A história da humanidade se confunde com a história das guerras. Deveríamos lutar para que se confundisse apenas com a história da literatura.
29 setembro 2010
As limitações da ciência
Steven Rose
Para o grande ‘porta-voz’ ideológico da ciência, de Francis Bacon a James Watson, a ciência nunca teve limites na sua “possibilidade de realizar todas as coisas”. A curiosidade humana, afinal de contas, não conhece limites. Parece existir uma infinidade de questões que se podem colocar sobre a Natureza. No fim da sua longa carreira científica Isaac Newton sentiu-se, disse ele, como se apenas tivesse estado à beira de um grande oceano brincando com seixos na praia. Mais importante ainda, dado que a ciência não é apenas conhecimento passivo acerca da natureza, mas também o desenvolvimento de vias para alterar a natureza ou para transformar o mundo através da tecnologia, estes mesmos apologistas oferecem-nos uma excitante visão de antecipação de um mundo, uma natureza – incluindo a natureza humana – feita à imagem da humanidade para servir as necessidades humanas. É apenas quando se olha mais de perto para estas visões que se observa que uma ciência que pretende afirmar a universalidade da condição humana e procurar de modo desinteressado construir o mundo para as carências humanas está, de facto, a falar para um grupo muito definido. O seu universalismo não é mais do que a projecção das necessidades, curiosidade e modos de apreciar o mundo, não de uma humanidade independente de classes, das raças ou do sexo, mas, de facto, de uma classe, raça e sexo particulares que têm sido os construtores da ciência e os orientadores das suas questões, desde Francis Bacon. [...]
Fonte: Rose, S. 1989 [1986]. As limitações da ciência. In: Rose, S. & Appignanesi, orgs. Para uma nova ciência. Lisboa, Gradiva.
1. Cegam de todo, a meu ver: este assombrado rio a que o olhar, de céu a céu, regressa com a luz; Memphis a que entre muros, branca, já foi cidade ao Sul; e o pó dos cardos. Que sabe o Mundo de nós para fingir que é outro o dia em que essa cavada face ajusta ao medo o rumo das paisagens?
2. Por céus de abismo cingia então ao nome essas visões, que o fogo estéril da voz, apressando a hera, abandonava ao peso dos umbrais. Da incandescência do mirto não falam: nem a noite, nem a língua que se cala.
3. Estamos em Tebas, à chuva do passado, e como dois exércitos de sombra, frente a frente em linha para a morte. O golpe de vento no abrigo e a espera impaciente do cavalo no lancil acordam frisos de espada. Os mortos escutam a terra: de que estão eles afinal assim tão certos?
4. No estrangulado sono do meio-dia ela é ainda a que sofre, vagueia morta pela casa, não vê ninguém. Com o torpor da neve, à fronte atrai a escarpa fria. Nas tempestades do sangue, onde já não vence o corpo já vencido, bate agora sem pressa o coração.
De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure.
Fonte: encarte que acompanha o volume ‘Vinícius de Moraes’, da coleção Nova História da Música Popular Brasileira, 2ª edição (1977). Poema originalmente publicado em livro em 1957.
Tudo acabado entre nós Deus é testemunha que na flor da idade chorei por ti lágrimas de sangue e que te amei com todas as forças do meu ser; mas a ilusão durou pouco: a triste realidade dissipou os meus sonhos e esperança, assim como o mar desfaz todo castelo de areia; com tua perfídia me enganaste; como um cão vadio me enxotaste; na rua da amargura me lançaste. Agora teu olhar me corta como lâmina fria; vago como morta viva sendo a sombra do que fui, a lembrar de um passado feliz que não volta mais, imersa em dor, tormento e padecer, mas sabendo que este mundo não comporta o meu sofrer.
Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.
Nossa curiosidade assume formas diferentes, como Aristóteles observou no alvorecer da ciência humana. Seus esforços pioneiros para classificá-la ainda fazem sentido. Ele identificou quatro perguntas básicas que gostaríamos de ver respondidas sobre qualquer coisa, e chamou as respostas de quatro aitia, termo grego na verdade intraduzível mas que a tradição, embora canhestramente, chamou de as quatro ‘causas’.
Podemos ter curiosidade em saber: (1) de que matéria alguma coisa é feita, ou a sua causa material; (2) que forma (ou estrutura, ou formato) essa matéria assume, a sua causa formal; (3) o seu início, como ela começou, ou a sua causa eficiente; (4) qual o seu propósito, meta ou fim (como em ‘Os fins justificam os meios?’), o seu telos como Aristóteles chamou, às vezes mal traduzido, como ‘causa final’.
É preciso fazer algumas adaptações para que esses quatro aitia aristotélicos correspondam às perguntas-padrão: ‘o quê, onde, quando e por quê?’ O ajuste nem sempre é bom. Perguntas que começam com ‘por quê’, entretanto, de fato querem saber sobre a quarta ‘causa’ de Aristóteles, o telos de uma coisa. ‘Por que isto?’, perguntamos. Para que serve? Como dizem os franceses, qual a sua raison d’être, ou razão de ser? Por séculos filósofos e cientistas têm reconhecido estes ‘porquês’ como problemáticos, tão distintos que o tema que eles levantam merece um nome: teleologia. [...]
Fonte: Dennett, D. C. 1998 [1995]. A perigosa idéia de Darwin. RJ, Rocco.
Do nicho lôbrego onde os homens te puseram Te levarei à terra humilde e ensolarada. Nela hei de adormecer – os homens não souberam – E havemos de dormir sobre a mesma almofada.
Te deitarei na terra humilde, te envolvendo No amor da mãe para o seu filho adormecido. E a terra há de fazer-se um berço recebendo Teu corpo de menino exausto e dolorido,
Poderei descansar, sabendo que descansas No pó que levantei azulado e lunar Em que presos serão os teus leves destroços.
Partirei a cantar minhas belas vinganças, Pois nenhuma mulher me há de vir disputar A este fundo recesso o teu punhado de ossos.
Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema publicado em livro em 1914.
A poesia não é voz – é uma inflexão. Dizer, diz tudo a prosa. No verso nada se acrescenta a nada, somente um jeito impalpável dá figura ao sonho de cada um, expectativa das formas por achar. No verso nasce à palavra uma verdade que não acha entre os escombros da prosa o seu caminho. E aos homens um sentido que não há nos gestos nem nas coisas:
vôo sem pássaro dentro.
Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema publicado em livro em 1954.
Neste domingo, 12/9, o Poesia contra a guerra completou quarenta e sete meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 105.769 visitas haviam sido registradas nesse período.
Desde o balanço mensal anterior – Três anos e dez meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: António Franco Alexandre, Clarice Lispector, Edward Batschelet, George Gaylord Simpson, Jacques Le Goff, Joanita Blank, José Oiticica, Patrick Suppes e Zé da Luz. Além de outros autores que já haviam sido publicados antes.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Edward Burne-Jones e William Hogarth.
[...] O nível da história das mentalidades é aquele do quotidiano e do automático, é o que escapa aos sujeitos particulares da história, porque revelador do conteúdo impessoal de seu pensamento, é o que César e o último soldado de suas legiões, São Luís e o camponês de seus domínios, Cristovão Colombo e o marinheiro de suas caravelas têm em comum. A história das mentalidades é para a história das idéias o que a história da cultura material é para a história econômica. A reação dos homens do século 14 face à peste, castigo divino, é alimentada pela lição secular e inconsciente dos pensadores cristãos, de Santo Agostinho a São Tomás de Aquino; explica-se pelo sistema da equação doença = pecado aperfeiçoado pelos clérigos da alta Idade Média, porém negligencia todas as articulações lógicas, todas as sutilezas do raciocínio para não olhar senão a forma grosseira da idéia. Assim o utensílio de todos os dias, a vestimenta do pobre deriva de modelos prestigiosos criados pelos movimentos superficiais da economia, da moda e do gosto. É aí que se capta o estilo de uma época, nas profundezas do cotidiano. Quando Huizinga chama Jean de Salisbury um ‘espírito pré-gótico’, reconhecia-lhe uma superioridade de antecipação com respeito à evolução histórica, pelo prefixo, pela expressão em que o espírito (mind) evoca a mentalidade, fazendo desta a testemunha coletiva de uma época, como Lucien Febvre o fez de um Rabelais arrancado do anacronismo dos eruditos das idéias para voltar à historicidade concreta dos historiadores das mentalidades.
O discurso dos homens, em qualquer tom que tenha sido pronunciado – o da convicção, o da emoção, o da ênfase – é freqüentemente apenas um amontoado de idéias feitas, de lugares comuns, de velharias intelectuais, exutório heteróclito de restos de culturas e de mentalidades de diversas origens e de várias épocas. [...]
Fonte: Le Goff, J. 1976. As mentalidades: uma história ambígua. In: J. Le Goff & P. Nora, orgs. História: novos objetos. RJ, Francisco Alves.
É um Brasí deferente Do Brasí das capitá. É um Brasí brasilêro, Sem mistura de istrangêro, Um Brasí nacioná!
É o Brasí qui não veste Liforme de gazimira, Camisa de peito duro, Cum butuadura de ouro... Brasí Cabôco só veste, Camisa grossa de lista, Carça de brim da ‘Polista’ Gibão e chapéu de couro!
Brasí Cabôco não come Assentado nos banquete, Misturado cum os hôme De casáca e anelão... Brasí Cabôco só come O bode sêco, o feijão, E as vêz uma paneláda, Um pirão de carne verde, Nos dias das inleição, Quando vai servi de iscáda Prôs hôme de pusição!
Brasí Cabôco não sabe Falá ingrês nem francês, Munto meno o purtuguês Qui os outro fala imprestádo... Brasí Cabôco não iscreve; Munto má assína o nome Prá votá, prumóde os hôme Sê Gunverno e Diputado!
Mas porém, Brasí Cabôco, É um Brasí brasilêro, Sem mistura de istrangêro Um Brasí nacioná!
É o Brasí sertanêjo Dos côco, das imboláda, Dos samba, dos rialêjo, Zabumba e caracaxá!
É o Brasí das vaquêjáda, Do abôio dos vaquêro, Do arranco das boiáda Nos fechado ou tabulêro!
É o Brasí das cabôca Qui tem os óio feiticêro, Qui tem a bôca incarnada, Como fruta de cardêro Quando ela náce alêjáda!
É o Brasí das promessa Nas noite de São João! Dos Carro-de-bôi cantando Pela bôca dos cocão!
É o Brasí das cabôca Qui cum sabença gunverna, Vinte e cinco pá-de-birro Cum a munfada entre as perna!
Brasí das briga de Galo! Do jogo do ‘Sôco-tôco’! É o Brasí dos cabôco Amansadô de cavalo!
É o Brasí dos cantadô, Desses cabôco afamado, Qui nos verso impruvisado, Sirrindo cantáro o amô; Cantando choráro as mágua: – Brasí de Pelino Guéde, De Inácio da Catinguêra, De Umbelino do Texêra E Rumano da Mãe-d’água!
É o Brasí das cabôca, Qui de noite se dibruça, Machucando os peito virge No batente das jinéla... Vendo, os cabôco pachóla, Qui geme, chora e salúça Nas corda de uma vióla, Ruendo paxão, prú éla!
É esse o Brasí Cabôco. Um Brasí bem brasilêro, Sem mistura de istrangêro Um Brasía nacioná!
Brasí, qui foi, eu tou certo Argum dia discuberto, Prú Pêdo Arves Cabrá!!!
Se x é qualquer número positivo ou negativo, o quadrado de x é sempre positivo. Portanto, nenhum número real satisfaz a equação quadrática
x2 = – 1.
Entretanto, ninguém gosta de um resultado que afirma ‘é impossível’. Os matemáticos começaram muito cedo a procurar por um novo tipo de números. Podemos escrever formalmente x = √ – 1 [lê-se raiz quadrada de menos um], mas não é possível estabelecermos se √ – 1 é maior ou menor do que um dado número real. Por longo tempo, pensou-se que era um atributo necessário dos números possuir um ‘tamanho’ com uma ordem específica. Conseqüentemente, √ – 1 não poderia ser chamado um número. Por outro lado, as operações algébricas com √ – 1 poderiam ser realizadas facilmente. A situação levou finalmente a um compromisso: √ – 1 foi chamado número imaginário. A primeira letra de ‘imaginário’ foi proposta como notação:
i = √ – 1.
Hoje a idéia de que os números podem ser necessariamente ordenados de acordo com seu tamanho foi abandonada. Não existe nada de misterioso acerca dos números imaginários. Eles podem ser adicionados, subtraídos, multiplicados e divididos. Juntamente com os números reais, eles formam o conjunto de números complexos. Cada número é da forma
a + bi,
onde a e b são números reais. [...]
Fonte: Batschelet, E. 1978. Introdução à matemática para biocientistas. RJ, Interciência.