Alguns dos exemplos mais dramáticos da evolução em ação resultam da seleção natural para a resistência a pesticidas químicos em populações naturais de insetos e outras pragas da agricultura. Nos anos 1940, quando os pesticidas químicos foram primeiramente utilizados em larga escala, uma estimativa de 7% da safra agrícola dos Estados Unidos era perdida em virtude da ação de insetos. Sucessos iniciais no manejo químico de pragas foram seguidos por uma perda gradual de efetividade. Hoje, mais de 400 espécies de pragas evoluíram uma resistência significa a um ou mais pesticidas, e 13% da safra agrícola nos Estados Unidos são perdidos em virtude da ação de insetos. O custo total e a perda associada a insetos em 2005 foram de 1,264 bilhão de dólares [...]. Em muitos casos, a resistência significativa a pesticidas evoluiu em 5 a 50 gerações, independentemente de espécie de inseto, região geográfica, pesticida, frequência e método de utilização e outras variáveis igualmente importantes. Detalhes em exemplos reais dependem de fatores como número efetivo da população e extensão do isolamento genético entre populações locais. A evolução da resistência causada por múltiplos alelos interativos pode ser mais longa do que uma resistência de um único gene. [...]
Fonte: Hartl, D. L. & Clark, A. C. 2010 [2007]. Princípios de genética de populações, 4ª edição. Porto Alegre, Artmed.
E uma mulher que trazia ao colo uma criança Pediu: “Fala-nos das crianças.” E ele disse: “Vossos filhos não são vossos filhos: São os filhos e filhas da saudade que a Vida sente de si mesma. Vêm por meio de vós, mas não de vós, E ainda que estejam convosco, não vos pertencem. Podeis dar-lhes o vosso amor, não o vosso pensamento, Pois eles têm o seu próprio pensar. Podeis dar agasalho aos seus corpos, não porém às suas almas, Porque as suas almas se vão acolher num amanhã que não podeis visitar nem mesmo em sonhos. Podeis desejar ser como eles, mas não tentar fazê-los parecidos convosco. Porque a vida não retrocede nem se detém no dia de ontem.”
Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Trecho de capítulo do livro O profeta, originalmente publicado em 1923.
Nenhuma observação singular deu mais impulso à sociologia e à antropologia da ciência do que a observação de que a história da descoberta científica é a história de descobertas múltiplas, independentes e simultâneas. Isto é, a história da ciência sugere que certas leis e fatos científicos têm sido repetidamente revelados por diferentes cientistas trabalhando independentemente, mais ou menos no mesmo período de tempo. Essa observação é o ponto central do famoso artigo de William F. Ogburn e Dorothy S. Thomas ‘Are inventions inevitable?’, que contém uma lista de 148 descobertas múltiplas e simultâneas nos campos da ‘antropologia, matemática, química, física, eletricidade, fisiologia, biologia, psicologia e invenções mecânicas práticas’.
Essas descobertas simultâneas são citadas como evidência de que as invenções e descobertas ocorrem em virtude do nível de desenvolvimento cultural atingido por uma sociedade. Se determinado descobridor falhar em revelar uma nova lei, a sociedade não ficará pior por isso, pois a história da ciência mostra que a lei virá à luz através do trabalho de outra pessoa quase na mesma época. Sendo assim, há “bastante evidência indicando que a acumulação ou o crescimento da cultura atinge um estágio em que certas invenções, se não são inevitáveis, são certamente muito prováveis, dado um nível determinado de habilidade mental”. Ao citar a mesma passagem, Lesley White omite a referência a ‘habilidade mental’. Para White, a questão da genialidade é totalmente redundante dentro de uma perspectiva cultural. As descobertas ocorrem independentemente do QI de indivíduos específicos e, de modo inevitável, em um ponto em que a cultura alcança certa ‘massa crítica’. [...]
Fonte: Brannigan, A. 1984 [1981]. A base social das descobertas científicas. RJ, Zahar.
1. Observas o rosto hirto na vidraça e respirando fundo sabes: a luz alonga os traços como um remorso – porque tudo é nosso e doutrem. Roubas e roubam-te, do mais à margem te mantêm, ou a vau. Desmunido. Que cem anos não confortam a cova de um dente, nem refreiam o susto de quando o silêncio bate portas – é coisa pública. Veja-se o caso das mãos: cinco dedos são poucos. Uma redige o ele de solidão e já outra congela o sangue nas torneiras.
2. Secreto condomínio, o de cada veia no seu galho. E grave: com um nome morto que assobia dentro em ti. Mexe mais que duas ou três palhas a Dor que desova e te perfura a gaze no pulmão: as ideais aderem-lhe, são o teu recife. Um dia serás tu o orifício, a emudecida parcela inanimada. Pois mesmo que perene o esforço – de rasgar os cascos em águas claras p’ra reconhecer no fundo arenoso dedos róseos pedacinhos d’ossos conchas e massacres – é vão.
3. Cresceste para a rebentação da folhagem, para o cheiro a sangue se o colírio do amor desnuda as paisagens. E eis-te enxertado em árvore que já deu fruto. Sim, não demoraste a vazar nos buracos de fora o que constela, intérmino, secreto, os de dentro: a espora do medo ou o gaseificado livor do sangue, mas serve a quem a obsessão de achar raízes na água? O melhor é não fechar os olhos se um rosto fumegante acorda nos sonhos o agrimensor de deus.
4. Já nada entreabre. Nem ócios nem aluviões. Vazado simplesmente num hangar de trânsfugas, cedes ao mais profundo desafecto. Hum, aliciavam-te com a ‘alquimia do amor’ tu que cálculos nem renais. Exigem agora que te afeiçoes à boquilha de ‘outro’, à âncora com que sondou o fundo – ritmos, motivos e guelras expostos até ao ranço. Mas se já a infância não passou de um cão afásico há-de o sedimento dobrar-te o cachaço, apegar-te mais ao travão do que à embalagem?
5. Alheado, inviolável, te querias. Interessares-te por um tufão em Macau se hoje ainda não inquiriste sobre Plotino as gardênias? Sazonalmente, quanto muito (um clamor encurta razões), atentar no número que a oblonga língua do gato grafa à tona das feridas. Que todo o voo é amadurecimento antes da queda – sabe-lo há muito. Ao fundo da garagem, cartas de ventos e naufrágios amontoam-se ao lado de garrafas de lixívia e vinho – lenho que no mais subtil da alba dessangra as madrugadas.
6. Abraça o teu cadáver, tem frio. Não é de hoje que a noite se abre ao labor da morte – vê nas vitrinas o coração lapidado da saudade. A raros o corpo deslumbrado cedo não solicita a exoneração dos dons. A vida a soldo bem nos delata e despeja asco a asco no couto da manhã, pois (já o escreveste) cego que não apalpa é cego imaturo. O próprio criador da telenovela, Homero, que amor- talhou de rosas as manhãs e deu nome aos direitos de autor, tem frio.
7. Já que o corpo te extradita o sopro derradeiro não atreles o poema. Vê como parnasiam os amigos, alegres esponsais da usura. Pareciam engasgar-se contigo no esplendor do vinho. Só a ti alarmava a visão do coxo que atravessa gota a gota a ínsua das horas? Revês-lhes a finta ladina a urna apertadas dos tomates e fechas gelosias: que o rosto que te desembarcou no mistério te perca agora na obstinada suspensão dos seus inquilinos.
8. Não há diafragma para a melancolia. Pode prever-se uma reparação, um espírito que ajardine a casa – alumém e lume não tem por missão confundir(-se)! Um exemplo: em ti era normal, o outono quebrava-te as mãos pelos pulsos e amareleciam, deslembradas. Mas pela primeira vez não se segue o armistício. E contudo, recolhidos como vadios sob alpendres de parreiras, ainda esperamos soldo, um verso que salve do ex- termínio as minudências.
9. Outras não rolarão facilmente pelo parapeito das manhas: a tua cabeça cabe inteira numa mão e pende do ramo tenro que ampara a pressaga polpa do silencio. Prazeres, derrotas, o visco do sentimento nutrem-lhe a sombra e até a indevida afasia onde bicou a cotovia. Pegas na faca como quem sopesa um olho. Até ao cabo e depois: o sangue assimila tudo. Sonhas que te é dedicada a morte.
– Como são lindos os teus grandes versos! Que colorido humano! que profundo Sentido e harmonia generosa Encerram, nos seus símbolos diversos!...
– Sim, mas para fazê-los fui ao fundo Das cousas, nessa Via-Dolorosa Do pensamento, que no fim é sempre triste. Sofri muito entre os seres infelizes... Tu não sabes de nada... tu não viste...
– Não, nunca imaginei o que me dizes... Mas teus versos me fazem tanto bem, São tão belos! de formas tão luxuosas!...
– É isso mesmo!... É a beleza irônica que vem Da amargura invisível das raízes, Para dar a vaidade efêmera das rosas...
Fonte: Leoni, R. 1998. Luz mediterrânea. BH, Garnier. Poema publicado em livro em 1922.
[...] Émile Noël – Pode haver similitudes de formas e similitudes de funções. É possível cruzar essas duas noções?
René Thom – Você sabe, o biólogo inglês [Richard] Owen dizia que dois órgãos são homólogos se possuem a mesma relação quanto aos outros órgãos, mesmo que existam variações de formas e de funções. Owen admitia a existência das variações de formas intrínsecas e das variações funcionais, mas atinha-se à possibilidade de uma estruturação global que seria, esta sim, definida intrinsecamente. Mas, se a intenção é precisão, é necessário efetivamente proceder de outra forma e partir da noção daquilo que Aristóteles chamava de homeomerias, isto é, ambientes fenomenologicamente homogêneos. Uma homeomeria é um ambiente tal que, se tenho dois pontos A e B nesta homeomeria, o ponto A tem uma pequena vizinhança na esfera VA, o ponto B uma pequena vizinhança na esfera VB e, no interior dessas duas esferas, pode-se aplicá-las uma sobre a outra de modo compatível com suas propriedades fenomenais.
Émile Noël – Isso significa, por exemplo, que todo tecido muscular, segundo Aristóteles, é uma homeomeria?
René Thom – Exatamente. A medula é uma homeomeria. O sangue é uma homeomeria. As anomeomerias, ao contrário, caracterizam-se pelo fato de que nelas se encontram biombos que separam os ambientes fenomenologicamente diferentes.
Émile Noël – Chama-se a isso de anomeomerias?
René Thom – Sim. São as partes do corpo descritas pela linguagem comum: a cabeça, o pescoço, os membros etc.
Émile Noël – Compostas por diversos tecidos diferentes...
René Thom – Isso mesmo. Aliás, existe aí um problema que se pode levantar para a biologia contemporânea, entrevisto por Aristóteles – ele não o resolveu, mas o entreviu: em toda anomeomeria, existem diversas homeomerias. Em outras palavras, para que um ambiente seja funcionalmente atuante no organismo, ele não pode ser homogêneo. É preciso que tenha, como atualmente se diria, compartimentos diferentes, separados por membranas. E o papel das membranas é justamente um enorme problema teórico da biologia contemporânea: Por que membranas? [...]
Fonte: Noël, E., org. 1996. As ciências da forma hoje. Campinas, Papirus.
Nesta quarta-feira, 12/1, o Poesia contra a guerra completa quatro anos e três meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 117.750 visitas haviam sido registradas nesse período.
Desde o balanço mensal anterior – Cinqüenta meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Carl Zimmer, Graciliano Ramos, Joan Baez, José Pacheco, Leon Henkin, Luís Guimarães Júnior, Ricardo G. Ramos e Vasco Graça Moura. Além de outros autores que já haviam sido publicados antes.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Armand Guillaumin e Cigoli.
Um cabra de Lampião, Por nome Pilão-Deitado, Que morreu numa trincheira Um certo tempo passado, Agora pelo sertão Anda correndo visão, Fazendo mal assombrado.
E foi quem trouxe a notícia Que viu Lampião chegar. O Inferno, nesse dia, Faltou pouco pra virar – Incendiou-se o mercado, Morreu tanto cão queimado, Que faz pena até contar!
Morreu a mãe de Canguinha, O pai de Forrobodó, Cem netos de Parafuso, Um cão chamado Cotó. Escapuliu Boca-Insossa E uma moleca moça Quase queimava o totó.
Morreram cem negros velhos Que não trabalhavam mais, Um cão chamado Traz-Cá, Vira-Volta e Capataz, Tromba-Suja e Bigodeira, Um cão chamado Goteira, Cunhado de Satanás.
Vamos tratar na chegada, Quando Lampião bateu. Um moleque ainda moço No portão apareceu: – Quem é você, cavalheiro? – Moleque, sou cangaceiro! Lampião lhe respondeu.
– Moleque, não! Sou vigia! E não sou seu parceiro – E você aqui não entra Sem dizer quem é primeiro! – Moleque, abra o portão! Saiba que sou Lampião, Assombro do mundo inteiro!
Então, esse tal vigia, Que trabalha no portão, Dá pisa que voa cinza, Não procura distinção! O negro escreveu não leu, A macaíba comeu – Ali não se usa perdão!
O vigia disse assim: – Fique fora, que eu entro. Vou conversar com o chefe, No gabinete do centro – Por certo ele não lhe quer, Mas, conforme o que disser, Eu levo o senhor pra dentro.
Lampião disse: – Vá logo, Quem conversa perde hora – Vá depressa e volte logo, Eu quero pouca demora! Se não me derem ingresso Eu viro tudo às avesso, Toco fogo e vou embora!
O vigia foi e disse A Satanás, no salão: – Saiba Vossa Senhoria Que aí chegou Lampião, Dizendo que quer entrar – E eu vim lhe perguntar Se dou-lhe o ingresso, ou não.
– Não senhor! Satanás disse, Vá dizer que vá embora! Só me chega gente ruim, Eu ando muito caipora – Eu já estou com vontade De botar mais da metade Dos que tenho aqui pôr fora!
Lampião é um bandido, Ladrão da honestidade: Só vem desmoralizar A nossa propriedade – E eu não vou procurar Sarna para me coçar, Sem haver necessidade!
Disse o vigia: – Patrão, A coisa vai se arruinar! Eu sei que ele se dana, Quando não puder entrar! Satanás disse: – Isso é nada! Convide aí a negrada E leve os que precisar!
Leve cem dúzias de negros, Entre homem e mulher; Vá na loja de ferragem, Tire as armas que quiser. É bom avisar também Pra vir os negros que tem, Mais compadre Lucifer!
E reuniu-se a negrada: Primeiro chegou Fuchico, Com um bacamarte velho, Gritando por Cão-de-Bico Que trouxesse o pau da prensa E fosse chamar Tangença, Na casa de Maçarico.
E depois chegou Cambota, Endireitando o boné, Formigueira e Trupezupé, E o Crioulo-Queté. Chegou Bagé e Pecaia, Rabisca e Cordão-de-Saia, E foram chamar Banzé.
Veio uma diaba moça, Com a calçola de meia. Puxou a vara da cerca, Dizendo: – A coisa está feia – Hoje o negócio se dana! E gritou: – Eta, baiana! Agora o tipo vadeia!
E saiu a tropa armada Em direção do terreiro, Com faca, pistola e facão, Clavinote, granadeiro. Uma negra também vinha Com a trempe da cozinha E o pau de bater tempero.
Quando Lampião deu fé Da tropa negra encostada, Disse: – Só na Abissínia! Oh, tropa preta danada! O chefe do batalhão Gritou, de armas na mão: – Toca-lhe fogo, negrada!
Nessa hora, ouviu-se os tiros, Que só pipoca no caco. Lampião pulava tanto, Que parecia um macaco! Tinha um negro nesse meio Que, durante o tiroteio, Brigou tomando tabaco.
Acabou-se o tiroteio Por falta de munição, Mas o cacete batia, Negro enrolava no chão. Pau e pedra que achavam, Era o que as mãos pegavam, Sacudiam em Lampião.
– Chega atrás um armamento! Assim gritava o vigia. Traz a pá de mexer doce! Lasca os ganchos de caria! Traz um bilro de macau! Corre, vai buscar um pau, Na cerca da padaria!
Lucifer com Satanás Vieram olhar, do terraço, Todos contra Lampião, De cacete, faca e braço. O comandante, no grito, Dizia: – Briga bonito, Negrada! Chega-lhe o aço!
Lampião pôde apanhar Uma caveira de boi. Sacudiu na testa dum, Ele só fez dizer: – Oi! Ainda correu dez braças E caiu, segurando as calças – Mas eu não sei por que foi!
Estava travada a luta, Mais de uma hora fazia. A poeira cobria tudo, Negro embolava e gemia, Porém Lampião ferido Ainda não tinha sido, Devido à grande energia.
Lampião pegou um seixo E rebolou-o num cão, Mas o que arrebentou? A vidraça do oitão – Saiu um fogo azulado, Incendiou o mercado E o armazém de algodão.
Satanás, com esse incêndio, Tocou no búzio, chamando. Correram todos os negros Que se achavam brigando. Lampião pegou a olhar – Não vendo com quem brigar, Também foi se retirando.
Houve grande prejuízo No inferno, nesse dia: Queimou-se todo o dinheiro Que Satanás possuía, Queimou-se o livro de pontos, Perdeu-se vinte mil contos, Somente em mercadoria.
Reclamava Lucifer: – Horror maior não precisa! Os anos ruins de safra, Agora mais esta pisa – Se não houver bom inverno, Tão cedo aqui, no inferno, Ninguém compra uma camisa!
Leitores, vou terminar, Tratando de Lampião, Muito embora que não possa Vos dar a explicação – No inferno não ficou, No céu também não chegou: Por certo está no sertão!
Quem duvidar desta história, Pensar que não foi assim, Querer zombar do meu sério, Não acreditando em mim – Vá comprar papel moderno, Escreva para o Inferno, Mande saber de Caim!
Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema publicado como folheto de cordel em ano desconhecido (primeira metade do século 20).
Uma das coisas que mais impressionaram Balzac a respeito de Cuvier foi que ele “reconstruía cidades a partir de um dente, como Cadmo”. O Barão dos Fósseis granjeou sua reputação com relação a dentes em 1804, quando recebeu o esqueleto de uma criatura do tamanho de um gato das pedreiras de calcário de Montmartre. Ela deixara sua marca em duas lascas de pedra que se encaixavam como sardinhas na lata. Os quadris, as pernas e pedaços da espinha alojavam-se numa das peças de calcário, com o resto do esqueleto na outra peça: um ombro, um braço e parte da mandíbula, os dentes como que num sorriso meio escancarado na pedra. Sem uma idéia clara de que tipo de animal se tratava, Cuvier levou o fóssil para o seu laboratório de museu e começou a examinar a boca do animal, desencravando os ossos e desenhando os detalhas à medida que avançava.
Podia ver a saliência na parte de trás da mandíbula, onde ela se articulava com o crânio, característica chamada de côndilo e que só os mamíferos possuem. Em muitos mamíferos o côndilo eleva-se alto atrás da maxila, mas a criatura no calcário recebido por Cuvier tinha um côndilo baixo que mal sobressaía das fileiras de dentes. Pôde de imediato eliminar a hipótese de ser um gato, cão ou marta, porque só animais como a toupeira, o porco-espinho, o morcego e o opossum têm mandíbula desse tipo. Cuvier soltou a mandíbula inferior e expôs as duas fileiras de dentes. Não eram pontiagudos como os de um carnívoro nem achatados como os de um herbívoro, uma vaca por exemplo. Eles se eriçavam em pequenos vértices pontudos – o tipo de dentes também característico apenas dos mamíferos com côndilo baixo. Sob uma lupa, pôde ver que alguns dentes eram triangulares, com três cúspides na forma de ganchos. Uma toupeira tem sete cúspides desse tipo; igualmente um morcego; um porco-espinho tem quatro. Os únicos mamíferos que têm três são certos marsupiais: o opossum da América do Sul e do Norte e seus parentes, os dasiurídeos da Austrália (grupo que inclui o diabo-da-tasmânia).
“Parei o meu trabalho nos dentes antes de me ocupar do resto do esqueleto”, escreveu mais tarde Cuvier, “mas podia prever tudo apenas a partir desse índice. Número de partes, formas, proporções – tudo o que a superfície da rocha nos oferecia achava resposta completa à primeira vista.” [...]
Fonte: Zimmer, C. 1999. À beira d’água. RJ, Jorge Zahar.