A história da humanidade se confunde com a história das guerras. Deveríamos lutar para que se confundisse apenas com a história da literatura.
30 agosto 2010
O alcance e os limites da biologia
George Gaylord Simpson
A questão ‘É a biologia uma ciência autônoma?’ foi recentemente proposta a um número de físicos, biólogos e historiadores da ciência. Minha própria resposta imediata foi um retumbante e um decisivo ‘Sim e não!’ O que se quer dizer com autônomo? Se significa um objeto definível, incluindo assuntos não atribuíveis a nenhuma outra ciência, então a resposta é ‘Sim’. Se, por outro lado, significa um objeto completo em si mesmo, abrangendo sua inteira descrição e explanação, sem auxílio de nenhuma outra ciência, então a resposta é certamente ‘Não’. [...]
Fonte: Simpson, G. G. 1974 [1969]. O homem e a biologia. SP, Cultrix.
Manhã fresca tão novinha A primeira do Ano Novo Ano Bom Ano Feliz A madrugada treme Tudo está de um azul tão frio Que parece que o sol nunca mais vai sair para abraçar as ruas Nem as cigarras acordam para zunir estridentemente num galho de pau seco Por enquanto todos dormem Tudo ainda está trêmulo e frio a manhã tão novinha Frescura da primeira manhã de Ano Novo Ano Bom Ano Feliz
Fonte: edição No. 109 (dezembro de 2000) da revista Ciência Hoje das Crianças. Poema publicado em livro em 1937.
Ao mundo esconde o Sol seus resplandores, e a mão da Noite embrulha os horizontes; não cantam aves, não murmuram fontes, não fala Pã na boca dos pastores.
Atam as Ninfas, em lugar de flores, mortais ciprestes sobre as tristes frontes; erram chorando nos desertos montes, sem arcos, sem aljavas, os Amores.
Vênus, Palas e as filhas da Memória, deixando os grandes templos esquecidos, não se lembram de altares nem de glória.
Andam os elementos confundidos: ah, Jônia, Jônia, dia de vitória sempre o mais triste foi para os vencidos!
Fonte: Peixoto, A. 2002. Melhores poemas. SP, Global.
A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeite de ‘paetês’ e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandar sua mulher para que todos Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados – e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas engomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata.
Tendo Zilda -- filha com quem a aniversariante morava – disposto cadeiras unidas ao longo das paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e emudeceu, a boca em bico, mantendo sua posição de ultrajada. “Vim para não deixar de vir”, dissera ela a Zilda, e em seguida sentara-se ofendida. As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino, amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com os ‘paetês’.
Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria depois. E como Zilda – a única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia anos, tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante – e como Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e uniformizada, com a boca aberta.
E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos. [...]
Fonte: Ladeira, J. G., org. 2009. Antologias de contos: contos brasileiros contemporâneos, 2ª edição. SP, Moderna. Conto publicado em livro em 1960.
nada os meus olhos deixarão na cinza das vastas folhas envidraçadas: nem o astrológico número das horas autorizadas pela autoridade e sua penumbra. a “penumbra da autoridade” vem vestida de muitos horizontes com, aqui ou além, um barco de velas estilhaçadas, ou a capa de um livro de viagens na vitrina. então o amor mistura-se com as coisas breves, os pássaros, o rumor dos alicates na gaveta branca. foi esta a sua história? esta canção pertence-lhe? a “greve” alourou-lhe as sobrancelhas? estes olhos têm o plástico ao contrário. e o ruído das torneiras no balde, mesmo à beira do precipício, é um inconveniente que convém manter sob vigilância.
Ao formularmos uma pergunta, esperamos, em geral, resposta clara e definida. Se me perguntam, por exemplo, o que é um número racional, posso responder, de maneira simples e precisa, que é a razão de dois números inteiros. Há outras espécies de indagação simples que podem receber resposta precisa, mas para as quais, na linguagem comum, é em geral dada e aceita resposta vaga. Suponha-se que alguém lê acerca de pingos de mel, mas nunca viu um pingo de mel ou não conhece tal nome. É possível que essa pessoa indague “Que é um pingo de mel?” e eu, provavelmente, responderia “uma espécie de pêssego, de casca lisa”. Não se trata, por certo, de resposta muito exata, mas é resposta que está próxima de ser satisfatória, se a pessoa que fez a pergunta sabe o que são pêssegos.
A espécie de indagação que desejo examinar aqui não é de um nem de outro desses tipos. Teorias científicas não são semelhantes a números racionais, nem a pingos de mel. Não são, sem dúvida, semelhantes a pingos de mel por não serem objetos físicos simples. Semelham-se aos números racionais pelo fato de não serem objetos físicos, mas são totalmente diferentes deles por não poderem ser definidas de modo simples ou direto, em termos de outros objetos não-físicos, abstratos. [...]
Fonte: Morgenbesser, S. org. 1979. Filosofia da ciência. SP, Cultrix. Artigo originalmente publicado em 1967.
devagar escreva uma primeira letra escrava nas imediações construídas pelos furacões; devagar meça a primeira pássara bisonha que riscar o pano de boca aberto sobre os vendavais; devagar imponha o pulso que melhor souber sangrar sobre a faca das marés; devagar imprima o primeiro olhar sobre o galope molhado dos animais; devagar peça mais e mais e mais
Fonte: Cesar, A. C.; Cacaso; Chacal; Alvim, F. & Leminski, P. 2006. Poesia marginal. SP, Ática. Poema publicado em livro em 1982.
Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. Não sou tão feia que não possa casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos – dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou.
Nessa quinta-feira, 12/8, o Poesia contra a guerra completou três anos e dez meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 102.501 visitas haviam sido registradas nesse período.
Desde o balanço mensal anterior – Quarenta e cinco meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Antonio Cicero, Bashô, Eudoro Augusto, Irven DeVore, Jon Krakauer, José Augusto Seabra, Menotti del Picchia, P. W. Atkins, Rubem Fonseca e S. L. Washburn. Além de outros autores que já haviam sido publicados antes.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: John Everett Millais, Robert Delaunay e Valentin Serov.
Os homens sempre se sentiram fascinados pelo comportamento dos macacos e símios. Nos últimos anos, a simples curiosidade por seu comportamento foi reforçada pelo desejo de compreender o comportamento humano. Os antropólogos chegaram à conclusão de que a evolução do comportamento do homem, particularmente o social, desempenhou papel integral em sua evolução biológica. Procurando reconstruir como a vida do homem se moldou através das idades, muitos estudos sobre o comportamento dos primatas estão sendo realizados agora, em laboratórios e no campo. Os contrastes e semelhanças entre o comportamento dos primatas e do homem – especialmente do homem primitivo, pré-agrícola – à medida que forem sendo conhecidos, auxiliarão muito a compreensão do tipo de comportamento social que caracterizou os ancestrais do homem há um milhão de anos.
Com esses objetivos em mente, decidimos realizar um estudo com os babuínos. Escolhemos esse animal por ser um primata que vive no solo e, assim, deve enfrentar o mesmo tipo de problemas com que se defrontaram nossos antepassados quando abandonaram as árvores. Nossas observações de cerca de 30 tropas de babuínos, com uma média de 40 a 80 indivíduos cada uma, em seu hábitat natural na África, mostram que o comportamento social do babuíno é uma das principais adaptações da espécie à sobrevivência. A maior parte da vida do babuíno passa-se a poucos passos de distância de outros babuínos. A tropa garante proteção contra predadores e dá ao grupo um profundo conhecimento do território que ocupa. Vista de dentro, a tropa não se compõe de criaturas neutras, mas de membros fortemente emocionais, altamente motivados. Nossos dados pouco apoio trazem à teoria de que a sexualidade é o elo primário que mantém unida uma tropa de primatas. É a natureza intensamente social do babuíno, expressa numa diversidade de relações interpessoais, que mantém juntos os membros da tropa. Essa conclusão exige observação mais profunda e investigação experimental dos diferentes vínculos sociais. Está claro, entretanto, que tais vínculos são essenciais para firmar a vida em grupo e que, para um babuíno, a vida na tropa é a única forma possível de vida. [...]
Puro dengo sugas do céu azulengo o sopro que dá musgo à pedra o sabor que inquieta a língua esforço apenas respirado. Mas o vento meu anjo tem gosto apressado.
A tarde ronrona na goela do gato.
Passam anos passam dias enquanto acendo o cigarro. Passa sombra traço nome voam aves de vertigem corre um desejo rosnado.
O sono da gaivota é o seu vôo: eu durmo e fica acordado.
Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.
A cigarra... Ouvi: Nada revela em seu canto Que ela vai morrer.
Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. O poeta japonês Matsuo Kinsaku [Bashô] (1644-1694) é considerado o principal idealizador do estilo haicai.
[Prefácio] Fiquei permanentemente impressionado com o início do romance de Somerset Maugham The Vessel of Wrath. O autor senta em sua escrivaninha, folheando as páginas do Yangtse Kiang Pilot, e em sua imaginação as tabelas das marés e as diretrizes de navegação gradualmente assumem um sentido de realidade. Em sua imaginação os contornos e tabelas dão lugar a uma versão mais rica, à medida que ele se torna consciente das árvores, telhados e finalmente das pessoas que são o tema de sua história. Da mesma forma gostaria que você me acompanhasse em uma jornada de fantasia através da austera carta de navegação da química, a tabela periódica dos elementos. Mas, em nossa fantasia, nós a veremos como um país – o Reino Periódico – povoado, como veremos quando descermos até a sua superfície, por personalidades. Voaremos sobre as paisagens do reino, veremos suas colinas ondulantes, suas cadeias de montanhas, seus penhascos e suas planícies. Aterrissaremos e caminharemos nos seus amplos prados e subiremos suas colinas. Deveremos também penetrar no interior de sua superfície e descobrir que há uma estrutura escondida, um mecanismo, que controla e governa o reino. Pois este é um lugar racional. [...]
Fonte: Atkins, P. W. 1996. O Reino Periódico. RJ, Rocco.