A história da humanidade se confunde com a história das guerras. Deveríamos lutar para que se confundisse apenas com a história da literatura.
30 novembro 2007
Plebiscito
Artur Azevedo
A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio.
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
– Papai, que é plebiscito?
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
– Papai?
Pausa:
– Papai?
Dona Bernardina intervém:
– Ó senhor Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
– Que é? Que desejam vocês?
– Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
– Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito? [...] Fonte: Machado, A. M., org. 2002. Em família. RJ, Nova Fronteira. Conto originalmente publicado em 1894.
Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder tão firme e silencioso como só houve no tempo mais antigo. Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer, sorrindo com ironia e doçura no fundo de um alto segredo que os restitui à lama. De doces mãos irreprimíveis. – Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas, as casas encontram seu inocente jeito de durar contra a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.
Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta do gosto, o entusiasmo do mundo. Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio admirável das fontes – pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste como fogo exemplar. Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores tenebrosas, e temos memória e absorvente melancolia e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos.
Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos, espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos que não viram as torrentes infindáveis das rosas, ou as águas permanentes, ou um sinal de eternidade espalhado nos corações rápidos – Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam pelos muitos sentidos dos meses, dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra, para que se faça uma ordem, uma duração, uma beleza contra a força divina?
Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha. Alguém viera do mar. Alguém chegara ao estrangeiro, coberto de pó. Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos, inspirações. – Estas casas serão destruídas. Como um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente no seu casamento solar, assim se esgotará cada casa, esbulhada de um fogo, vergando a demorada cabeça para os rios misteriosos da terra onde os próprios arquitectos se desfazem com suas mãos múltiplas, as caras ardendo nas velozes iluminações.
Falemos de casas. É verão, outono, nome profuso entre as paisagens inclinadas. Traziam o sal, os construtores da alma, comportavam em si restituidores deslumbramentos em presença da suspensão de animais e estrelas, imaginavam bem a pureza com homens e mulheres ao lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente, tocando uns nos outros – comovidos, difíceis, dadivosos, ardendo devagar.
Só um instante em cada primavera se encontravam com o junquilho original, arrefeciam o resto do ano, eram breves os mestres da inspiração. – E as casas levantavam-se sobre as águas ao comprido do céu. Mas casas, arquitectos, encantadas trocas de carne doce e obsessiva – tudo isso está longe da canção que era preciso escrever.
Falemos de casas, da morte. Casas são rosas para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança nos abandona para sempre. Casas são rios diuturnos, nocturnos rios celestes que fulguram lentamente até uma baía fria – que talvez não exista, como uma secreta atividade.
Falemos de casas como quem fala da sua alma, entre um incêndio, junto ao modelo das searas, na aprendizagem da paciência de vê-las erguer e morrer com um pouco, um pouco de beleza. Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1961.
Uma saudade É do tempo que andávamos juntos Era um verdadeiro temporal Mas estávamos sempre juntos Outra saudade é do tempo Que inda nem te conhecia E simplesmente eu desejava estar sozinho Era tão bom, era tão calmo, tão feliz
Uma terceira saudade É completamente inesperada para mim Ela pega um tempo que, absolutamente, Eu não vivi E que tenho saudade Nessa saudade não tem você, Não tem ninguém, não tem recordação Na verdade ela tem uns traços Que eu não sei dizer de onde vem
É uma saudade moderna Não tem tempo, não tem hora Nem a mínima lógica É agora! Acontece no momento e ai de quem não se toca Ela tem a propriedade de não retroceder Quanto bate atordoa: que é isso?! Que é isso?! E no entanto é isso mesmo Parece que é esperança até que dói
É uma saudade perfeita Com alegria, sofrimento Só que bem mais moderna É a glória! Eu não sei como explicar mas essa saudade é a glória Ela incide sobre um tempo que não cabe na história Escapa da consciência e se projeta pra fora Fonte: encarte que acompanha o álbum Diletantismo (1983), do grupo Rumo.
Para a maioria das pessoas, “sexo” implica automaticamente “macho” ou “fêmea”. Não para um biólogo. [...] [S]exo significa mistura de genes ao se reproduzir. A reprodução sexuada produz descendentes pela mistura de genes de dois pais, enquanto a reprodução assexuada dá origem a descendentes a partir de um único pai, como na clonagem. A definição de reprodução sexuada não faz menção a “macho” e “fêmea”. Então, o que “macho” e “fêmea” têm a ver com o sexo? A resposta, pode-se supor, é que, quando a reprodução sexuada ocorre, um pai é macho e outro, fêmea. Mas como sabemos qual é o macho? O que torna um macho, macho, e uma fêmea, fêmea? Há mesmo apenas dois sexos? Pode haver um terceiro? Em qualquer caso, como definimos macho e fêmea?
“Gênero” também implica automaticamente em “macho” e “fêmea” para a maioria das pessoas. Portanto, se definirmos macho e fêmea biologicamente, terminamos definindo gêneros da mesma forma? Similarmente, no caso de adjetivos como “masculino” e “feminino”, podemos defini-los biologicamente. Além disso, entre humanos, um “homem” é automaticamente macho e uma “mulher” necessariamente fêmea? Pode-se pensar que sim, claro, mas, refletindo-se, essas palavras-chave admitem grande quantidade de opções. [...]
Quando falo de humanos, acho útil distinguir entre categorias sociais e biológicas. “Homem” e “mulher” são categorias sociais. Temos a liberdade de decidir quem conta como homem e quem conta como mulher. O critério muda de tempos em tempos. [...]
Não temos a mesma liberdade com categoriais biológicas. “Macho” e “fêmea” são categorias biológicas, e o critério utilizado para classificar um organismo como macho ou fêmea tem que funcionar para vermes e baleias, algas marinhas e sequóias. Quando se trata de humanos, o critério biológico de macho e de fêmea não coincide 100% com o critério social atual de homem e mulher. [...]
Para um biólogo, “macho” significa produzir gametas pequenos e “fêmea”, produzir gametas grandes. E ponto final! Por definição, o menor dos dois gametas é chamado de espermatozóide e o maior, óvulo. [...] Fonte: Roughgarden, J. 2005. Evolução do gênero e da sexualidade. Londrina, Editora Planta.
Assim como a criança humildemente afaga a imagem do herói, assim me aproximo de ti, Maiakóvski. Não importa o que me possa acontecer por andar ombro a ombro com um poeta soviético. Lendo teus versos, aprendi a ter coragem.
Tu sabes, conheces melhor do que eu a velha história. Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada.
Nos dias que correm a ninguém é dado repousar a cabeça alheia ao terror. Os humildes baixam a cerviz: e nós, que não temos pacto algum com os senhores do mundo, por temor nos calamos. No silêncio de meu quarto a ousadia me afogueia as faces e eu fantasio um levante; mas amanhã, diante do juiz, talvez meus lábios calem a verdade como um foco de germes capaz de me destruir.
Olho ao redor e o que vejo e acabo por repetir são mentiras. Mal sabe a criança dizer mãe e a propaganda lhe destrói a consciência. A mim, quase me arrastam pela gola do paletó à porta do templo e me pedem que aguarde até que a Democracia se digne aparecer no balcão. Mas eu sei, porque não estou amedrontado a ponto de cegar, que ela tem uma espada a lhe espetar as costelas e o riso que nos mostra é uma tênue cortina lançada sobre os arsenais.
Vamos ao campo e não os vemos ao nosso lado, no plantio. Mas ao tempo da colheita lá estão e acabam por nos roubar até o último grão de trigo. Dizem-nos que de nós emana o poder mas sempre o temos contra nós. Dizem-nos que é preciso defender nossos lares, mas se nos rebelamos contra a opressão é sobre nós que marcham os soldados.
E por temor eu me calo. Por temor aceito a condição de falso democrata e rotulo meus gestos com a palavra liberdade, procurando, num sorriso, esconder minha dor diante de meus superiores. Mas dentro de mim, com a potência de um milhão de vozes, o coração grita – MENTIRA! Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema publicado em livro do autor de 1987.
De regresso ao mundo e a meu corpo As estradas já não anoitecem à sombra de meus gestos nem meu rastro lhes imprime qualquer destino Sou a água em cuja pele os astros se detêm A pedra que conforma o bojo das montanhas O vôo dos ares Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4a edição. RJ, Aeroplano.
When you’re down and troubled And you need some loving care And nothin’, nothin’ is goin’ right Close your eyes and think of me And soon I will be there To brighten up even your darkest night
You just call out my name And you know wherever I am I’ll come runnin’ to see you again Winter, spring, summer or fall All you have to do is call And I’ll be there You’ve got a friend
If the sky above you Grows dark and full of clouds And that ol’ north wind begins to blow Keep your head together And call my name out loud Soon you’ll hear me knockin’ at your door
You just call… … And I’ll be there
Ain’t it good to know that you’ve got a friend When people can be so cold They’ll hurt you, yes, and desert you And take your soul if you let them Oh, but don’t you let them
You just call… Fonte: álbum Greatest hits (1976), de James Taylor. Canção originalmente gravada em 1971.
A mulher de um ricaço adoeceu e, quando sentiu que seu fim se aproximava, chamou a única filha do casal ao seu quarto e disse:
– Filha, querida, continua a ser devota e boa, assim Deus sempre a ajudará, e lá do céu eu olharei por você e a protegerei.
Dizendo isso, a mulher fechou os olhos e deu o último suspiro.
A menina continuou sendo devota e boa, e todo dia ia ao túmulo da mãe e chorava. Quando chegou o inverno, a neve cobriu o túmulo com um manto branco, e quando o sol de primavera tornou a descobri-lo, o homem se casou outra vez. A nova mulher trouxe suas duas filhas, que eram agradáveis e bonitas por fora, mas malvadas e feias por dentro.
Assim começou um período de tristezas para a infeliz enteada.
– Essa pateta vai se sentar conosco na sala? – perguntavam elas.
– Quem quer comer o pão tem de trabalhar para ganhá-lo; vai se sentar com a ajudante de cozinha.
Confiscaram-lhe suas roupas bonitas, a fizeram vestir uma roupa cinzenta e lhe deram tamancos de madeira para calçar.
– Olhem só como a orgulhosa princesa está bem vestida – caçoaram ao levá-la para a cozinha! Ali a menina foi obrigada a fazer trabalhos pesados de manhã à noite; a se levantar com o nascer do sol, a carregar água, acender o fogão, cozinhar e lavar. Não satisfeitas, as irmãs lhe infligiam todos os vexames em que conseguiam pensar; zombavam dela e atiravam ervilhas e lentilhas no borralho para obrigá-la a se sentar para catá-las. À noite, quando ela estava exausta de tanto trabalhar, não tinha cama a que se recolher e ia se deitar no fogão sobre as cinzas. Por isso parecia sempre empoeirada e suja e a chamavam Borralheira. [...] Fonte: Estés, C. P., org. 2005. Contos dos irmãos Grimm. RJ, Rocco.
No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa, Sob a lenda encantada do luar...
Os pinheiros pensavam coisas longas, Nas alturas dormentes e desertas... O aroma nupcial dos jasmins delirantes, Diluindo um cheiro acre de resinas, Espiritualizava e adormecia O ar meigo e silencioso...
A ronda dos espíritos noturnos, Em medrosos rumores, Gemia entre os ciprestes e os loureiros...
Na penumbra dos bosques, o luar Entreabria clareiras encantadas, Prateando o verde malva das latadas E as doces perspectivas do pomar...
As nascentes sonhavam em surdina, Numa tonalidade cristalina, Monótonos murmurinhos, Gorgolejos de águas frescas...
Sobre a areia de prata dos caminhos, A sombra espiritual dos eucaliptos, Bulindo ao sopro tímido da aragem, Projetava ao luar desenhos indecisos, Ágeis bailados leves de arabescos, Farândolas de sombras fugitivas...
E das perdidas curvas das estradas, De paragens distantes, Como fantasmas de serenatas, Ressonâncias sonâmbulas traziam A longa, a pungentíssima saudade De cavatinas e mandolinatas...
Lembro-me bem, quando em quando, Entre as sebes escondidas, Um insidioso grilo impertinente, Roendo um som estridente, Arranhava o silêncio...
No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa, Sob a lenda encantada do luar...
Eu era bem criança e, já possuindo A sensibilidade evocadora De um poeta de símbolos profundos, Solitário e comovido, No minarete do solar paterno, Com os pequeninos olhos deslumbrados, Passei a noite inteira, o olhar perdido, No azul sonoro, o azul profundo, o azul eterno, Dos eternos espaços constelados...
Era a primeira vez que eu contemplava o mundo, Que eu via face a face o mistério profundo Da fantasmagoria universal No prodígio da noite silenciosa.
Era a primeira vez... E foi aí, talvez, Que começou a história atormentada Da minha alma, curiosa dos abismos, Inquieta da existência e doente do Além... Filha da maldição do Arcanjo rebelado...
Sim, que foi nessa noite, não me engano, – Noite que nunca mais esquecerei – Que – a alma ainda em crisálida,– velando No minarete do solar paterno, Diante da noite azul – eu senti e pensei O meu primeiro sofrimento humano E o meu primeiro pensamento eterno...
Como fora do Tempo e além do Espaço, Ser sem princípio, espírito sem fim, Sofria toda a humanidade em mim, Nessa contemplação imponderável!
Já nem ouvia o trêmulo compasso Das horas que fugiam pela noite, Que os olhos soltos pela imensidade, Numa melancolia deslumbrada, Imaginando coisas nunca ditas, Todo eu me eterizava e me perdia Na idéia das esferas infinitas, Na lenda universal das distâncias eternas...
No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa, Sob a lenda encantada do luar...
Foi nessa noite antiga Que se desencantou para a vertigem A suave virgindade do meu ser!
Já a lua transmontava as cordilheiras... Cães ladravam ao longe, em sobressalto; No pátio das mansões, na granja das herdades, O cântico dos galos estalava, Desoladoramente pelos ares, Acordando as distâncias esquecidas...
E, então, num silencioso desencanto, Eu fui adormecendo lentamente, Enquanto Pela fria fluidez azul do espaço eterno Em reticências trêmulas, sorria A ironia longínqua das estrelas... Fonte: Leoni, R. 1998. Luz mediterrânea. BH, Garnier. Poema originalmente publicado em 1922.
Poeta chamam ao ser por mim cumprido. Levo mundo em meus pés ultravagantes. Um pássaro nas veias. E ao ouvido Um anjo de conselhos inquietantes.
Se quixotesco, ao que meu apelido – Cuadra – me enviai: questor de rocinantes, assim terá pretextos cavalgantes meu interior ginete enlouquecido.
Sou o que fui. Como homem, verdadeiro. Sonhador, como poeta, e estreleiro. Como cristão, de espinhos coroado.
E pois que a morte ao cabo a tudo vence, Pablo Antonio, à tua cruz entrelaçado suba em flor teu cantar nicaragüense. Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1938.
Como a voz de um pequeno braço de mar perdido dentro de uma caverna, Como um abafado soluço que irrompesse de súbito de um quarto fechado, Ouço-te, agora, a voz, ó meu desejo, e instintivamente recuo até as origens de minha angústia, Policiada e vencida, oh! afinal vencida por tantos e tantos séculos de resignação e humildade. Em que hora remota, em que época já tão distanciada, foi que os ares vibraram pela última vez, diante de teu último grito de rebeldia? Quantas vezes, ó meu desejo, tu me obrigaste a acender grandes fogueiras dentro da noite. E esperar, cantando pela madrugada? Mas, e hoje? Hoje a tua voz ressoa dentro de mim, como um cântico de órgão. Como a voz de um pequeno braço de mar perdido dentro de uma caverna, Como um abafado soluço que irrompesse, de súbito, de um quarto fechado. Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema originalmente publicado em 1936.
Como ser humano adulto, você pode se comunicar comigo de várias maneiras. Eu posso ler o que você escreve, posso ouvir as palavras que você diz, ouvir o seu riso e o seu choro, olhar para a expressão de seu rosto, perceber os gestos que você faz, cheirar o perfume que você usa, e sentir o seu abraço. Em linguagem comum poderíamos nos referir a essas interações como “travar contato”, ou “manter-se em contato”, e no entanto apenas a última da lista envolve contato corporal. Todas as outras operam à distância. O uso de palavras como “contato” e “toque” com referência a atividades como escrever, vocalizar e fazer sinais é, se considerado objetivamente, estranho e pouco revelador. É como se estivéssemos automaticamente aceitando que o contato corporal é a mais básica das formas de comunicação.
Há outros exemplos disso. Por exemplo, freqüentemente nos referimos a “experiências marcantes”, “cenas tocantes” ou “sentimentos feridos”, e falamos de um orador que sabe “prender os ouvintes”. Em nenhum desses casos há verdadeiro ato físico de marcar, tocar, sentir ou prender, mas isso não parece ter importância. O uso de metáforas de contato físico fornece um meio satisfatório de expressar várias emoções em contextos diferentes.
A explicação é bastante simples. Na primeira infância, antes que pudéssemos falar ou escrever, o contato corporal era um tema dominante. A interação física direta com a mãe era a coisa mais importante e deixou sua marca. Bem mais cedo, dentro do útero, antes que pudéssemos ver ou cheirar, muito menos falar ou escrever, era um elemento ainda mais poderoso em nossas vidas. Se pudéssemos entender as maneiras curiosas e freqüentemente inibidoras pelas quais estabelecemos contato físico com outro adulto, teríamos que começar pelo retorno às nossas origens, quando não passávamos de embriões dentro dos corpos de nossas mães. São as intimidades do útero, que raras vezes levamos em consideração, que nos ajudarão a compreender as intimidades da infância, que tendemos a ignorar porque as consideramos tão óbvias; e são as intimidades da infância, reexaminadas e revistas, que nos ajudarão a explicar as intimidades da vida adulta, que muitas vezes nos confundem, intrigam e embaraçam.
As primeiríssimas impressões que recebemos como seres vivos devem ser sensações de íntimo contato corporal, como quando flutuamos aconchegados dentro da protetora parede do útero materno. A principal contribuição ao sistema nervoso em desenvolvimento nesse estágio, portanto, toma a forma de várias sensações de tato, pressão e movimento. Toda a superfície da pele do feto é banhada pelo morno líquido uterino da mãe. À medida que a criança cresce e seu corpo pressiona com mais força os tecidos da mãe, o suave abraço envolvente do útero torna-se gradualmente mais forte, apertando-se mais a cada semana que passa. E durante todo esse período a criança em crescimento está sujeito às várias pressões da respiração rítmica dos pulmões da mãe, e a um movimento suave, regular, de oscilação, toda vez que a mãe caminha. [...] Fonte: Morris, D. 1974. Comportamento íntimo. RJ, Jose Olympio.
No campo azul da alada fantasia Edifiquei outr’ora, por meu mal, Castelos de oiro, esmalte e pedraria, Torres de lápis-lazúli e coral.
N’uma extensão de léguas, não havia Quem possuísse outro domínio igual: Tão belo, assim tão belo, parecia, O território de um senhor feudal...
Um dia (não sei quando, nem sei d’onde), Um vento agreste de indiferença e spleen Lançou por terra, ao pó que tudo esconde,
O meu condado – o meu condado, sim! Porque eu já fui um poderoso conde, N’aquela idade em que se é conde assim... Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema originalmente publicado em 1892.
Nesta segunda-feira, 12/11, o Poesia contra a guerra completou treze meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 21.335 visitas haviam sido registradas.
Desde o balanço mensal anterior – Aniversário de um ano – ocorreram em média 112,3 visitas/dia.
Nesse último mês, foram ao ar textos dos seguintes autores: Dora Ferreira da Silva, Fausto Wolff, Gabriela Mistral, Gerome Ragni, Gilka Machado, Glauco Mattoso, Heitor Ferraz Mello, Ivani Kotait, James Rado, José Craveirinha, Karl Popper, Lêdo Ivo, Leon Trotsky, Luciano Cânfora, Maria Alberta Menéres, Natália Correia, Robert Creeley, Robert Jay Lifton, Taís Guimarães e Vera Pedrosa. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Dominique Ingres, John Singer Sargent, Mstislav Dobuzhinsky, Nuno Gonçalves e Vasily Surikov.
Se uma lágrima indo durasse desde o olho aos pés e me lavasse por dentro o abandono
sem se gastar nas puras arestas afiadas Se uma lágrima indo me inundasse as espáduas
me corresse nas ancas desenhasse o trajeto ate aos pés e fosse como um rio concreto
entre profundas pedras sereno e perfurado de pequenos destinos pouco mais que silábicos
sem se gastar fugindo aos dedos da paisagem ocultando do sol o brilho inimitável
Se uma lágrima indo assim desde um princípio para um fim que talvez não seja um precipício
me lavasse de mim Uma lágrima apenas me daria outras horas estas horas as mesmas. Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1962.
When the moon is in the Seventh House And Jupiter aligns with Mars Then peace will guide the planets And love will steer the stars
This is the dawning of the Age of Aquarius Age of Aquarius Aquarius! Aquarius!
Harmony and understanding Sympathy and trust abounding No more falsehoods or derisions Golden living dreams of visions Mystic crystal revelation And the mind’s true liberation Aquarius! Aquarius! Fonte: álbum duplo Hair (1979), com a trilha sonora do filme homônimo.
Descobri o cadáver muito mais tarde no meio de uma viagem. Passava por regiões de passado futuro o trem atacado por índios atarefados ruínas negras de megalópolis de concreto. E tendo achado o cadáver soube que me haviam enterrado com meu vestido de seda violeta um vestido precioso anunciador da precognição da morte. Então determinei que desencarnassem o cadáver e enterrassem a ossada límpida, polida numa cova de terra úmida enquanto a multidão de índios sem real perigo cercava o cemitério mas depois se dedicava à tarefa muito mais séria de destroçar as vigas que sustentavam nosso teto. Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4a edição. RJ, Aeroplano. No original, o título do poema é sucedido pela frase: “Le rêveur de la nuit ne peut énoncer un cogito”.
Agora unificados, movimentos que lutam pela causa mais urgente se juntam, desde a Liga do Indigente ao Grupo dos Alcoólatras Sedentos.
Visando o que se encaixe em seus intentos, convocam toda a mídia para que atente: quem como “socialista” fala, mente, e o povo quer da Esquerda outros quinhentos.
Sem-isso, sem-aquilo, quem não tem telhado ou chão de graça se aproveita: na conta pede um crédito também.
É dos sem-cerimônias minha seita e, em vez de salvação e paz no Além, manjares cobra já, como a Direita. Fonte: Mattoso, G. 2004. Poética na política. SP, Geração Editorial.
A breve narrativa de Gélio, mesmo desfigurada pelo acréscimo talvez realizado por terceiros numa outra época, é um belo exemplo de como a biblioteca é freqüentemente objeto de fantasias e invenções eruditas. Com efeito, Gélio aceita a fábula de uma antiqüíssima biblioteca pública em Atenas: fundada por Pisistrato (ficção derivada da tradição que atribuía a Pisistrato a recolha dos livro homéricos), aumentada nos anos seguintes, roubada e levada à Pérsia por Xerxes, devolvida a Atenas por Seleuco (evidentemente levado a reparar os danos de Xerxes ao sucedê-lo, dois séculos depois, no reino da Babilônia). É verdade que a tradição armênia conhecida por Maribas (que viveu no século II a.C.) apresentava uma imagem totalmente contrária de Seleuco: “tornando-se rei mandou queimar todos os livros do mundo para fazer com que o cálculo do tempo começasse com ele”.
O fato de que a própria Atenas tivesse permanecido por tanto tempo sem biblioteca devia parecer algo intoleravelmente estranho. Na realidade, Atenas teve sua primeira biblioteca pública tardiamente, por iniciativa de Ptolomeu Filadelfo (285-246 a.C.), que fundara um ginásio na cidade, por isso chamado “Ptolemaion”, dotado de uma biblioteca. No século I a.C., essa biblioteca era anualmente enriquecida com cem rolos, dádiva dos efebos. A grande biblioteca de Atenas, porém, foi a doada pelo imperador Adriano (117-138 d.C.); era construída em torno de um perípato com umas cem colunas, também dispondo de salas de ensino. [...] Fonte: Canfora, L. 1989. A biblioteca desaparecida. SP, Companhia das Letras.
É preciso que venha de longe do vento mais antigo ou da morte é preciso que venha impreciso inesperado como a rosa ou como o riso o poema inecessário.
É preciso que ferido de amor entre pombos ou nas mansas colinas que o ódio afaga ele venha sob o látego da insônia morto e preservado.
E então desperta para o rito da forma lúcida tranqüila: senhor do duplo reino coroado de sóis e luas. Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1970.
[...] Nós todos certamente temos desejos semelhantes. A necessidade de deixar vestígios é parte da aspiração universal pela continuidade e integração, pela imortalidade simbólica. Mas para os sobreviventes de Hiroshima, os vestígios que se tenta deixar – o meio de se atingir aquilo que eu chamo de “a conexão Hiroshima” – é, acima de tudo, a história de vivência do extermínio nuclear. Esta história, ou interpretação, da veracidade da experiência da bomba atômica é o bem precioso que eles possuem. Eles e outros percebem o valor universal deste bem, mas para os hibakusha o seu potencial de integração à humanidade (e mesmo reconhecimento) é inseparável de algo que é próximo à dor absoluta. A própria combinação, como um sobrevivente me explicou há algum tempo, cria uma nova fonte de humilhação: “Eu sempre digo: se alguém olha para mim porque eu ganhei o Prêmio Nobel, tudo bem; mas se minha única virtude é ter estado a mil metros do centro da bomba atômica e ainda estar vivo, eu não quero ficar famoso por isso”. Aos riscos desta dupla lembrança histórica e sua dupla humilhação, deve-se acrescentar o risco da repetição e da “encenação” quando se conta a história. A veracidade tão desesperadamente buscada (e evitada) torna-se tão difícil de recriar quanto é grande o seu valor. O processo é mantido pela necessidade do sobrevivente de encontrar um significado para o seu contato com a morte, por um lado, e pela necessidade que o mundo tem da história de Hiroshima, por outro – sendo que esta última necessidade é sempre expressa de forma ambivalente, temerosa e negativa. Será que já houve uma memória histórica tão complexa e difícil na interpretação do que seja os “vestígios”? [...] Fonte: Lifton, R. J. 1989. O futuro da imortalidade. SP, Trajetória Cultural.
Lépida e leve em teu labor que, de expressões à míngua, o verso não descreve... Lépida e leve, guardas, ó língua, em teu labor, gostos de afago e afagos de sabor.
És tão mansa e macia, que teu nome a ti mesmo acaricia, que teu nome por ti roça, flexuosamente, como rítmica serpente, e se faz menos rudo, o vocábulo, ao teu contacto de veludo.
Dominadora do desejo humano, estatuária da palavra, ódio, paixão, mentira, desengano, por ti que incêndio no Universo lavra!... És o réptil que voa, o divino pecado que as asas musicais, às vezes, solta, à toa, e que a Terra povoa e despovoa, quando é de seu agrado.
Sol dos ouvidos, sabiá do tato, ó língua-idéia, ó língua-sensação, em que olvido insensato, em que tolo recato, te hão deixado o louvor, a exaltação!
– Tu que irradiar pudeste os mais formosos poemas! – Tu que orquestrar soubeste as carícias supremas! Dás corpo ao beijo, dás antera à boca, és um tateio de alucinação, és o elastério da alma... Ó minha louca língua, do meu Amor penetra a boca, passa-lhe em todo senso tua mão, enche-o de mim, deixa-me oca... – Tenho certeza, minha louca, de lhe dar a morder em ti meu coração!...
Língua do meu Amor velosa e doce, que me convences de que sou frase, que me contornas, que me vestes quase, como se o corpo meu de ti vindo me fosse. Língua que me cativas, que me enleias os surtos de ave estranha, em linhas longas de invisíveis teias, de que és, há tanto, habilidosa aranha...
Língua-lâmina, língua-labareda, língua-linfa, coleando, em deslizes de seda... Força inféria e divina faz com que o bem e o mal resumas, língua-cáustica, língua-cocaína, língua de mel, língua de plumas?...
Amo-te as sugestões gloriosas e funestas, amo-te como todas as mulheres te amam, ó língua-lama, ó língua-resplendor, pela carne de som que à idéia emprestas e pelas frases mudas que proferes nos silêncios de Amor!... Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema originalmente publicado em 1928.