A história da humanidade se confunde com a história das guerras. Deveríamos lutar para que se confundisse apenas com a história da literatura.
30 setembro 2008
Átomos em movimento
Richard Feynman
[...] Se um pedaço de aço ou de sal, constituído de átomos uns juntos aos outros, podem ter propriedades tão interessantes; se a água – que não passa dessas pequenas bolhas, quilômetro após quilômetro da mesma coisa sobre a Terra – pode formar ondas e espuma e rumorejar e formar padrões estranhos ao fluir sobre o cimento; se tudo isso, toda a vida de uma corrente d’água pode não passar de uma pilha de átomos, quão mais é possível? Se em vez de dispor os átomos em certo padrão definido, repetidamente e para todo o sempre, ou mesmo formar pequenos blocos de complexidade como o odor de violetas, fizermos um arranjo que é sempre diferente de lugar para lugar, com diferentes tipos de átomos dispostos de várias maneiras e em constante mudança, sem se repetir, quão mais maravilhosamente será possível que essa coisa se comporte? É possível que aquela “coisa” que anda para lá e para cá diante de você, conversando com você, seja uma grande massa desses átomos em um arranjo tão complexo que confunda a imaginação quanto ao que pode fazer? Quando dizemos que somos uma pilha de átomos, não queremos dizer que somos meramente uma pilha de átomos, porque uma pilha de átomos que não se repete de uma para a outra poderia muito bem ter as possibilidades que você vê diante de si no espelho. [...] Fonte: Feynman, R. P. 1999 [1995]. Física em seis lições, 3ª edição. RJ, Ediouro.
Já, Marfisa cruel, me não maltrata Saber que usas comigo de cautelas, Qu’inda te espero ver, por causa delas, Arrependida de ter sido ingrata.
Com o tempo, que tudo desbarata, Teus olhos deixarão de ser estrelas; Verás murchar no rosto as faces belas, E as tranças d’oiro converter-se em prata.
Pois se sabes que a tua formosura Por força há de sofrer da idade os danos. Por que me negas hoje esta ventura?
Guarda para seu tempo os desenganos, Gozemo-nos agora, enquanto dura, Já que dura tão pouco, a flor dos anos. Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema referido também pelo título “A uma senhora natural do Rio de Janeiro, onde se achava então o autor”.
Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto. Outono... Rodopiando, as folhas amarelas Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto...
Por que, belo navio, ao clarão das estrelas, Visitaste este mar inabitado e morto, Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas, Se logo, ao vir da luz, abandonaste o porto?
A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos... – Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!
E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste, E contemplo o lugar por onde te sumiste, Banhado no clarão nascente do arrebol... Fonte: Bilac, O. 1985. Poesias. BH, Itatiaia. Poema originalmente publicado em 1888.
O caminho mais curto é tirar uma soneca e sonhar com alguma coisa. Nossos sonhos estão repletos de originalidade. Seus elementos são todos velhos, nossas memórias do passado, mas as combinações são originais. As combinações compensam em variedade o que lhes falta em qualidade, como quando sonhamos com Sócrates dirigindo um ônibus no Brooklyn e conversando com Joana d’Arc sobre beisebol. Nossos sonhos misturam tempo, lugares e pessoas.
Acordados, possuímos um fluxo de consciência que também contém uma série de erros. Mas podemos rapidamente corrigi-los antes de expressá-los em voz alta. Podemos melhorar a frase mesmo enquanto falando. De fato, a maioria das frases que pronunciamos nunca foi dita por nós antes. Nós as elaboramos no ato. Mas como fazemos para que, quando pronunciamos algo que nunca dissemos antes, as frases não saiam tão alteradas como os nossos sonhos? [...] Fonte: Brockman, J & Matson, K., orgs. 1997. As coisas são assim. SP, Companhia das Letras.
– Mia Suave... – Ave?!... – Almeia?!... – Mariposa Azual... – Transe!... Que d’Alado Lidar, Canse... – Dorta em Paz... – Transpasse Ideia!...
– Do Ocaso pela Epopeia... Dorto... Stringe... o Corpo Elance... Vai à Campa... – Il C’or descanse... – Mia Soave... – Ave!... – Almeia!...
– Não Dói Por Ti Meu Peito... – Não Choro no Orar Cicio... – Em Profano... – Edd’ora... Eleito!...
– Balsame – a Campa – o Rocio Que Cai sobre o Último Leito!... – Mi’Soave!... Edd’ora Addio!... Fonte (primeira estrofe): Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema – dedicado “Aos meus amigos d’Orpheu” – originalmente publicado em 1915.
1. Dorothy morava no meio das grandes pradarias do Kansas, com seu Tio Henry, que era dono de uma fazenda, e com Tia Emily, que era a esposa dele. Sua casa era pequena, porque a madeira para construí-la teve de ser carregada em carroções por muitos quilômetros. Tinha quatro paredes, um assoalho e um teto que formavam uma única sala; e esta sala tinha um fogão meio enferrujado, um guarda-louça para os pratos, uma mesa, três ou quatro cadeiras e as camas. Tio Henry e Tia Emily tinham uma cama grande em um canto e Dorothy tinha uma caminha em outro canto. Não havia nenhum sótão e nem porão, exceto um pequeno buraco cavado no chão, sob a casa, que era chamado “porão dos ciclones”, onde a família poderia se esconder caso surgisse um desses grandes redemoinhos, poderoso o bastante para esmagar qualquer casa que encontrasse em seu caminho. As pessoas abriam uma alçapão feito no meio do assoalho da sala, dentro do qual uma escada conduzia a um buraco pequeno e escuro. [...] Fonte: Baum, L. F. 2001 [1900]. O mágico de Oz. Porto Alegre, L&PM.
1. Agora na lista de minha romanza matinal, narro os sinais do Respondente, Às cidades e fazendas aceno, quando as vejo na amplitude da luz solar perante mim.
Um jovem vem a mim trazendo uma mensagem de seu irmão, Como poderá o jovem conhecer as condições e o tempo de seu irmão? Diga-lhe que me envie os sinais.
E eu paro diante do jovem face e face e pego a sua mão direita na minha mão esquerda e sua mão esquerda na minha mão direita, E respondo para o seu irmão e para os homens, e respondo para aquele que responde por todos, e envio estes sinais.
A ele que todos aguardam, a ele a quem todos cedem, sua palavra é decisiva e final, A ele a quem eles aceitam, nele se banharam, nele se percebem em meio à luz, A ele que é submergido por eles e que o submerge.
Mulheres maravilhosas, as nações mais justas, as leis, as paisagens, o povo, os animais, A terra profunda e seus atributos e o oceano inquieto (assim eu narro a minha romanza matinal.) Todos os prazeres e as propriedades e dinheiro, e tudo aquilo que o dinheiro comprará, Nas melhores fazendas, são outros os que labutam e plantam e é ele que, inevitavelmente, colhe, Nas cidades mais nobres e mais caras, são outros os que preparam o terreno e constroem e é ele quem lá reside, Nada é por alguém que não seja por ele, próximos e distantes os navios em alto mar são para ele, As perpétuas demonstrações e as marchas em terra são para ele, se são de fato para alguém.
Ele acrescenta algo na atitude deles, Ele tira o hoje de si mesmo com plasticidade e amor, Ele estabelece seus próprios tempos, reminiscências, parentes, e irmãos e irmãs, associações, empregos, políticos, de modo que os demais nunca o envergonham mais tarde, nem ele julga que os comanda.
Ele é o Respondente, Tudo o que pode ser respondido ele reponde, e o que não pode ser respondido ele mostra como não pode ser respondido.
Um homem é um chamado e um desafio, (É em vão que se esquiva – ouves a chacota e o riso? Ouves os ecos irônicos?)
Livros, amigos, filósofos, padres, ação, prazer, orgulhos, palpitações altas e baixas na busca de dar satisfação, Ele indica, a satisfação e indica a eles também aquele ritmo de palpitações.
Qualquer que seja o sexo, qualquer que seja a estação ou o lugar, ele pode continuar, renovado e gentil, e seguro de dia e à noite, Ele possui a senha dos corações, para ele a resposta das mãos que se intrometem a girar a maçaneta.
Seu acolhimento é universal, o fluxo da beleza não é mais bem-vindo ou universal do que ele é, A pessoa a quem ele favorece durante o dia ou com quem ele dorme à noite é abençoada.
Toda existência tem a sua linguagem, tudo tem um idioma e uma língua, Ele inclui todas as línguas na sua e entrega aos homens, e qualquer homem traduz, e qualquer homem igualmente se traduz, Uma parte não se contrapõe à outra, ele é o elo entre ambas, ele pode compreender de que modo elas se unem.
Ela fala sem diferenciar-se e de modo semelhante Como estás amigo?, ao Presidente em sua recepção, E diz Adeus, meu irmão, ao bóia-fria que capina no campo de açúcar, E ambos o compreendem e sabem que seu discurso está correto.
Ele se move com perfeita agilidade nos corredores do Capitólio, Anda entre os congressistas, e um deputado diz ao outro, Ali vai um de nossos novos pares.
Então os mecânicos tomam-no por um mecânico, E os soldados supõem que ele seja um soldado, e os marinheiros acreditam que ele singrou os mares, E os escritores tomam-no por um escritor, e os artistas por um artista, E os operários percebem que ele poderia trabalhar com eles e amá-los, Não importa qual seja a profissão, ele é potencialmente adequado a ela ou nela já atuou, Não importa de que nação falemos, ele há de encontrar ali os seus irmãos e suas irmãs. Os ingleses acreditam que ele vem para a colônia Britânica, Aos judeus ele aparenta ser um judeu, um russo para um russo, costumeiro e próximo, saído do nada.
Todos para os quais ele olha na cafeteria dos viajantes atribuem a ele a sua própria nacionalidade, Os italianos e os franceses têm certeza, o alemão tem certeza, o espanhol tem certeza, o cidadão cubano tem certeza que ele é seu concidadão, O engenheiro, o taifeiro dos grandes lagos, ou no Mississipi ou em St. Lawrence ou em Sacramento, ou ao som do Hudson ou do Paumanok, todos o reconhecem como igual.
Os cavalheiros de sangue perfeito reconhecem o seu sangue perfeito, Aquele que insulta, a prostituta, a pessoa com raiva, o pedinte, se vêem projetados nele e ele estranhamente se transforma neles, Eles não são piores, eles mal conhecem a grandeza que existe dentro de si.
2. As indicações e a contagem das horas, O que tem perfeita sanidade se faz mestre entre os filósofos, O tempo, sempre sem brechas, se apresenta em fragmentos, O que sempre indica o poeta são as multidões de companhias agradáveis dos cantores e suas palavras, As palavras dos cantores são as horas e os minutos da luz ou da escuridão, mas as palavras do autor de poemas são a própria luz e a escuridão, O autor de poemas estabelece a justiça, a realidade, a imortalidade, Sua luz interior e seu poder envolve as coisas e a raça humana, Ele é a glória e o extrato longínquo das coisas e da raça humana.
Os cantores não criam, apenas os Poetas criam, Os cantores são bem-vindos, compreendidos, aparecem com bastante freqüência, mas são raros os dias ou as oportunidades de nascimento dos autores de poemas, os Respondentes, (Nem todo o século, nem mesmo o intervalo de cada cinco séculos contém esse dia, com todos os seus nomes.)
Os cantores das horas sucessivas dos séculos podem ter nomes ostensivos, mas o nome de cada um deles é de um dos cantores, O nome de cada um é: olho cantor, ouvido cantor, cabeça cantora, doce cantor, cantor da noite, cantor de salão, cantor de amor, cantor do destino ou de algo mais.
Todo esse tempo e em todos os tempos, espere pelas palavras dos poemas verdadeiros, As palavras dos poemas verdadeiros não são aquelas que simplesmente agradam, Os verdadeiros poetas não são os seguidores da beleza, mas os augustos mestres da beleza; A grandeza dos filhos é a exsudação da grandeza das mães e dos pais, As palavras dos poemas verdadeiros são a coroa e o aplauso final da ciência.
Instinto divino, amplitude da visão, a lei da razão, saúde, rudeza do corpo, capacidade de se retirar, Alegria, pele morena, doçura do ar, essas são algumas das palavras dos poemas.
Os marinheiros e os viajantes subjazem aos autores de poemas, os Respondentes, O construtor, o geômetra, o químico, o anatomista, o frenologista, o artista, todos esses subjazem ao autor de poemas, o Respondente.
As palavras dos verdadeiros poemas dão-te mais do que poemas, Elas são a matéria-prima para que possas fazer tu mesmo poemas, religiões, política, guerra, paz, comportamento, história, ensaios, vida diária e tudo o mais, Elas põem em equilíbrio as categorias, as cores, as raças, os credos e os sexos, Elas não procuram a beleza, elas são procuradas, Para sempre as tocando, ou próxima delas, segue a beleza, cheia de desejos, ansiosa, doente de amor.
Elas preparam para a morte e, contudo, não são o fim, ao contrário, a partida, Elas não conduzem ninguém ao seu término ou para a sua satisfação e contentamento, Aqueles que são conduzidos por elas são conduzidos para o espaço, de modo que assistam ao nascimento das estrelas, para que aprendam os seus significados, Para lançá-los com fé absoluta, parar arrebatar os anéis intermináveis e nunca mais se aquietarem. Fonte: Whitman, W. 2006. Folhas de relva. SP, Martin Claret. Poema originalmente publicado em 1855 (Parte 1) e 1860 (Parte 2).
Atrás do teu olhar estão teus olhos, olhos postos atrás de um matagal, fiapos móveis, cristais azuis, um chapinar fervilhante e seu lamento.
Mexo as folhas e aí está sua inércia de aparição e cúpulas, hisopo teu que me faz compreender a maneira como o olhar sobe, entre a ramagem.
Volto a mover as folhas e teus olhos ainda estão ali reverberando sob as altas cadeiras dos louros.
E nada sei dizer sobre este contágio que salta e saqueia no olhar que miro no matagal dos teus olhos. Fonte: Costa, H. 1992. Antologia de poesia hispano-americana atual. Revista USP 13: 186-205.
a primeira ilha o incêndio de tróia ardendo no meu corpo a queda do primeiro fruto a morte em cartago ou cajamarca essa morte que vem como uma festa para os olhos vem clamando aos povos convocando adão antes da queda buscando-o para a luz do dia clara como um sino o que se escreveu antes do verbo as águas do aqueronte devorando meus filhos os filhos que sepultei invadindo as épulas com seu fedor e usura a infância do eterno os anéis de batismo que foram de um santo e que são minha infância agora o passado que tem o meu nome e a minha idade o passado que sou eu e o esquecimento dos que me precederam no sangue a manhã primeira do exílio os olhos os terríveis olhos de circe o enterro de argos soando em copacabana um homem que pensa outro homem na américa um signo que não morreu de todo e que esplende como um deus no vestíbulo um signo que é toda a infância todo o deserto sísifo condenado à busca da pedra e do monte
: todo exílio que sou eu e que se esgotará comigo Fonte: Freitas, I. A. 2007. Primeiras letras. SP & Juiz de Fora, Nankin & Funalfa.
A lata de lixo, outrora sórdido caixote (salvo para os vira-latas) transformou-se hoje num elegante objeto de plástico, em geral azul, perfeita esfera. Embarcaríamos até nessa aeronave!
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Manuel Bandeira viu certa vez um homem fuçando uma lata de lixo num pátio. Com esse material mínimo escreveu uma poesia muito admirada também num determinado setor das universidades de Roma e de Pisa. Roma! Os palácios vermelhos de Roma! Pisa! A lâmpada de Galileu! As romanas! As pisanas!
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Não é fácil ver-se o lixeiro. Trata-se de um personagem kafkeano, quase marciano. Deixa-se a lata do lado de fora, e ele, pisando com pés de lã, invisível aos olhos mortais, discreto, obediente, esvazia a esfera azul.
Só uma vez tive ocasião de encontrar um lixeiro, aqui em Roma, nas vésperas do Natal. Bateu à minha porta, subvestido (subnutrido?), sorridente, anunciando: Eu sou o lixeiro.
Respondo logo, também sorridente: Bom dia. Como se chama o senhor?
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Não tolero ignorar os nomes daqueles com quem trato. A função adâmica do poeta move-o a nomear as coisas e as pessoas. Não só atribuir um nome aos que ainda não o têm, mas informar-se dos que já o têm. De resto um homem, antes de ser lixeiro, garçom ou motorista é uma pessoa, quero saber seu nome.
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Eu me chamo, e todos os outros me chamam, Murilo. Dum ponto de vista puramente eufônico e visual preferiria chamar-me por exemplo Goya, Velásquez ou Zurbarán.
Malandro e hipócrita sou! Bem vejo que não se trata de um ponto de vista puramente eufônico e visual, trata-se de atenção à hierarquia dos valores; mesmo contrariando Ortega y Gasset, mesmo reconhecendo o interesse dum certo lado da obra de Murilo, o lado mais realista, não o situo no plano dos outros três pintores.
Vaidade das vaidades: Tudo é vaidade, até mesmo a de querer mudar de nome para se elevar, até mesmo a de embarcar numa astronave, percorrer o cosmo que um dia próximo ou remoto, não sei, será despejado como lixo; e um mundo novo se levantará sobre latas, máquinas de plástico ou não, sobre as ruínas dos textos, as ruínas das ruínas: o novo céu, a nova terra, previstos e anunciados pelo transformador e reformador de todas as coisas visíveis e invisíveis, o Ser dialético por excelência. Fonte: Alvarez, P. R. & Cristofaro, V. F., orgs. 2005. Microlições de coisas. Juiz de Fora, Centro de Estudos Murilo Mendes.
Um cão ladrou na noite obscura tremores frios de inanição A mulher magra esperou cansada que a carne exausta fosse chamariz Poucos sexos jovens se investigaram muitos não conseguiram fugir à frustração Alguns descansaram outros se diluíram o caixote de lixo esperou esperou Depois rompeu a madrugada. Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial.
José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899). Descanso do modelo. 1882. Fonte da foto: Wikipedia. O autor pintou mais de uma versão para esse quadro, usando o mesmo título.
1. A primeira vez, bem que Bisa Bia estava escondida. Só apareceu por causa das arrumações da minha mãe.
Minha mãe é gozada. Não tem essas manias de arrumação que muita mãe dos outros tem, ela até que vai deixando as coisas meio espalhadas na casa, um bocado fora do lugar, e na hora em que precisa de alguma coisa quase deixa todo mundo maluco, revirando pra lá e pra cá. Mas de vez em quando ela cisma. Dá uma geral, como ela diz. Arruma, arruma, arruma, dois, três dias seguidos... Tira tudo do lugar, rasga papel, separa roupa velha que não usa mais, acha uma porção de coisas que estavam sumidas, joga revista fora, manda um monte de bagulho para a gente usar na aula de arte na escola. E sempre tem umas surpresas pra mim – como um colar todo colorido e brilhante que um dia ela achou e me deu para brincar. [...] Fonte: Machado, A. M. 2000. Bisa Bia, Bisa Bel, 2ª edição. RJ, Salamandra.
Nesta sexta-feira, 12/9, o Poesia contra a guerra completa vinte e três meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 46.582 visitas haviam sido registradas.
Desde o balanço mensal anterior – Um ano e dez meses no ar – foram ao ar textos dos seguintes autores: Albert Einstein, Alberto de Lacerda, Armando Freitas Filho, D. H. Lawrence, Egito Gonçalves, Elliot Aronson, Franz Kafka, Hans Eysenck, José Blanc de Portugal, Manuel Gutiérrez Nájera, Mariano Brull, Martin Codax, Michael Eysenck, Rodrigo Garcia Lopes, Rogério Andrade Barbosa, Sherwin B. Nuland, Tony Banks e Vicente de Carvalho. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Frans Hals, Isaac Levitan, Nicolas Poussin e Rogier van der Weyden.
Folhas negras caem, rufam em profusão. O vento encrespa a Água, Tempo, enruga faces. Um vale revela canyons, grutas: em silêncio, exploramos o interior
destas montanhas: uma chuva fina, estranha, começa a cair e súbito dissipa – o ruído áspero de uma vespa. Este é o céu, claro, como metal. E aquilo,
A fumaça abandonada por um trem, talvez. Flores Se dissolvem nos olhos, e nos debruçamos sobre velhas lendas conferindo as pegadas de um animal desconhecido. A trilha termina num riacho. A água se surpreende com este vento todo que vem do Oeste e que agita a sinfonia das árvores.
Neblina nítida, colinas, um vapor neste espelho. Num ponto qualquer da paisagem captamos seus olhos verdes, mudos, fixos na relva úmida. Um animal e você contemplam do mirante este milagre a baía vazia – a areia do dia exibindo sua rasante – rochedos & distâncias, como antes, animada pelas danças do vento fazendo desta ausência presenças manifestas em tudo: chuva que desaba entre os olhos abertos da serpente. Um flash de luz entre os bambus : o silêncio do sonho traduzindo uma imagem-movimento que se desfaz entre a verdade dos instantes. Fonte: Moriconi, I. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema – “Para Henry David Thoreau” – originalmente publicado em 1997.
Marília bela, vou retratar-te, se a tanto a arte puder chegar. Trazei-me, Amores, quanto vos peço: tudo careço para a pintar.
Nos longos fios de seus cabelos ternos desvelos vão se enredar. Trazei-me, Amores, Das minas d’ouro rico tesouro para os pintar.
No rosto, a idade da primavera na sua esfera se vê brilhar. Trazei-me, Amores, as mais viçosas flores vistosas para o pintar.
Quem há que a testa não ame e tema, de um diadema digno lugar? Trazei-me, Amores, da selva Idália jasmins da Itália para a pintar.
A frente adornam arcos perfeitos, que de mil peitos sabem triunfar. Trazei-me, Amores, justos nivéis, sutis pincéis para a pintar.
A um doce aceno dos brandos olhos, setas a molhos se vêem voar. Trazei-me, Amores, do sol os raios, fiéis ensaios, para os pintar.
Nas lisas faces se vê a aurora, quando colora a terra e o mar. Trazei-me, Amores, as mais mimosas pudicas rosas para as pintar.
Os meigos risos com graças novas nas lindas covas vão-se ajuntar. Trazei-me, Amores, aos pincéis leves as sombras leves, para os pintar.
Vagos desejos da boca as brasas as frágeis asas deixam queimar. Trazei-me, Amores, corais subidos, rubins partidos, para a pintar.
Entre alvos dentes, postos em ala, suave fala perfuma o ar. Trazei-me, Amores, nas conchas claras, pérolas raras, para os pintar.
O colo, Atlante de tais assombros, airosos ombros corre a formar. Trazei-me, Amores, jaspe às mãos cheias, de finas veias, para o pintar.
Do peito as ondas são tempestades, onde as vontades vão naufragar. Trazei-me, Amores, globos gelados, limões nevados para o pintar.
Mãos cristalinas, roliços braços, que doces laços prometem dar! Trazei-me, Amores, as açucenas, das mais pequenas, para as pintar.
A delicada, gentil cintura toda se apura em se estreitar. Trazei-me, Amores, ânsias que fervem: só essas servem para a pintar.
Pés delicados ferindo a terra, às almas guerra vêm declarar. Trazei-me, Amores, as setas prontas de curtas pontas para os pintar.
Porte de deusa, espírito nobre, e o mais, que encobre pejo vestal. Só vós, Amores, que as Graças nuas vedes, as suas podeis pintar. Fonte: Peixoto, A. 2002. Melhores poemas. SP, Global.
Estava o pássaro ali Onde luz mais amplo o dia, O bico no ar espetado, Canto e pluma, nada mais! O que é pluma e fora canto – Fuga azul que o mar refresca – O sol muda em chamarada, Onde o canto, ora fulgor? Onde? E onde esta luz de pluma? O pássaro já abalara: Somente a vela do trino A cortar a solidão!
Estás onde o vão estava De tua figura n’água, Talhado n’água: fazendo-te Entre a tua ausência e fala, Nova de sol, nova de onda. (Sobre o disco do silêncio A data justa do mar: Registro de tua voz Crivado na transparência.) Margens de tua figura – Absoluta de milagre –: Estátua que se eterniza Conjugando para sempre O reclamo do momento, Hímen rompido da eterna Entranha virgem do mar! Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira.
Todos querem conhecer a morte em detalhes, embora poucos se atrevam a confessar. Seja para antecipar os eventos de nossa doença final ou para melhor compreender o que está acontecendo a um ente querido à beira da morte – ou mais provavelmente devido à essa fascinação do id pela morte que todos nós sentimos – somos atraídos por pensamentos sobre o fim da vida. Para a maioria das pessoas, a morte permanece um segredo oculto, tão erotizado quanto temido. Somos irresistivelmente atraídos pelas próprias ansiedades que consideramos mais aterradoras; somos levados a elas por uma excitação primitiva que surge do flerte com o perigo. Mariposas e chamas, humanidade e morte – não são muito diferentes essas relações.
Nenhum de nós parece psicologicamente apto a lidar com o pensamento de nosso estado de morte, com a idéia de uma inconsciência permanente em que não existe vazio nem vácuo – e simplesmente não existe nada. Isso parece tão diferente do nada que precede a vida. Como acontece com todos os outros tipos de terrores e tentações que nos afligem, buscamos meios de negar o poder da morte e a mão gelada com que ela segura o pensamento humano. Sua constante proximidade sempre inspirou métodos tradicionais pelos quais disfarçamos consciente e inconscientemente essa realidade, como contos populares, alegorias, algo de novo; criamos o método moderno de morrer. A morte moderna acontece no hospital moderno, onde ela pode ser oculta, limpa de sua sujeira orgânica e finalmente empacotada para um sepultamento moderno. Podemos agora negar o poder não só da morte, mas também da natureza. Escondemos nossos rostos de sua face, mas ainda abrimos um pouco os dedos, porque há algo em nós que não resiste a uma olhadinha. [...] Fonte: Nuland, S. B. 1995. Como morremos. RJ, Rocco.
Minha vida acabou por duas vezes – Resta ser confirmado Se na Imortalidade um novo evento Me será revelado
Como esses que passei assim tão fora De medida e de juízo – Partir é tudo que do Céu conheço E do Inferno preciso Fonte: Dickinson, E. 2006. Alguns poemas. SP, Iluminuras. Poema originalmente publicado em 1924.
Esta noite vou embebedar os meus navios Rasgar os meus poemas E as minhas raras (raríssimas) Cartas de amor
Esta noite vou ser horrível Pior do que o costume Vou desabobadar os céus da minha esperança Viga por viga estrela por estrela
Esta noite vou embebedar os meus navios Vou deixar de falar a imensa gente Vou encontrar um sábio chinês Que me recitará poemas muito simples Insuportáveis de tão belos
Esta noite vou destruir mapas antigos Abrir certas janelas e quebrar A possibilidade de alguém mais entrar na minha vida
Esta noite vou pedir perdão aos meus amigos E escrever uma última carta sem a mínima sombra de sentimentalismo
Esta noite vou embebedar os meus navios Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1961.
Tem-se observado freqüentemente que há mais preconceitos contra os negros no Sul do que no Norte dos Estados Unidos. Freqüentemente também eles se manifestam em atitudes mais fortes contra a integração racial. Em 1942, por exemplo, somente 4 por cento dos sulistas foram favoráveis à não-segregação nos meios de transporte, enquanto que 56 por cento dos nortistas eram favoráveis à integração. Por quê? Terá sido por causa da competição econômica? Provavelmente não; há mais preconceito contra o negro nas comunidades sulistas onde a competição econômica é baixa, do que nas comunidades nortistas, onde a competição econômica é grande. Há mais personalidades autoritárias no Sul do que no Norte? Não... Thomas Pettigrew aplicou amplamente a escala F no Norte e no Sul e verificou que as marcas foram quase iguais para nortistas e sulistas. Além disso, embora haja mais preconceito contra o negro no Sul, há menos preconceito contra os judeus no Sul do que no conjunto da nação; a personalidade preconceituosa deveria ser preconceituosa contra todo mundo: o sulista não é.
Como, então, explicar a animosidade contra os negros existente no Sul? Pode ser devido a causas históricas: os negros foram escravos, a guerra civil foi desencadeada devido à questão da escravidão etc. Isso pode ter criado o clima para um preconceito mais forte. Mas o que mantém esse clima? Uma das explicações surge possivelmente das observações de alguns estranhos padrões de segregação racial no Sul. O exemplo de um grupo de mineiros de carvão numa pequena cidade mineira da Virgínia seria suficiente: os mineiros negros e os mineiros brancos desenvolveram um padrão de vida que consiste numa completa e total integração enquanto estão embaixo da terra, e de total e completa segregação enquanto estão em cima da terra. Como podemos explicar essa incoerência? Se você realmente odeia alguém, quer afastar-se dele, por que se associa a ele embaixo da terra e não em cima?
Pettigrew sugeriu que a explicação para estes fenômenos está na conformidade. Nesse caso as pessoas simplesmente se conformam com as normas existentes na sua sociedade (em cima da terra!). Aquele acontecimento histórico no Sul monta o palco para um maior preconceito contra os negros mas é a conformidade que o sustenta. Pettigrew acredita que, embora a competição econômica, a frustração e a personalidade entrem na conta para alguns preconceitos, a maior proporção do comportamento preconceituoso é uma função do conformismo servil às normas sociais. [...] Fonte: Aronson, E. 1979 [1976]. O animal social, 2ª edição. SP, Ibrasa.
1. Ondas do mar de Vigo, se vistes meu amigo? E ay Deus, se verrá cedo!
Ondas do mar levado, se vistes meu amado? E ay Deus, se verrá cedo
Se vistes meu amigo, o por que eu sospiro? E ay Deus, se verrá cedo
Se vistes meu amado, por que ey gran coydado? E ay Deus, se verrá cedo!
2. Mandad’ey comigo ca ven meu amigo: E irey, madr’, a Vigo!
Comigu’ey mandado ca ven meu amado: E irey, madr’, a Vigo!
Ca ven meu amigo e ven san’ e vivo: E irey, madr’, a Vigo!
Ca ven meu amado e ven viv’ e sano: E irey, madr’, a Vigo!
Ca ven san’ e vivo e d’el-rey amigo: E irey, madr’, a Vigo!
Ca ven viv’ e sano e d’el-rey privado: E irey, madr’, a Vigo!
3. Mia irmana fremosa, treydes comigo a la igreja de Vig’, u é o mar salido: E miraremos las ondas!
Mia irmana fremosa, treydes de grado a la igreja de Vig’, u é o mar levado: E miraremos las ondas!
A la igreja de Vig’, u é o mar salido, e verrá i mia madr’ e o meu amigo: E miraremos las ondas!
A la igreja de Vig’, u é o mar levado, e verrá i mia madr’ e o meu amado: E miraremos las ondas!
4. Ay Deus, se sab’ ora meu amigo com’ eu senheyra estou en Vigo! E vou namorada!
Ay Deus, se sab’ ora meu amado com’ eu en Vigo senheyra manho! E vou namorada!
Com’ eu senheyra estou en Vigo, e nulhas gardas non ey comigo! E vou namorada!
Com’ eu en Vigo senheyra manho, e nulhas gardas migo non trago! E vou namorada!
E nulhas gardas non ey comigo, ergas meus olhos que choran migo! E vou namorada!
E nulhas gardas migo non trago ergas meus olhos que choran ambos! E vou namorada!
5. Quantas sabedes amar amigo treydes comig’ a lo mar de Vigo: E banhar-nos-emos nas ondas!
Quantas sabedes amar amado treydes comig’ a lo mar levado: E banhar-nos-emos nas ondas!
Treydes comig’ a lo mar de Vigo e veeremo’ lo meu amigo: E banhar-nos-emos nas ondas!
Treydes comig’ a lo mar levado e veeremo’ lo meu amado: E banhar-nos-emos nas ondas!
6. Eno sagrado, en Vigo baylava corpo velido: Amor ey!
En Vigo, no sagrado, baylava corpo delgado: Amor ey!
Baylava corpo velido, que nunca ouver’ amigo: Amor ey!
Baylava corpo delgado, que nunca ouver’ amado: Amor ey!
Que nunca ouver’ amigo, ergas no sagrad’, en Vigo: Amor ey!
Que nunca ouver’ amado, ergas en Vigo, no sagrado: Amor ey!
7. Ay ondas, que eu vin veer, se me saberedes dizer porque tarda meu amigo sen min?
Ay ondas, que eu vin mirar, se me saberedes contar porque tarda meu amigo sen min? Fonte (cantigas 1, 2, 4 e 5): Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Cantigas datadas de meado do século 13.