30 julho 2016

Eterna

Mário Pederneiras

Intérmino que fosse o Caminho da Vida
E eterno o caminhar do nosso passo incerto,
Fosse na estrada larga ou fosse no deserto,
Sem lar, sem pão, sem paz, sem sol e sem guarida;

Intérmina que fosse a estrada percorrida
Sob o Céu todo azul ou de nuvens coberto
E, o repouso fatal nunca estivesse perto
E a distância final nunca fosse vencida;

E vencendo ao caminho as urzes e os escolhos,
As lutas, o pavor, o cansaço do dia, 
A fraqueza do passo, a tristeza dos olhos;

Meu pobre coração nessa eterna ansiedade,
Nesse eterno sofrer, eterno arrastaria
Esta triste, esta longa, esta eterna Saudade.

Fonte (última estrofe): Cunha, C. 1976. Gramática do português contemporâneo, 6ª edição. BH, Editora Bernardo Álvares. Poema publicado em livro em 1912.

28 julho 2016

Uma obra-prima do desespero silencioso

Peter Beech

Alguns dos meus amigos e familiares podem revirar os olhos se virem isto – eles já ouviram inúmeras vezes a minha falação sobre Os restos do dia [Nota 1]. Alguns já receberam um exemplar imposto como presente. Ao longo dos anos, desde que o li, tornei-me um pregador de Os restos do dia. A culpa não é minha. A sutil obra-prima de Kazuo Ishiguro sobre as angústias íntimas de um mordomo envelhecido não é de todo desconhecida – afinal, ganhou o Prêmio Booker de 1989 –, mas às vezes a gente encontra uma obra literária tão bem escrita, tão comovente e tão perceptível sobre as vidas que muitos de nós estamos a levar, que não se pode deixar de elogiá-la a qualquer um que não seja perspicaz o suficiente para parecer ocupado.

A falta de comedimento talvez seja a melhor resposta ao romance de Ishiguro, a história de um homem tão oprimido pela decência a ponto de deixar o amor de sua vida escorregar por entre os dedos. O sr. Stevens é o chefe dos empregados de uma imponente mansão inglesa; quando o romance começa, no verão de 1956, ele está pronto para empreender uma viagem de carro com o propósito de visitar a srta. Kenton, uma governanta que saiu 20 anos antes para se casar. O mordomo diz que gostaria de lhe perguntar se ela pensaria em retornar ao trabalho: “Srta. Kenton, com seu grande apreço por esta casa e seu exemplar profissionalismo, era o elemento que me faltava para completar um plano de empregados plenamente satisfatório para Darlington Hall”. Mas Stevens não engana ninguém, especialmente quando deixa escapar que uma carta (“a sua primeira em sete anos, descontando os cartões de Natal”) contém pistas de que o casamento dela está desmoronando.

Narradores inconfiáveis – aquelas figuras misteriosas que o leitor deve tentar destrinchar – são comuns demais na ficção. Ishiguro, em vez disso, prefere nos oferecer narradores incônscios: falantes que permanecem aprisionados em fantasias de auto-preservação, misteriosas até para eles mesmos. Pouco a pouco, a gente aprende a procurar as reais emoções circulando debaixo da superfície lustrosa da prosa. Stevens recorda com prazer o seu antigo empregador, lorde Darlington, um aristocrata que se aliou aos nazistas e eventualmente morreu em desgraça. Ele esquadrinha as lembranças de seu pai – ele próprio um mordomo, que se mantinha distante a ponto de magoar – e prega sobre a “dignidade”, um ideal fictício que tem a ver “com a capacidade do mordomo de não abandonar o ser profissional que o habita”.

Cada anotação no diário se torna um afetado exercício de evasão e projeção. Quando Stevens chega a um assunto emotivo – tal como se a srta. Kenton foi embora por causa de sua recusa em admitir seus sentimentos por ela –, ele dá uma guinada, tagarelando em defesa própria, choramingando por algumas páginas antes de se sentir capaz de prosseguir. “Apesar de tudo”, escreve ele de modo revelador, “não vejo motivo para o seu retorno a Darlington Hall e acompanhar seus anos de trabalho lá não ofereceria um real consolo a uma vida que se tornou tão dominada por uma sensação de perda”.

O que é e o que poderia ter sido

Temos a imagem de um homem tentando desesperadamente abafar suas emoções – e quão completa é a imagem. Os restos do dia faz a coisa mais maravilhosa que um trabalho literário pode fazer: faz a gente sentir como se tivéssemos uma vida humana em nossas mãos. Quando chegamos ao fim, parece que realmente perdemos um amigo – um amigo ridiculamente pomposo, sério e antiquado [Nota 2], mas, ainda assim, um bom amigo. Temos vontade de abraçá-lo, a não ser que ele fique indignado.

Os restos do dia é um livro sobre uma vida frustrada. Sobre como o condicionamento de classe pode transformar você em seu pior inimigo, fazendo-o cúmplice de sua própria subserviência. É um livro bem inglês – não imagino que leitores de nações mais gregárias tenham muita paciência com um protagonista que consome quatro décadas e não consegue declarar seus sentimentos. “À espera, em silente desespero, é o jeito inglês” [Nota 3], como o Pink Floyd cantou. É um livro para todos aqueles que acham que já se contiveram quando algo que realmente importava estava ao seu alcance.

Acima de tudo, porém, é um livro sobre o amor. Stevens é forçado a abandonar suas ilusões sobre lorde Darlington, seu orgulho filial, sua estimada “dignidade”, até que tudo o que resta é a srta. Kenton e o que poderia ter sido. A história atinge o seu discreto clímax na calma de uma pequena lanchonete na Cornualha. Não vou estragar o final, apenas dizer que, nessa como em outras passagens, o que não é dito faz toda a diferença.

Ouvi certa vez que, para fazer o leitor chorar, o escritor deveria tentar manter os personagens com os olhos secos. Há algumas lágrimas nesse romance – todavia, talvez não o suficiente, pois a história do inabalável e irremediavelmente equivocado Stevens sempre me emociona. Se ainda não leu Os restos do dia, espero que me dê licença para deixar de lado minha dignidade profissional, implorando a você que consiga logo um exemplar. E se você tiver lido e gostado – o que quer que você faça –, não guarde os seus sentimentos só para si.

Notas do tradutor

1. Em janeiro de 2015, com bastante atraso, descobri que a Companhia das Letras havia publicado uma versão do livro em português, intitulada Os resíduos do dia (2003) (aqui). Achei o título desastroso e, na ocasião, escrevi o seguinte comentário:

“Traduzir ‘The remains of the day’ como ‘Vestígios do dia’, como aconteceu com o filme (1993), já foi uma escolha ruim, mas a ambiguidade do termo ‘vestígio’ (= indício, pista) parece ter emprestado algum charme, o que terminou encobrindo a barbeiragem. A opção por ‘Os resíduos do dia’, no entanto, é simplesmente ruim de doer (para não dizer patética), não só de um ponto de vista semântico ou estético, mas também porque induz o leitor a mal-entendidos. Em português, penso eu, uma opção bem mais apropriada seria ‘Os restos do dia’. Não li o livro, mas no filme (uma obra-prima e, ouso dizer, um dos maiores filmes da história do cinema [aqui]) a expressão fixada no título é usada pelo mordomo Stevens (Anthony Hopkins) em alusão ao seu futuro (os anos pela frente com o novo senhorio etc.) não em alusão ao passado, embora a maior parte do filme seja ocupada por recordações (flashbacks)”.

Enquanto preparava a tradução do artigo acima, descobri que a editora relançou a versão em português, agora sob o título Os vestígios do dia (2016). (Cabe notar que o título do filme lançado no país não tem o “Os”.)

2. No original: “[...] a laughably pompous, part[y]-hat-refusing, stick-in-the-mud friend […]”.

3. No original: “Hanging on in quiet desperation is the English way”.

*

Fonte: versão original, “The Remains of the Day by Kazuo Ishiguro – a subtle masterpiece of quiet desperation”, publicada no jornal The Guardian, em 7/1/2016.

27 julho 2016

Sereia


Elisabeth Jerichau Baumann (1819-1881). Hayfrue. 1873.

Fonte da foto: Wikipedia.

25 julho 2016

Aminoácidos não proteicos

Lincoln Taiz & Eduardo Zeiger

As plantas e os animais incorporam os mesmos 20 aminoácidos nas suas proteínas. Entretanto, muitas plantas contêm aminoácidos pouco comuns, chamados de aminoácidos não proteicos, que não são incorporados em proteínas, mas que estão presentes na forma livre e atuam como substâncias protetoras. Eles são muitas vezes similares aos aminoácidos proteicos. A canavanina, por exemplo, é um análogo próximo da arginina e a azetidina-2-ácido carboxílico apresenta estrutura semelhante à da prolina [...].

Os aminoácidos não proteicos exercem sua toxidade de várias maneiras. Alguns bloqueiam a síntese ou a absorção de aminoácidos proteicos; outros, como a canavanina, podem ser erroneamente incorporados às proteínas. Após a ingestão pelo herbívoro, a canavanina é reconhecida por uma enzima que normalmente liga a arginina à molécula de RNA transportador desse aminoácido, assim incorporando a canavanina em vez da arginina. O resultado desse processo é a produção de uma enzima não funcional, pois a sua estrutura terciária ou seu sítio catalítico é desorganizado. A canavanina é menos básica do que a arginina e pode alterar a capacidade de ligação de uma enzima ao substrato ou de catalisar reações químicas [...].

Os vegetais que sintetizam aminoácidos não proteicos não são susceptíveis à toxidade desses compostos. As sementes de Canavalia ensiformis, que sintetizam grandes quantidades de aminoácidos não proteicos, apresentam uma maquinaria de síntese proteica que pode distinguir entre a arginina e a canavanina, não incorporando esta última nas suas proteínas. Alguns insetos que se especializaram em plantas que contém aminoácidos não proteicos apresentam adaptações bioquímicas semelhantes.

Fonte: Taiz, L. & Zeiger, E. 2004. Fisiologia vegetal, 3ª ed. Porto Alegre, Artmed.

23 julho 2016

Estereoquímica

Ricardo Bicca de Alencastro & Eloisa Mano

A estrutura espacial de um composto é indicada por um ou mais prefixos. Estes prefixos não têm relação com o nome em si. Assim, enantiômeros, diastereoisômeros e isômeros cis-trans recebem nomes que diferem apenas pelos prefixos que indicam a estereoquímica. As únicas exceções são as dos nomes vulgares que têm implicações estereoquímicas (como, por exemplo, ácido citracônico, colesterol etc.). Em alguns casos, todavia, as relações estereoquímicas, representadas pelos prefixos, podem ser utilizadas para decidir entre numerações alternativas igualmente permitidas.

O presente capítulo dá algumas definições fundamentais em estereoquímica e algumas regras indicativas do uso dos prefixos já referidos.

a) Tipos de isomeria

Os termos gerais, abaixo, são relevantes para a compreensão das regras de nomenclatura que envolvem estereoquímica.

+ O termo estrutura pode ser utilizado em conexão com qualquer aspecto da organização da matéria.

+ Compostos de mesma fórmula molecular que diferem na sequência de ligações entre os átomos, ou no arranjo dos átomos no espaço, são ditos isômeros.

+ A fórmula estrutural define a natureza e a sequência de ligação dos átomos. Isômeros que diferem em estrutura são denominados isômeros de posição.

+ Os isômeros são denominados estereoisômeros quando diferem apenas no arranjo espacial dos átomos.

+ Os estereoisômeros são ditos isômeros cis-trans quando diferem apenas na posição dos átomos em relação a um plano especificado, nos casos em que estes átomos são ou podem ser considerados como parte de uma estrutura rígida.

+ Na interpretação clássica, a configuração de uma molécula é o arranjo de seus átomos no espaço sem levar em consideração diferenças causadas pela rotação em torno de uma ou mais ligações simples. As moléculas que diferem na configuração são ditas isômeros configuracionais.

+ Os termos estereoquímica relativa e configuração relativa são utilizados para descrever as posições de substituintes em átomos diferentes de uma molécula, um em relação ao outro.

+ Os termos estereoquímica absoluta e configuração absoluta são usados para descrever o arranjo espacial de substituintes em torno de um elemento quiral (centro, eixo etc.). [...]

+ Na interpretação clássica, as configurações de uma molécula são os diversos arranjos dos átomos no espaço, diferindo apenas pela rotação em torno de ligações simples.
[...]

Fonte: Alencastro, R. B. & Mano, E. 1987. Nomenclatura de compostos orgânicos. RJ, Guanabara.

21 julho 2016

Olhando o rio

Belmiro Braga

Nas noites claras de luar, costumo
ir das águas ouvir o vão lamento;
e, após o ouvi-las, cauteloso e atento
que o rio também sofre, eis que presumo.

Nesse que leva tortuoso rumo,
que fado triste e por demais cruento:
Vai deslizando agora doce e lento
e agora desce encachoeirado e a prumo.

O dorso aqui lhe encrespa leve brisa,
ali o deslizar calhau lhe veda;
além, de novo, sem fragor, desliza...

És como o rio, coração tristonho:
Se ele vive a chorar de queda em queda,
vives tu a gemer de sonho em sonho...

Fonte: Braga, B. 2011. Montezinas (primeiro versos). Juiz de Fora, Funalfa. Poema – com a dedicatória ‘A Alencar Duarte’ – publicado em livro em 1902.

19 julho 2016

Ay, Justiça, mal fazedes que non

João Airas de Santiago

   Ay, Justiça, mal fazedes que non
queredes ora dereito filhar
de Mor da Cana porque foi matar
Joan Ayras, ca fez mui sen razon.
Mais se dereito queredes fazer,
ela so el devedes a meter,
ca o manda o livro de Leon.
   Ca lhi queria gran ben e des i
nunca lhi chamava se non “senhor
e quando lh’el queria mui milhor,
foi o ela logo matar ali.
Mais, Justiça, pois tan gran torto fez,
metede-a ja so el ũa vez,
ca o mandan, e dereit’é assi.
   E quando mais Joan Ayras cuidou
que ouvesse de Mor da Cana ben,
foi o ela logo matar por én
tanto que el en seu poder entrou.
Mais, Justiça, pois que assi é ja
metan-a so el, et padecer-á
a que o a mui gran torto matou.
   E quen-os ambos vir’jazer dirá:
“bẽeito sej(a) aquel que o julgou”.

Fonte: Vasconcelos, CM. 2004 [1904]. Glosas marginais ao cancioneiro medieval português de Carolina Michaëlis de Vasconcelos. Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis. Poema escrito na segunda metade do século 13.

17 julho 2016

Pelos 40 anos da morte de García Lorca

Claudio Willer

Eu vi pouca coisa nos jornais & revistas sobre os 40 anos da morte de
García Lorca
algumas manifestações e homenagens & uma notícia interessante (na Veja)
detalhando as circunstâncias – só isso
o resto, notas esparsas perdidas nos textos
quase ninguém lembrou
passou despercebido
ninguém quis lembrar
porque as pessoas não querem mais lembrar
e desistiram de falar
pois esta é a era do silêncio
silêncio de covas rasas e túmulos lacrados e circunscritos
silêncio vigiado e preso
silêncio de poeiras há pouco assentadas
pois todos estão mudos e perplexos
alguns mortos incomodam demais
e ninguém quer saber
ninguém quer ver
ninguém quer saber o que tem a ver
apenas este silêncio selado esponjoso grávido
de escorpiões & maresias & tempos & memórias
& vítimas do fascismo
silêncio sem preces nem retaliações
silêncio de palavras costuradas
sexos guilhotinados
uivos espalhados pelas madrugadas
silêncio fantasiado de escafandrista
silêncio de pupilas desorbitadas
tímpanos perfurados unhas arrancadas
gritos em corredores estreitos
jorros de silêncio naufrágios de silêncio
silêncio de cascos estilhaçados de tartaruga
desabando sobre o mundo
silêncio sobre o que foi
o que é
e o que se sabe
silêncio com endereço certo e data marcada
silêncio vômito do tempo e ejaculação precoce
silêncio de feltro
estiletes & punhais dentro da noite
& anteparos & mesas cirúrgicas
& corpos & anêmonas & brônquios
& sangue recém-coagulado pelas paredes
silêncio maior que o mundo e mais pesado que o tempo
silêncio de eletrodos & poções mágicas
silêncio de sorrisos oblíquos
rostos cúmplices
olhares de viés
silêncio conivente e sussurrado
silêncio fantasma à cabeceira
passos de silêncio
atmosferas de silêncio
perseguições na quietude do tempo presente
convulsões inesperadas
silêncio carregado de alucinações
que nos perseguem encapuzadas
silêncio de vértebras e rins e palavras ocultas e soterradas
e vigiadas
junto ao corpo de Federico García Lorca
assassinado por alcaguetes e tropas fascistas
em um campo de Granada em agosto de 1936
desde então ciosamente guardado
por uns poucos fantasmas carcomidos e fosforescentes
para que ninguém chegue perto
e tenha a coragem de romper o lacre
e soltar as palavras
a serem lançadas contra a opacidade do mundo
... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
e acharam tudo muito bonito
gostaram demais dos textos
de fato, era um grande poeta
e ficou por isso mesmo

Fonte (versos 32, 57-67): Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1981.

15 julho 2016

Pátio de mosteiro sob a neve


Carl Friedrich Lessing (1808-1880). Klosterhof im Schnee. 1828-9.

Fonte da foto: Wikipedia.

13 julho 2016

Polimorfismo e o supergene

E. B. Ford

É [o polimorfismo] uma forma de variação de grande importância e de aplicação universal. Foi definido por Ford [...] como “a ocorrência conjunta, no mesmo hábitat, de duas ou mais formas descontínuas de uma espécie, em proporções tais que a mais rara não pode ser mantida apenas por mutações recorrentes”.

O significado e o alcance dessa definição podem ser melhor entendidos, tomando-a por partes. Ela exclui, claramente, tanto as formas geográficas como as sazonais. Exclui também a variação multifatorial, responsável por alguma característica que possa assumir todos os valores entre dois extremos, ambos raros, ao passo que a média entre elas constitui uma classe relativamente comum: por exemplo, a altura em uma dada população humana. Além disso, existe uma outra situação que não pode ser polimórfica: a estabelecida por qualidades desvantajosas raras, eliminadas pela seleção e mantidas apenas [por meio] de mutações. Uma população humana não será polimórfica por incluir alguns indivíduos que, como São Marcos, possuem dedos truncados (braquidactilia).

No polimorfismo coexistem formas alternativas distintas, como os conhecidos grupos sanguíneos O e A, não relacionados [por meio] de intermediários e, na maioria das raças, ocorrendo conjuntamente em alta frequência, tanto em homens como em mulheres; portanto, algum tipo de ‘mecanismo de controle’ deve decidir qual a alternativa, dentre duas ou mais, se desenvolverá num dado indivíduo. Esse controle é quase sempre proporcionado pela segregação de um par de alelos, ou pelas formas alternativas de um supergene [...].

Fonte: Ford, E. B. 1980. Genética e adaptação. SP, EPU & Edusp.

12 julho 2016

Nove anos e nove meses no ar

F. Ponce de León

Nesta terça-feira, 12/7, o Poesia contra a guerra completa nove anos e nove meses no ar. Ao longo desse período, e até o fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue registrou 297.600 visitas.

Desde o balanço anterior – Nove anos e oito meses no ar – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Bruce H. Mahan, David Halliday, Hélio Siqueira Silveira, Jearl Walker, João de Deus, Kathleen E. Gilligan, Luís Murat, Newton Carlos, Raul Pompeia, Robert Resnick, Tomás Mamani Amorraga e Walter Savage Landor. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Bengt Nordenberg e Johann Wilhelm Schirmer.

10 julho 2016

Terra das flores

Tomás Mamani Amorraga

Panqar Marka,
Terra de índios, grandes pensadores.
Em noite lúgubre ou em noite de lua
Brilhas, oh, como uma estrela!
Nosso mar, o Titicaca, é o teu espelho,
Nossa grande montanha, o lllimani, é o teu protetor,
Collasuyo, meu povo.

Panqar Marka, és a minha terra de flores
Entre a névoa e a noite escura,
Os pampas emaranhados e as ladeiras das montanhas,
Por onde corre a água, são minha existência.
Nas minhas penas e nas minhas alegrias
Tudo me queima.
Os animais choram muito,
Nas manhãs e nas tardes,
Olhando o horizonte.

Panqar Marka, Tawantinsuyo, Collasuyo,
Por que se calam?
Povo altivo como o condor dos Andes,
Por que olvidas teus deveres, tendo olhos?
Até quando não saberás escrever em tua língua
Aimara, para dizer as verdades?
Onde estás, neto de Julián Apasa, Tupac Katari?
Por que se seca a corrente de água?
Por que se perde tua prata, Bolívia?
Povo meu, até agora estás nas mãos alheias,
Por isso estou triste.

Panqar Marka, meu coração salta
Pensando nos meus terrenos e nos animais
Que se acabam, dia a dia.
Os poderosos nos fecham as portas.
Sozinho vou confessar-me, não se lembram de mim.
Ainda não se abrem as portas.
Para comercializar de terra em terra
Para que comamos bem
Muitos estão florescendo em Collasuyo.

Fonte (exceto três últimos versos): Freire, C. 2004. Babel de poemas: uma antologia multilíngüe. Porto Alegre, L&PM.

08 julho 2016

Tílburi de praça

Raul Pompeia

Não encontraram por aí minha mulher?... É original. Desde que me casei... Eu por uma porta, ela por outra. Só nos encontramos uma vez frente a frente com vontade. Eu entrava por um lado, ela entrava por outro... A nossa vida de casados é uma verdadeira questão aberta. Entrar e sair é tudo a mesma cousa. Acontece, porém, que ela está sempre fora e eu nunca estou dentro. Já me disseram:

– Cuidado, João, tua mulher tem amantes...

Eu estou de olho... Não há perigo. Olhem, aqui em casa eles não me passam a perna... Na rua eu a espio... Onde ela entra, entro eu atrás. Casei, todos sabem, não foi por dinheiro – tenho os meus prédios. Casei por paixão, ou antes, por compaixão. Vi-a no seu véu tristezinho de viúva, com uns olhos pretos por baixo, que não tinham nada de luto, valha a verdade. Olhou para mim docemente. Eu tenho os meus prédios... Lembrei-me deles com orgulho, diante daquela formosíssima soledade. Comecei a gostar dela. Um homem depois de cinquenta não namora – os dedos estão perros para o bandolim das serenatas, o luar dos balcões tem reumatismos. Desde que haja meia dúzia de prédios, é logo casamento... Foi o diabo... Logo na igreja, dei com a viuvinha olhando um convidado... Viúvo de uma mulher como eu tive, boa, gorda, pacata, amiga do rapé e dos seus cômodos, casar com aquela figurinha saltitante, de olhos pretos, que, logo ali, começava a pular-me fora do matrimônio... Estive quase a desmanchar tudo, na hora do “recebo a vós”... “Não faz mal”, pensei porém, “gosto dela... Que diabo! Se casar com outra, não poderá suceder a mesma cousa? Vá! É um gosto ao menos”. E atirei-me de cabeça.

Matrimônio é assim. A primeira cousa que um marido deve comprometer é a cabeça... Para ficar logo atordoado. Senão, não casa... Eu cravei um olhar na minha noiva. Ia divina, num simples vestido roxo, que a vestia como se a despisse. Sorriu-me. Pareceu-me sentir, ao redor de mim, um turbilhão de abelhas douradas, brilhando e zumbindo. Casei-me...

Pois bem, daí para cá, é isto... Eu por uma porta, ela por outra, cabra-cega. Às vezes, passamos um pelo outro. Ela a caminhar na sua vida, eu na minha espiando. Ela sorri-me – eu disfarço, coro e vou seguindo para adiante.

Ora, meus senhores, não me dirão como hei de pegar minha mulher? É isto. “Tempo-será-de-min-c-o-có”!... Toda a vida. Quanto a amantes, ela não tem. Isto eu lhes juro... Vem cá em casa o tipo da igreja, o tal convidado do olhar... Mas eu estou de olho... Ele é finório, bonito, correto, conversa bem, graceja e tem uma maneirazinha faceira de não fazer caso de cousa nenhuma, como um filósofo. Fuma um charuto de primeira qualidade, de linda fumaça azul, que faz letras no ar... Às vezes mesmo, em minha casa, ele recosta-se no terraço e fica a ler com uma expressão faceira, meio adormecido, as letras de fumo na atmosfera calma da tarde. Até eu fico seduzido e aceito um charuto dos dele, e fico a fumar, ouvindo os bambus, as cigarras... Minha mulher, calada, ao nosso lado, ouve, como eu, as cigarras, e os bambus, conjugalmente. Mas eu conheço que ela gosta mais, extraconjugalmente, de ver as letras azuis do meu amigo. Assim ficamos, os três, recostados nas chaises-longues, bebendo crepúsculo.

Ela é a primeira que se levanta.

– Que insípido! – exclama. – Ora, a gente aqui calada, a ver fumaça de charuto!

E, então, agita-se como uma pata que sai da água, como um belo cisne, devia eu dizer, que acabasse de sair daquele imenso lago de morbidez em que nos perdíamos.

– Vamos passear! Vamos passear!

E, então, com uma graça que não sei com que comparar, põe-se a desfazer com o leque as letras azuis dos charutos. Ah! A diabinha adorável, e não haver meio de eu encontrá-la!... Ora, será por que eu não sou bastante?... Mas, que diabo! Ela daquele tamanhinho... Porém, reatando, o tal amigo, das letras azuis, namora-a, namora-a, não há dúvida. Mas é só namoro, garanto-lhes... Depois, depois... Depois eu estou de olho... Não tenho repartição que me prenda... Não tenho obrigação de hora certa... Tenho os meus prédios... Posso espiá-la dia e noite!... Não! Amante ela não tem, posso afirmar... Pois se nem a mim mesmo ela quer!... É o seu mal... Quanto ao mais é só passear, passear. O que a perde é o passeio. Mas por que não nos encontramos nós no matrimônio? Por que diabo ela quebra esquina, quando me vê em frente, deixa-me com cara de burro em plena rua da amargura, em plena rua do sacramento, devera eu dizer?!...

Já visitei uma sonâmbula.

Por que não há meio de encontrar minha mulher?

– Espie – disse-me ela.

– Tenho espiado... Ainda outro dia, entrou ali numa modista, onde vai muito... Perguntei por ela. Acabava de sair pelo outro lado. A casa tem duas frentes. Examinei... O lugar mais sério deste mundo!

Daí a pouco, um amigo (o mesmo das fumaças, por sinal) disse-me que tinha estado ali com ela, que a vira ensaiando um chapéu... Contei à cartomante a nossa vida, mais ou menos, a minha vigilância. A tal pitonisa era uma esperta gorducha, de bochechas vermelhas, e grande pasta de cosmético na testa, como uma aba de boné. Sorriu. Retirou-se a deitar cartas, num gabinete obscuro. De volta, falou-me simbolicamente, com alguma pimenta de malícia na voz.

– Meu senhor, o coração dessa mulher é uma cousa complicada. Não se pode estudar e definir de uma só maneira, mas, no ponto da sua consulta, eu creio que não erro, com esta exposição da minha experiência. Há corações fechados que são como portas de que se perde a chave. Ninguém lhes entra, sem que um milagre da sorte ensine como. Então, é a imensa ventura. Há corações de uma só porta, como as casas seguras, onde a gente entra, sem custo, instala-se, faz família dentro, e aí chega a netos tranquilamente. Há corações de duas portas, que dão entrada a um afeto pela frente, diante da sociedade, e a outro afeto pelos fundos, diante da indiscrição da Candinha e seus filhos. O segredo destes amores de acordo é possível, mas, às vezes, mesmo sem segredo eles são felizes. Há corações hotéis, onde todo o mundo entra, escandalosamente, quase simultaneamente, pagando à parte seu cômodo, sem grande intriga, nem ciúmes. Há corações bodegas, que é um horror... Mas, há uma espécie curiosa de corações, um produto das sociedades desenvolvidas, para a qual lhe chamo a atenção – o coração volante, o coração rodante, que aceita amor, mas que não fixa, daqui para ali, a tanto por hora, a tanto por mês, o coração tílburi de praça, que aceita o passageiro em qualquer canto, que dobra a esquina, que corre, que para, que vem, que desaparece, que passa pela gente, às vezes juntinho, sem que se possa ver quem vai dentro...

Eu compreendi vagamente. A cartomante queria chamar minha mulher de tílburi... Ora, minha mulher um tílburi!... Pedi que esclarecesse.

– Nada mais lhe digo. Saiba entender...

Ora bolas!... E fiquei na mesma, com a metáfora da consulta e com a minha querida mulher, que eu não tenho, que é entrar eu por uma porta ela sair por outra, como um fim de história de meninos.

Fonte: Costa, F. M., org. 2009. Os melhores contos brasileiros de todos os tempos, 3ª edição. RJ, Ediouro. Conto publicado em 1889.

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