Antero de Quental
Tu, casta e alegre luz da
madrugada,
Sobe, cresce no céu, pura
e vibrante,
E enche de força o
coração triunfante
Dos que ainda esperam,
luz imaculada!
Mas a mim pões-me tu
tristeza imensa
No desolado coração. Mais
quero
A noite negra, irmã do
desespero,
A noite solitária,
imóvel, densa,
O vácuo mudo, onde astro
não palpita,
Nem ave canta, nem
sussurra o vento,
E adormece o próprio
pensamento,
Do que a luz matinal... a
luz bendita!
Porque a noite é a imagem
do Não-Ser,
Imagem do repouso
inalterável
E do esquecimento
inviolável,
Que anseia o mundo, farto
de sofrer...
Porque nas trevas sonda,
fixo e absorto,
O nada universal o
pensamento,
E despreza o viver e o
seu tormento.
E olvida, como quem está
já morto...
E, interrogando intrépido
o Destino,
Como réu o renega e o
condena,
E virando-se, fita em paz
serena
O vácuo augusto, plácido
e divino...
Porque a noite é a imagem
da Verdade,
Que está além das cousas
transitórias.
Das paixões e das formas
ilusórias,
Onde somente há dor e
falsidade...
Mas tu, radiante luz, luz
gloriosa,
De que és símbolo tu? Do
eterno engano,
Que envolve o mundo e o
coração humano
Em rede de mil malhas, misteriosa!
Símbolo, sim, da
universal traição,
Duma promessa sempre
renovada
E sempre e eternamente
perjurada,
Tu, mãe da Vida e mãe da
Ilusão...
Outros estendem para ti
as mãos,
Suplicantes, com fé, com
esperança...
Ponham outros seu bem,
sua confiança
Nas promessas e a luz dos
dias vãos...
Eu não! Ao ver-te, penso:
Que agonia
E que tortura ainda não
provada
Hoje me ensinará esta
alvorada?
E digo: Por que nasce mais
um dia?
Antes tu nunca fosses, luz
formosa!
Antes nunca existisses! e
o Universo
Ficasse inerte e
eternamente imerso
Do possível na névoa
duvidosa!
O que trazes ao mundo em
cada aurora?
O sentimento só, só a
consciência,
Duma eterna, incurável
impotência,
Do insaciável desejo, que
o devora!
De que são feitos os mais
belos dias?
De combates, de queixas,
de terrores!
De que são feitos? de
ilusões, de dores,
De misérias, de mágoas,
de agonias!
O sol, inexorável
semeador,
Sem jamais se cansar,
percorre o espaço,
E em borbotões lhe jorram
do regaço
As sementes inúmeras da
Dor!
Oh! como cresce, sob a
luz ardente,
A seara maldita! como freme
Sob os ventos da vida e
como geme
Num sussurro monótono e
plangente!
E cresce e alastra, em
ondas voluptuosas,
Em ondas de cruel
fecundidade,
Com a força e a subtil
tenacidade
Invencível das plantas
venenosas!
De podridões antigas se
alimenta,
Da antiga podridão do
chão fatal...
Uma flagrância mórbida,
mortal
Lhe ressuma da seiva
peçonhenta...
E é esse aroma lânguido e
profundo,
Feito de seduções vagas,
magnéticas,
De ardor carnal e de
atrações poéticas,
É esse aroma que envenena
o mundo!
Como um clarim soando
pelos montes,
A aurora acorda, plácida
e inflexível,
As misérias da terra: e a
hoste horrível,
Enchendo de clamor os
horizontes,
Torva, cega, colérica,
faminta,
Surge mais uma vez e
arma-se à pressa
Para o bruto combate, que
não cessa,
Onde é vencida sempre e
nunca extinta!
Quantos erguem nesta
hora, com esforço,
Para a luz matinal as
armas novas,
Pedindo a luta e as
formidáveis provas,
Alegres e cruéis e sem
remorso,
Que esta tarde há-de ver,
no duro chão
Caídos e sangrentos,
vomitando
Contra o céu, com o
sangue miserando,
Uma extrema e importante
imprecação!
Quantos também, de pé,
mas esquecidos,
Há-de a noite encontrar,
sós e encostados
A algum marco, chorando
aniquilados
As lágrimas caladas dos
vencidos!
E por quê? para quê? para
que os chamas,
Serena luz, ó luz inexorável,
À vida incerta e à luta
inexpiável,
Com as falsas visões, com
que os inflamas?
Para serem o brinco dum
só dia
Na mão indiferente do
Destino...
Clarão de fogo fátuo
repentino,
Cruzando entre o nascer e
a agonia...
Para serem, no páramo
enfadonho,
À luz de astros malignos
e enganosos,
Como um bando de
espectros lastimosos,
Como sombras correndo
atrás dum sonho...
Oh! não! luz gloriosa e
triunfante!
Sacode embora o encanto e
as seduções,
Sobre mim, do teu manto
de ilusões:
A meus olhos, és triste e
vacilante...
A meus olhos, és baça e
lutuosa
E amarga ao coração, ó
luz do dia,
Como tocha esquecida que
alumia
Vagamente uma cripta
monstruosa...
Surges em vão, e em vão,
por toda a parte,
Me envolves, me penetras,
com amor...
Causas-me espanto a mim,
causas-me horror,
E não te posso amar – não
quero amar-te!
Símbolo da Mentira
universal,
Da aparência das cousas
fugitivas,
Que esconde, nas moventes
perspectivas,
Sob o eterno sorriso o
eterno Mal;
Símbolo da Ilusão, que do
infinito
Fez surgir o Universo, já
marcado
Para a dor, para o mal,
para o pecado,
Símbolo da existência, sê
maldito!
Fonte: Quental, A. 2004. Melhores poemas. SP, Global. Poema
publicado em livro em 1886.