30 agosto 2014

Rebeldes em busca de uma causa

René Dubos

Este livro deveria ter sido escrito com indignação. Eu deveria estar exprimindo em termos mais enérgicos possíveis minha angústia ao ver tantos valores humanos e naturais corrompidos ou destruídos em sociedades ricas, bem como minha repulsão pelo malogro da comunidade científica em organizar um esforço sistemático contra a profanação da vida e da natureza. A feiúra ambiental e a violação da natureza podem ser desculpadas quando resultam de pobreza mas não quando ocorrem em meio à fartura e sem dúvida são produzidas pela opulência. O descuido para com os problemas humanos, por parte da comunidade científica, poderia ser justificado se fosse devido à falta de recursos ou de métodos de abordagem, mas não pode ser perdoado numa sociedade que sempre encontra recursos suficientes para resolver os problemas que dizem respeito a interesses egoístas.
[...]

Frases como ‘um só mundo’ e ‘ fraternidade humana’ são repetidas incessantemente nas conversas e discursos oficiais exatamente ao mesmo tempo em que guerras políticas e distúrbios raciais grassam pelo mundo inteiro. Os políticos e os que lidam com imóveis advogam programas para o embelezamento de cidades e estradas ao mesmo tempo [em] que permitem que o excitante esplendor da paisagem natural americana degenere numa imensa feiúra. As encostas de montanhas antes cobertas com magníficas florestas hoje são revestidas por vegetação rala; os detritos industriais provocam a esterilidade dos cursos d’água onde abundavam peixes; os agentes de poluição do ar dão origem a nevoeiros opacos e irritantes que ofuscam os céus mais brilhantes e espetaculares. O preço do poder, simbolizado pelas superestradas e fábricas gigantescas, é a violação da natureza e da vida humana.
[...]

Pouco antes de sua morte em 1963, o novelista e ensaísta inglês Aldous Huxley lamentou, em várias oportunidades, que a literatura e as artes não tivessem derivado da ciência e da tecnologia modernas inspiração alguma que valesse a pena. Ele imaginava que a razão para esse malogro era que os escritores e artistas não estavam a par dos modernos desenvolvimentos da ciência e da tecnologia. Isso pode ser parte da explicação, mas somente uma parte muito pequena. Como a maioria dos outros seres humanos, os escritores e artistas estão preocupados principalmente com percepções, emoções e valores que o empreendimento científico deve deliberadamente ignorar. Entretanto, os cientistas não deveriam contentar-se em estudar a máquina biológica cujo corpo e mente podem ser alterados e controlados por drogas e dispositivos mecânicos. Deveriam preocupar-se mais atentamente com a natureza e os objetivos do homem. Somente assim poderiam aprender a falar ao homem por meio de uma linguagem verdadeiramente humana e não [por meio] de jargão técnico.

Fonte: Dubos, R. 1974 [1968]. Um animal tão humano. SP, Melhoramentos & Edusp.

29 agosto 2014

A bordo do Beagle

Richard Keynes

Em Autobiography, Charles afirmou que “A viagem do Beagle foi de longe o acontecimento mais importante de minha vida e determinou toda a minha carreira”, mas como se viu neste relato de suas atividades durante o percurso, foi apenas bem perto do fim da expedição que pôs na forma escrita suas primeiras dúvidas sobre a estabilidade das espécies existentes. Desse modo, pode-se perguntar como, após mais de quatro anos de fatigante estudo geológico e extensa coleta de animais e plantas, ele chegou à sua mais importante descoberta, lançando luz sobre a maneira como surgiram as novas espécies?

No mesmo livro Charles também afirmava, talvez para ficar de acordo com a moda da época, mas sem qualquer rigor, que “trabalhou [sob] princípios verdadeiramente baconianos e, sem qualquer teoria, coletou fatos por atacado”. A verdade é que o elemento central de sua abordagem científica era a paixão pela teorização, e embora admitisse que a especulação é uma falha séria quando se faz observação, sempre declarou que a sistematização era essencial tanto antes como depois da atividade empírica. Isso ficou muitíssimo claro nas anotações extensas e extremamente bem organizadas que desde o início fez de todas as suas investigações geológicas e zoológicas.
[...]

Fonte: Keynes, R. 2004. Aventuras e descobertas de Darwin a bordo do Beagle. RJ, Jorge Zahar.

25 agosto 2014

Chartres

Archibald MacLeish

Pedras, o que me espanta
Não é que tenhais resistido
Por tanto tempo a tanto vento e a neve tanta:
Pois não vos tinham construído
Para arrostar nesta colina
O inverno e o vento desabrido?

Meu espanto é que suportais,
Sem vos gastardes, nossos olhos
Nossos olhos mortais.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema publicado em livro em 1926.

23 agosto 2014

Hino da manhã

Antero de Quental

Tu, casta e alegre luz da madrugada,
Sobe, cresce no céu, pura e vibrante,
E enche de força o coração triunfante
Dos que ainda esperam, luz imaculada!

Mas a mim pões-me tu tristeza imensa
No desolado coração. Mais quero
A noite negra, irmã do desespero,
A noite solitária, imóvel, densa,

O vácuo mudo, onde astro não palpita,
Nem ave canta, nem sussurra o vento,
E adormece o próprio pensamento,
Do que a luz matinal... a luz bendita!

Porque a noite é a imagem do Não-Ser,
Imagem do repouso inalterável
E do esquecimento inviolável,
Que anseia o mundo, farto de sofrer...

Porque nas trevas sonda, fixo e absorto,
O nada universal o pensamento,
E despreza o viver e o seu tormento.
E olvida, como quem está já morto...

E, interrogando intrépido o Destino,
Como réu o renega e o condena,
E virando-se, fita em paz serena
O vácuo augusto, plácido e divino...

Porque a noite é a imagem da Verdade,
Que está além das cousas transitórias.
Das paixões e das formas ilusórias,
Onde somente há dor e falsidade...

Mas tu, radiante luz, luz gloriosa,
De que és símbolo tu? Do eterno engano,
Que envolve o mundo e o coração humano
Em rede de mil malhas, misteriosa!

Símbolo, sim, da universal traição,
Duma promessa sempre renovada
E sempre e eternamente perjurada,
Tu, mãe da Vida e mãe da Ilusão...

Outros estendem para ti as mãos,
Suplicantes, com fé, com esperança...
Ponham outros seu bem, sua confiança
Nas promessas e a luz dos dias vãos...

Eu não! Ao ver-te, penso: Que agonia
E que tortura ainda não provada
Hoje me ensinará esta alvorada?
E digo: Por que nasce mais um dia?

Antes tu nunca fosses, luz formosa!
Antes nunca existisses! e o Universo
Ficasse inerte e eternamente imerso
Do possível na névoa duvidosa!

O que trazes ao mundo em cada aurora?
O sentimento só, só a consciência,
Duma eterna, incurável impotência,
Do insaciável desejo, que o devora!

De que são feitos os mais belos dias?
De combates, de queixas, de terrores!
De que são feitos? de ilusões, de dores,
De misérias, de mágoas, de agonias!

O sol, inexorável semeador,
Sem jamais se cansar, percorre o espaço,
E em borbotões lhe jorram do regaço
As sementes inúmeras da Dor!

Oh! como cresce, sob a luz ardente,
A seara maldita! como freme
Sob os ventos da vida e como geme
Num sussurro monótono e plangente!

E cresce e alastra, em ondas voluptuosas,
Em ondas de cruel fecundidade,
Com a força e a subtil tenacidade
Invencível das plantas venenosas!

De podridões antigas se alimenta,
Da antiga podridão do chão fatal...
Uma flagrância mórbida, mortal
Lhe ressuma da seiva peçonhenta...

E é esse aroma lânguido e profundo,
Feito de seduções vagas, magnéticas,
De ardor carnal e de atrações poéticas,
É esse aroma que envenena o mundo!

Como um clarim soando pelos montes,
A aurora acorda, plácida e inflexível,
As misérias da terra: e a hoste horrível,
Enchendo de clamor os horizontes,

Torva, cega, colérica, faminta,
Surge mais uma vez e arma-se à pressa
Para o bruto combate, que não cessa,
Onde é vencida sempre e nunca extinta!

Quantos erguem nesta hora, com esforço,
Para a luz matinal as armas novas,
Pedindo a luta e as formidáveis provas,
Alegres e cruéis e sem remorso,

Que esta tarde há-de ver, no duro chão
Caídos e sangrentos, vomitando
Contra o céu, com o sangue miserando,
Uma extrema e importante imprecação!

Quantos também, de pé, mas esquecidos,
Há-de a noite encontrar, sós e encostados
A algum marco, chorando aniquilados
As lágrimas caladas dos vencidos!

E por quê? para quê? para que os chamas,
Serena luz, ó luz inexorável,
À vida incerta e à luta inexpiável,
Com as falsas visões, com que os inflamas?

Para serem o brinco dum só dia
Na mão indiferente do Destino...
Clarão de fogo fátuo repentino,
Cruzando entre o nascer e a agonia...

Para serem, no páramo enfadonho,
À luz de astros malignos e enganosos,
Como um bando de espectros lastimosos,
Como sombras correndo atrás dum sonho...

Oh! não! luz gloriosa e triunfante!
Sacode embora o encanto e as seduções,
Sobre mim, do teu manto de ilusões:
A meus olhos, és triste e vacilante...

A meus olhos, és baça e lutuosa
E amarga ao coração, ó luz do dia,
Como tocha esquecida que alumia
Vagamente uma cripta monstruosa...

Surges em vão, e em vão, por toda a parte,
Me envolves, me penetras, com amor...
Causas-me espanto a mim, causas-me horror,
E não te posso amar – não quero amar-te!

Símbolo da Mentira universal,
Da aparência das cousas fugitivas,
Que esconde, nas moventes perspectivas,
Sob o eterno sorriso o eterno Mal;

Símbolo da Ilusão, que do infinito
Fez surgir o Universo, já marcado
Para a dor, para o mal, para o pecado,
Símbolo da existência, sê maldito!

Fonte: Quental, A. 2004. Melhores poemas. SP, Global. Poema publicado em livro em 1886.

22 agosto 2014

Imagens estabilizadas na retina

Roy M. Pritchard

Na visão normal, o olho está constantemente em movimento. Pequenos movimentos involuntários persistem mesmo quando o olho está ‘fixo’ num objeto estacionário. Como resultado disso, a imagem na retina do olho se mantém em movimento constante. Um dos movimentos do globo ocular faz com que a imagem se afaste vagarosamente do centro da fóvea, a região de máxima acuidade visual onde as células receptoras, os cones, estão mais densamente concentradas. Esse deslize termina num movimento rápido que traz de volta a imagem para o centro da fóvea. Sobrepondo-se ao movimento de deslizar, há um tremor, com frequência acima de 150 ciclos por segundo, cuja amplitude é aproximadamente metade do diâmetro de um cone receptor isolado.
[...]

Fonte: Pritchard, R. M. 1977 [1970]. A inteligência dos elefantes. In: Scientific American, Psicobiologia: as bases biológicas do comportamento. RJ, LTC. Artigo originalmente publicado em 1961.

20 agosto 2014

Labirinto cúbico

Anastácio Ayres de Penhafiel

INUTROQUECESAR
NINUTROQUECESA
UNINUTROQUECES
TUNINUTROQUECE
RTUNINUTROQUEC
ORTUNINUTROQUE
QORTUNINUTROQU
URORTUNINUTROQ
EUQORTUNINUTRO
CEUQORTUNINUTR
ECEUQORTUNINUT
SECEUQORTUNINU
ASECEUQORTUNIN
RASECEUQORTUNI

Fonte: Martins, W. 1977. História da inteligência brasileira, vol. 1. SP, Cultrix & Edusp. Poema escrito no século 18.

18 agosto 2014

Indo ao mercado


Charles Laval (1862-1894). Allant au marché, Bretagne. 1888.

16 agosto 2014

Vou me estirar neste paturá

Raul Bopp

Vou me estirar neste paturá
para ouvir barulhos de beira de mato
e sentir a noite toda habitada de estrelas

Quem sabe uma delas
com seus fios de prata
viu o rosto luminoso da filha da rainha Luzia?

Dissolvem-se rumores distantes
num fundo de floresta anônima

Sinto bater em cadência
a pulsação da terra

Silêncios imensos se respondem...

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. O trecho acima corresponde ao capítulo 18 de um poema mais extenso (33 capítulos) publicado em livro em 1931.

15 agosto 2014

Licenciaturas: educadores versus pesquisadores

Jorge Nagle

Antes de tudo, um retrato sintético de como a questão vem sendo tratada no país.

A Licenciatura inicia-se entre nós com a fórmula 3 + 1. Este é o esquema tradicional e por mais que se tente fazer alguma coisa diferente, não se conseguiu, ainda, alterar esse esquema: primeiro, os alunos assistem aulas nas chamadas disciplinas de conteúdo; depois, interrompe-se ou não esta formação e passa-se a ministrar algumas aulas de disciplinas de natureza pedagógica. A experiência vem demonstrando que essa maneira de formar o professor vem fracassando no decorrer do tempo. É bom lembrar que, no caso, justapõem-se dois universos de conhecimento – de um lado, disciplinas de conteúdo e, de outro, matérias pedagógicas e de tal forma que umas nada têm a ver com as outras. São dois universos separados, entre os quais, até hoje, não se conseguiu um mínimo de articulação, por mais esforço que tenha sido empregado. Essa é a primeira alternativa, a mais comum ou tradicional.

A segunda, em que se pensou, foi a seguinte: primeiro se faz o bacharelado, depois quem tiver interessado em ser professor fará o curso de licenciatura. Mas a experiência nesse sentido no Brasil tem sido extremamente pequena. Talvez este seja um esquema melhor do que o anterior. Mas o significado de melhor só pode ser julgado pela análise da programação estabelecida. A licenciatura, nesse modelo, teria um pouco mais de liberdade para desenvolver-se; não estaria tão sufocada dentro de um horário em que a disputa sempre acabou favorecendo os docentes das disciplinas de conteúdo.

O terceiro esquema em que se tem pensado leva em conta que uma coisa é o curso de bacharelado do começo ao fim e outra coisa é o curso de licenciatura, também do começo ao fim. Então, o curso de licenciatura seria qualitativamente diferente do curso de bacharelado; qualitativamente, porque as matérias de conteúdo expressariam, desde o começo, a preocupação com o ensino. Isto significa que um grande ajustamento seria feito nelas para atender às exigências das escolas onde o professor exerceria suas funções (no caso, ou escolas de 1º e 2º graus). Este é o esquema que se tentou usar em alguns países. Parece que não chega a ser um bom esquema, porque, além de formar separadamente duas categorias de profissionais (bacharel e licenciado), parte-se da suposição de que a licenciatura é um curso mais fácil ou mais simples. É preciso afirmar que a formação do professor é algo tão complicado que não vale a pena diminuir, nele, a força das disciplinas de conteúdo.
[...]

Fonte: Nagle, J. 1986. As unidades universitárias e suas licenciaturas: educadores x pesquisadores. In: Catani, D. B. et al., orgs. Universidade, escola e formação de professores. SP, Brasiliense.

13 agosto 2014

Um dia

António Osório

Um dia pensará alguém, lendo estes versos,
por que razão ocultou
(de propósito) tanta piedade
e sofreu de mão aberta
por rapaces, ébrios
e um lobinho que sua mãe enterrou
escavando com focinho cruel o túmulo,
procurava escrever direito
por linhas tortas
e amava a tal ponto a vida
que dela ficou aquém, com suas garatujas;
porque quis ser folhas de azinheira
para uma cabra montês, pagando o mal
dos outros e o seu
e tímida inveja tinha das aves
(só delas) e dessas delicadas
entabulações amorosas,
que o assombravam tanto quanto a perfídia,
um pedinte, a luxúria
ou a consoladora luz matutina;
porque quis, não ao dilúvio,
mas à arrependida recessão das águas,
penou com as reses
a caminho do seu fim, como uvas
de camião no outono,
e todas as estações o angustiavam
(não só a primavera), devido à perfeita,
à meticulosa organização do nada;
e porque amou tão pouco, ele desejoso
de voltar ao fundo de sua mãe,
não por afã da morte ou mórbido enfado,
mas para recomeçar como criança.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1978.

12 agosto 2014

Sete anos e dez meses no ar

F. Ponce de León

Nesta terça-feira, 12/8, o Poesia contra a guerra completou noventa e quatro meses (= sete anos e dez meses) no ar. Ao longo desse período, e até o fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue registrou 250.524 visitas. (A propósito, a ducentésima quinquagésima milésima visita ocorreu na última quarta-feira, dia 6/8.)

Desde o balanço anterior – Noventa e três meses no ar – foram aqui publicados pela primeira vez textos dos seguintes autores: Alfred Edward Housman, Cornélio Pires, Hans Liebmann, Isaac Levi, Jan Skácel, Laurie Garrett, Louis Leithold, Pasquale Cipro Neto e Paulo Roberto do Carmo. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Roger de La Fresnaye, William George Gillies e William McTaggart.

10 agosto 2014

Os mortos

Jan Skácel

Estão sempre conosco os nossos mortos
e, de fato, jamais estamos sós.

E vêm como sombras
no cabelo as cinzas e pedaços de argila.

Seus rostos parecem anuviados
e contudo nos reconhecemos.

Suavemente cheiram suas mãos
ao lóio que no ano passado florescia.

Cumprimentam silenciosamente, como a um dos seus,
a mim, mutilado pelo tempo presente.

Fonte: Freire, C. 2004. Babel de poemas: uma antologia multilíngüe. Porto Alegre, L&PM.

09 agosto 2014

A conquista do ar


Roger de La Fresnaye (1885-1925). Le conquête de l’air. 1913.

Fonte da foto: Wikipedia.

08 agosto 2014

Em língua também existe moda

Pasquale Cipro Neto

A moda não existe só na roupa, nos sapatos, no cabelo. A cada ano, uma praia entra na moda, um restaurante, um tipo de música, uma casa de espetáculo, um bar, uma rua, uma avenida, um bairro. Muitas modas acabam passando, algumas ficam de vez e deixam de ser simplesmente moda e passam a afazer parte da tradição.

Tradição. É aí que está o xis do problema. Em se tratando de língua culta, tradição é fundamental. Não basta um locutor esportivo criar uma expressão para que, da noite para o dia, ela passe a ter respaldo na língua culta. Não é assim que a coisa funciona. É verdade que a língua é vida. No Brasil, mais do que viva, vivíssima. Palavras e expressões surgem diariamente. E cacoetes também. E aí se instala a confusão. Pode? Não pode? Vale? Não vale? É correto?
[...]

Fonte: Cipro Neto, P. 2002. O dia-a-dia da nossa língua. SP, Publifolha.

06 agosto 2014

O poema mais triste já escrito

F. Ponce de León

O título desta postagem foi inspirado no artigo ‘The saddest poem ever written’, de Nick Ripatrazone, cuja versão em português foi publicada ontem no Observatório da Imprensa (ver aqui).

O artigo de Ripatrazone trata do poema ‘Primavera e outono’, de Gerard Manley Hopkins. Existem ao menos três versões em português para este poema, a saber: aqui, em tradução de Alípio Correia de França Neto; aqui, em tradução de Aíla de Oliveira Gomes; e aqui, em tradução de Luís Gonçales Bueno de Camargo.

Reproduzo a seguir a minha sugestão para uma versão adicional:

Primavera e outono 

A uma criança

Gerard Manley Hopkins

Margaret, você está sofrendo
Pelo Arvoredo Dourado desfolhando?
Folhas, como as coisas do homem, a você
Com suas ideias puras, importam – não?
Ah, mas o coração envelhece
E diante dessas visões arrefece
Pouco a pouco, não resta um lamento
Embora mundos de bosques descamisados persistam;
E, contudo, você irá chorar e saberá a razão.
O nome, criança, não importa mais:
Primaveras de pesar seguem iguais.
A boca não expressou, nem a mente,
O que ouve o coração, o espírito pressente:
Eis a ruína que com o homem nasce,
Eis, Margaret, o que a aflige.

04 agosto 2014

O bicentenário dos Estados Unidos

Laurie Garrett

1.
O grande drama do Ebola passou quase despercebido nos EUA em 1976, mesmo no Centro de Controle de Doenças. A nação estava preocupada com outras coisas. E a África, distante demais para atrair a atenção dos americanos.

No seu 200º aniversário, os Estados Unidos estavam demasiado ocupados em celebrar a data, patrioticamente, com um comércio de souvenirs vermelho-branco-azuis, musicais de Hollywood que reviviam os grandes momentos da história, regatas de réplicas de caravelas antigas pelo rio East de Nova York e com uma boa dose de ufanismo no que diz respeito ao brilhante teor da Declaração da Independência e da Constituição.  Somavam-se a essas diversões uma surpreendente atmosfera política, em que o presidente Gerald Ford empenhava-se em vencer as eleições nacionais tendo como adversário um político do sul praticamente desconhecido, chamado Jimmy Carter. Um exame de consciência nacional estava em andamento, à medida que os americanos refletiam no significado da derrota do país no Vietnã e nos escândalos de Watergate da administração Nixon.

Mesmo se os americanos não tivessem em 1976 uma disposição para o isolacionismo e a atenção limitada aos problemas nacionais, ainda assim não seriam capazes de absorver os acontecimentos de Yambuku porque tinham mais do que suficientes notícias de doenças com que se preocupar. Afinal, 1976 foi o ano das duas mais exaustivas e dispendiosas pesquisas da história do Serviço de Saúde Pública dos EUA, o caso da gripe suína e a doença dos legionários.
[...]

Fonte: Garrett, L. 1995. A próxima peste. RJ, Nova Fronteira.

02 agosto 2014

A um Passarinho cantando

Gregório de Matos

Contente, alegre, ufano Passarinho
Que enchendo o bosque todo de harmonia,
Me está dizendo a tua melodia,
Que é maior tua voz, que o teu biquinho:

Como da pequenez desse corpinho
Sai tão grande tropel de vozeria?
Como cantas, se és flor de Alexandria?
Como cheiras, se és pássaro de arminho?

Simples cantas, incauto garganteias,
Sem ver que estás chamando ao homicida,
Que te segue por passos de garganta.

Não cantes mais, que a morte lisonjeias,
Esconde a voz, esconderás a vida,
Que em ti não se vê mais que a voz que canta.

Fonte: Spina, S. 1995. A poesia de Gregório de Matos. SP, Edusp.

eXTReMe Tracker