Fernando Mitre
– Vamos terminar logo
essa matéria?
– Estou tentando, mas
acho que esse texto podia ficar melhor.
– E por que não fica?
– Porque é matéria de
jornal.
– Quê?
– É isso. Se, em vez de
fazer lead, eu abrisse com um
diálogo.
– E por que não abre?
– Uai, pode?
– Não tem nenhuma lei
proibindo.
Era a primeira vez que
ouvia aquilo. E ouvia do meu chefe, um tremendo texto, Wander Piroli. Então eu
não precisava abrir a matéria com a famosa camisa-de-força? Podia esquecer a
lei do lead e deixar o texto correr
livremente?
Pois é. Veja só como uma
conversinha rápida e corriqueira como aquela na redação do Binômio em 1964 – que tentei reconstituir aqui, puxando as palavras
do fundo da memória, tantos anos depois – podia abrir a mente de um
pouco-mais-do-que-foca, como eu era naquele tempo.
E, a partir daquela
conversa e daquela matéria (se não me engano, era sobre a Companhia
Telefônica), eu comecei a quebrar regras. Mais tarde, isso foi essencial na
minha vida profissional porque fui cair, já em 1966, numa redação onde o que
valia mesmo era exatamente quebrar regras: o Jornal da Tarde, um radical laboratório de experiências editorias e
gráficas.
Na área gráfica – que
adotei, em certa fase, como minha atividade preferencial – o Binômio já havia semeado pesadas
ousadias, principalmente no corte e edição de fotos. Ainda me lembro,
claramente, da cena: Oséas de Carvalho discutindo e diagramando a primeira
página, selecionando e cortando fotos, medindo e rejeitando títulos e,
principalmente, ousando. Este processo de criação oferecia, às vezes,
resultados surpreendentes, como uma capa inteiramente sem títulos e jogando
apenas com fotos e legendas. As fotos, naturalmente, cortadas de maneira
radical.
(Lembro-me agora de que,
muitos anos depois de deixar o Binômio,
criei uma seqüência de capas no Jornal da
Tarde, que foi festejada em todo o país e acabou conquistando prêmios
importantes: a primeira delas era uma capa dupla tomando a primeira e a última
página do caderno, ocupadas inteiramente por uma única foto; e a segunda, no
dia seguinte, era apenas uma mancha negra ocupando todo o espaço da capa. A
grande foto mostrava o famoso comício pelas diretas em São Paulo e a mancha
negra era a marca do protesto pela derrota da emenda no Congresso. Quero dizer
que não tenho dúvidas de que eu já havia encontrado a raiz dessas ousadias no
modo de editar do Binômio.)
Mas todos esses lances
são, na verdade, sintomas do que se considerava a principal característica do Binômio: a coragem no conteúdo. Foi por
aí que se traçou sua trajetória verdadeiramente histórica. Uma espécie de luta
quixotesca pela transformação do Brasil. Você teria enormes dificuldades em
encontrar, pesquisando os jornais daquele tempo, textos melhores e mais
adequados sobre, por exemplo, a necessidade de reforma agrária no Brasil.
Comprova-se, com tudo
isso, a marca fortemente precursora do Binômio.
De certo modo, era um desbravador.
Nas minhas retinas –
ainda não fatigadas... – guardo uma cena em que José Maria Rabêlo, nosso
diretor e autor de textos brilhantes, enfrentava no braço um grupo de
anticomunistas empenhados em impedir, como de fato acabaram impedindo, um
comício de Leonel Brizola em Belo Horizonte. Como se vê, a luta do Binômio nem sempre se limitava às
palavras.
E é claro: se forma é
tudo o que molda o conteúdo, como dizem teóricos da linguagem, seria impossível
imaginar o nosso revolucionário Binômio
sem as experimentações, a ousadia e coragem também nas suas estruturas formais.
Fonte: Rabêlo, J. M.
1997. Binômio: edição histórica. BH,
Armazém de Idéias & Barlavento Grupo Editorial.