mais rápido do que os seus objetos de estudo.

Um bom guia de campo estadunidense deve conter ao menos 700 das 976 espécies da lista oficial da Associação Estadunidense de Observação de Aves [American Birding Association] – cada espécie com as suas próprias peculiaridades de plumagem, hábitos e canto. Mesmo no caso de uma única espécie, diferenças de plumagem entre jovens e adultos e entre machos e fêmeas são igualmente prováveis de serem encontradas no campo, o que significa dizer que todas elas precisam ser ilustradas, visando deixar o observador devidamente preparado. Guias de campo apresentam um problema particularmente complicado em termos de exposição dos dados: qual o melhor jeito de um livro referir-se a essa massa incrivelmente detalhada de informações?

Os guias de campo

Os primeiros guias de campo – se é que podemos chamá-los assim – foram feitos para deleitar, não para ensinar. Ornitólogos e pintores estadunidenses pioneiros (entre os quais Mark Catesby, Alexander Wilson e John James Audubon) criaram imagens vívidas de aves nativas, muitas das quais eram até então desconhecidas da ciência. Publicado entre 1827 e 1838, The birds of America, de Audubon, é o avô dos guias de campo estadunidenses – um trabalho imponente, retratando mais de 500 espécies na natureza. (A Norton publicou recentemente uma grandiosa e bonita edição das pranchas cromolitográficas de Audubon.) É uma obra de arte de tirar o fôlego; as cores vivas e as cenas emocionantes provocam um entusiasmo de naturalista até mesmo nos observadores contemporâneos mais sedentários.

Mas não é um guia de campo. Para começar, tem mais de um metro de altura – você precisaria de uma mula para levá-lo ao campo. O ímpeto de Audubon foi a inspiração, não a utilidade; de fato, ele propositalmente excluiu qualquer texto ao lado das pinturas, de modo a não ter de fornecer às bibliotecas inglesas cópias gratuitas de seu penoso trabalho. Algumas referências importantes apareceram em seguida, a mais notável das quais foi Birds through an opera-glass (1889), de Florence Merriam Bailey; no entanto, a maioria dos guias de aves do século 19 era de obras densas, cheias de notas detalhadas e observações, mas com apenas umas poucas imagens.

A era moderna dos guias de campo começou em 1934, com A field guide to the birds, de Roger Tory Peterson. Parece óbvio agora, mas a grande inovação de Peterson foi simplesmente mostrar as danadas das aves às pessoas. Em vez de calhamaços de texto, espécies semelhantes eram ilustradas lado a lado, em uma única página. Mapas de distribuição foram acrescentados, de modo a dar aos observadores iniciantes uma ideia dos padrões de distribuição e migração. Mesmo a simples introdução de setas apontando para pontos-chave na identificação revelou ser uma grande melhoria. Para muitos, A field guide to the birds foi algo como uma Pedra de Roseta, permitindo-lhes entender uma linguagem que até então eles nem sequer sabiam que era falada. Os guias de campo de Peterson foram um sucesso: o primeiro esgotou em duas semanas e hoje, quase 80 anos depois, eles ainda continuam sendo impressos.

O Sistema de Identificação de Peterson, comparando ilustrações, dominou o mundo dos guias de campo. A linha de livros de Peterson foi a mais bem-sucedida, embora a National Geographic e a Golden tenham produzido concorrentes conhecidos. O estilo ilustrado foi aperfeiçoado por David Sibley, em 2000, com o seu Sibley guide to birds, que eu ainda considero ser o melhor guia de campo existente. A parte artística é efetivamente utilitária e as maiores dimensões do livro (aparentemente ainda maiores em 2014) – que foi motivo de críticas na época – permitem uma incomparável abrangência de plumagens e subespécies.

E abrangência é o que os observadores de aves necessitam. O divertido da observação de aves é que você nunca sabe o que irá ver, de modo que quando se vê algo incomum é necessário estar bem guarnecido. Uma das primeiras aves “boas” que eu encontrei por conta própria foi um dos primeiros registros da gaivota-da-cabeça-preta no Mississipi e jamais me esquecerei de como eu fiquei sentado dentro do meu carro congelado, folheando freneticamente o Sibley até me certificar, antes de espalhar a notícia, de que eu não estava diante de uma ave mais trivial.

Durante todo esse tempo, os guias de campo ilustrados foram assombrados por um desafio persistente: as fotografias. Afinal de contas, por que essa gente desperdiça suas vidas pintando meticulosamente cada ave dos Estados Unidos, quando eles poderiam simplesmente tirar uma foto? O que é melhor do que a coisa real? É uma boa suposição, mas qualquer um que já tenha tentado fotografar uma ave sabe o quão difícil isso pode ser. Mesmo quando tudo está bem arrumado – a ave está virada para a direção certa, a luz é suficiente, não há folhas obstruindo partes importantes –, a ave baterá asas tão logo você aponte a câmera. Durante anos, foi muito difícil obter uma foto de qualidade de cada espécie, com cada uma das diferentes plumagens, e os guias que tentaram ficaram marcados por instantâneos borrados, escuros ou perdidos.

A revolução digital

A fotografia digital mudou tudo. Fotografias boas são agora mais fáceis e mais baratas de se obter e podem ser manipuladas para melhorar a cor e remover imperfeições. O resultado é uma melhora acentuada na oferta de guias de campo fotográficos; os melhores incluem o livro de bolso Kaufman field guide to birds of North America e o detalhado Stokes field guide to the birds of North America. Missão cumprida: as fotos nesses livros representam precisamente como as aves se parecerão quando você as encontrar no campo. Dito isto, a inovação trazida por esses guias é limitada; eles são basicamente o estilo Peterson, com fotos no lugar de gravuras. Um verdadeiro rearranjo do gênero apareceu com Richard Crossley.

Eu não conheço Crossley, mas uma passada de olhos no seu Crossley ID guide: Eastern birds me leva a acreditar que ele é louco. Um tipo de gênio louco, contudo, de certo modo semelhante ao dr. Frankenstein. Como o monstro de Frankenstein, Eastern birds é imenso; com 1,7 kg, é o mais pesado dos guias de campo modernos – mais pesado, digamos, do que um saco com 20 tordos-americanos [American robins; Turdus migratorius]. Como o monstro, ele também é um conjunto de partes difusas, a saber, quase 10 mil fotografias do próprio Crossley. Cada espécie é apresentada como uma colagem de fotos, tiradas de diferentes ângulos e distâncias, dispostas sobre um fundo que é o hábitat preferido da ave.

O efeito imediato é desconcertante e quando ele saiu, em 2011, os observadores tiveram de aplacar o ímpeto de agarrar os seus forcados. Era enorme. Era confuso. Com o tempo, no entanto, a utilidade torna-se aparente. Enquanto os guias no estilo Peterson apresentam as aves como se elas estivessem posando para a foto perfeita, tirada em algum tipo de estúdio aviário Instantâneos Glamorosos, o guia de Crossley revela pontos de vista menos satisfatórios, porém mais realistas. As aves são mostradas no meio da serapilheira ou como manchas distantes voando alto. Para uso no campo, é mais útil do que a maioria dos guias, como se nota pelo que os observadores frequentemente dizem: “Eu vi apenas de relance quando ele voou... que tordo tem uma cauda vermelha?”

Ver ou ouvir?

Tão inovadores quanto possam ser, no entanto, os guias de Crossley ainda são livros. Odeio chutar a indústria gráfica quando ela está caída, mas levar um guia de campo de papel quando se vai observar aves logo se tornará tão antiquado como trazer uma espingarda para coletar espécimes. Uma nova variedade de aplicativos móveis oferece uma melhoria significativa em relação aos guias de papel. Ter um guia inteiro no bolso de trás é, obviamente, mais conveniente do que carregar um livro de 1,5 kg. E, o mais importante, os guias eletrônicos (Sibley e iBird são os melhores) contêm toda a variedade de sons das aves.

A verdade é que as aves são mais frequentemente ouvidas do que vistas e um ouvido apurado para os cantos únicos, os chamados, os assovios e os sons de voo das aves é o que caracteriza os melhores observadores. Relatar os chamados de uma ave em um guia de papel pode ser uma futilidade hilariante. Eis aqui o que o Stokes guide diz a respeito do canto do pardal-de-nelson [Nelson sparrow; Ammodramus nelsoni]: “Um áspero e nada musical crt tshhhhhhhjut”. Não deve ser difícil ouvir isto, certo? A inclusão de áudio real com imagens em um único dispositivo mostrou ser extremamente útil para a aprendizagem no campo.

Não que trazer uma biblioteca de sons de aves para o campo não tenha as suas desvantagens. Os debates que campeiam na comunidade de observadores a respeito do uso de gravações de cantos ou chamados para atrair aves precisam melhorar. Os adversários dizem que as gravações estressam as aves e as distraem de suas verdadeiras obrigações vitais. Os defensores do uso limitado e responsável das gravações – entre os quais, eu me incluo – contra-atacam com argumentos parciais, do tipo “É só por uns dois segundos” e “Me deixe em paz”. O júri científico ainda está do lado de fora, mas os debates serão quentes.

Assim como alguns observadores ainda manterão por muito tempo um envelhecido Peterson no seu bolso de trás, os aplicativos móveis de identificação de aves vieram para ficar. Contudo, o fato de o guia ser de papel ou eletrônico não muda o desafio fundamental da observação de aves: saber como olhar para uma ave. Guias de campo são utilizados apenas como uma preparação ou em retrospecto; o negócio real da observação permanece entre você, a ave e os seus binóculos. Isso até que os nossos óculos Google possam identificar aves voando ou os nossos telefones possam escanear uma pena caída e reportem a subespécie. Eu dou um ano.

Fonte: versão original foi publicada na revista eletrônica Slate. O autor vive e observa aves em Washington, DC (EUA), e escreve para o Birdist. Tradução e intertítulos: Felipe A. P. L. Costa.

03 fevereiro 2014

Língua de boi ou falavera

Leomar Fróes

às vezes eu fico olhando para o rosto
de qualquer pessoa
com um olho nero em fogo e outro bobo de atenção
de procuração para ver se enxergo as cooperativas vivas
de cada solidão
mesmo se não acho acredito até que cada cara
tem uma tarefa contínua e incessante
com as dores do parto
do instante
então me dá vontade quando agarro uma boca parada
de reclamação
de enfiar os dedos nela só pra ver
se encontro a língua falavera ou para ver se os dentes
mordem
mais e mundo além de alguém também me dá vontade
de beliscar
no ponto de consolo de uns olhos gelados
só pra desfiscalizar os nervos de controle e fazer
piscar três vezes uma lágrima
de boi
no matadouro.

Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.

01 fevereiro 2014

À morte do desventurado

Bernardo Gavião

Eis o termo; eis a pedra; eis a verdade;
O desengano enfim; enfim a morte;
Eis o gume ante o qual se quebra a forte
E ampla, vasta, infinita eternidade.

Não é sonho, meu Deus, é realidade,
Harpa que estala em ultimo transporte,
A cova revoltou-se, é lei da sorte,
Um mistério talvez, fatalidade.

E o barro mortal, na triste lida,
Tombou sem força, e em campa regelada,
Lá foram-se ilusões, lá foi-se a vida!

Morreste, Feliciano, e abrilhantada
Voou tua alma, lá nos céus perdida,
E findou-se o teu ser, findou teu nada. 

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 2. SP, Cultrix & Edusp. Poema recitado no enterro de Feliciano Pinto Coelho Duarte (1828-1850).

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