Raul Pompeia
Não encontraram por aí
minha mulher?... É original. Desde que me casei... Eu por uma porta, ela por
outra. Só nos encontramos uma vez frente a frente com vontade. Eu entrava por
um lado, ela entrava por outro... A nossa vida de casados é uma verdadeira
questão aberta. Entrar e sair é tudo a mesma cousa. Acontece, porém, que ela
está sempre fora e eu nunca estou dentro. Já me disseram:
– Cuidado, João, tua
mulher tem amantes...
Eu estou de olho... Não
há perigo. Olhem, aqui em casa eles não me passam a perna... Na rua eu a
espio... Onde ela entra, entro eu atrás. Casei, todos sabem, não foi por
dinheiro – tenho os meus prédios. Casei por paixão, ou antes, por compaixão.
Vi-a no seu véu tristezinho de viúva, com uns olhos pretos por baixo, que não
tinham nada de luto, valha a verdade. Olhou para mim docemente. Eu tenho os
meus prédios... Lembrei-me deles com orgulho, diante daquela formosíssima
soledade. Comecei a gostar dela. Um homem depois de cinquenta não namora – os
dedos estão perros para o bandolim das serenatas, o luar dos balcões tem
reumatismos. Desde que haja meia dúzia de prédios, é logo casamento... Foi o
diabo... Logo na igreja, dei com a viuvinha olhando um convidado... Viúvo de
uma mulher como eu tive, boa, gorda, pacata, amiga do rapé e dos seus cômodos,
casar com aquela figurinha saltitante, de olhos pretos, que, logo ali, começava
a pular-me fora do matrimônio... Estive quase a desmanchar tudo, na hora do “recebo a vós”... “Não faz mal”, pensei
porém, “gosto dela... Que diabo! Se casar com outra, não poderá suceder a mesma
cousa? Vá! É um gosto ao menos”. E atirei-me de cabeça.
Matrimônio é assim. A
primeira cousa que um marido deve comprometer é a cabeça... Para ficar logo
atordoado. Senão, não casa... Eu cravei um olhar na minha noiva. Ia divina, num
simples vestido roxo, que a vestia como se a despisse. Sorriu-me. Pareceu-me
sentir, ao redor de mim, um turbilhão de abelhas douradas, brilhando e
zumbindo. Casei-me...
Pois bem, daí para cá, é
isto... Eu por uma porta, ela por outra, cabra-cega. Às vezes, passamos um pelo
outro. Ela a caminhar na sua vida, eu na minha espiando. Ela sorri-me – eu
disfarço, coro e vou seguindo para adiante.
Ora, meus senhores, não
me dirão como hei de pegar minha mulher? É isto. “Tempo-será-de-min-c-o-có”!...
Toda a vida. Quanto a amantes, ela não tem. Isto eu lhes juro... Vem cá em casa
o tipo da igreja, o tal convidado do olhar... Mas eu estou de olho... Ele é finório,
bonito, correto, conversa bem, graceja e tem uma maneirazinha faceira de não
fazer caso de cousa nenhuma, como um filósofo. Fuma um charuto de primeira
qualidade, de linda fumaça azul, que faz letras no ar... Às vezes mesmo, em
minha casa, ele recosta-se no terraço e fica a ler com uma expressão faceira,
meio adormecido, as letras de fumo na atmosfera calma da tarde. Até eu fico
seduzido e aceito um charuto dos dele, e fico a fumar, ouvindo os bambus, as
cigarras... Minha mulher, calada, ao nosso lado, ouve, como eu, as cigarras, e
os bambus, conjugalmente. Mas eu conheço que ela gosta mais,
extraconjugalmente, de ver as letras azuis do meu amigo. Assim ficamos, os
três, recostados nas chaises-longues,
bebendo crepúsculo.
Ela é a primeira que se
levanta.
– Que insípido! – exclama.
– Ora, a gente aqui calada, a ver fumaça de charuto!
E, então, agita-se como
uma pata que sai da água, como um belo cisne, devia eu dizer, que acabasse de
sair daquele imenso lago de morbidez em que nos perdíamos.
– Vamos passear! Vamos
passear!
E, então, com uma graça
que não sei com que comparar, põe-se a desfazer com o leque as letras azuis dos
charutos. Ah! A diabinha adorável, e não haver meio de eu encontrá-la!... Ora,
será por que eu não sou bastante?... Mas, que diabo! Ela daquele tamanhinho...
Porém, reatando, o tal amigo, das letras azuis, namora-a, namora-a, não há
dúvida. Mas é só namoro, garanto-lhes... Depois, depois... Depois eu estou de
olho... Não tenho repartição que me prenda... Não tenho obrigação de hora
certa... Tenho os meus prédios... Posso espiá-la dia e noite!... Não! Amante
ela não tem, posso afirmar... Pois se nem a mim mesmo ela quer!... É o seu
mal... Quanto ao mais é só passear, passear. O que a perde é o passeio. Mas por
que não nos encontramos nós no matrimônio? Por que diabo ela quebra esquina,
quando me vê em frente, deixa-me com cara de burro em plena rua da amargura, em
plena rua do sacramento, devera eu dizer?!...
Já visitei uma sonâmbula.
Por que não há meio de
encontrar minha mulher?
– Espie – disse-me ela.
– Tenho espiado... Ainda
outro dia, entrou ali numa modista, onde vai muito... Perguntei por ela.
Acabava de sair pelo outro lado. A casa tem duas frentes. Examinei... O lugar
mais sério deste mundo!
Daí a pouco, um amigo (o
mesmo das fumaças, por sinal) disse-me que tinha estado ali com ela, que a vira
ensaiando um chapéu... Contei à cartomante a nossa vida, mais ou menos, a minha
vigilância. A tal pitonisa era uma esperta gorducha, de bochechas vermelhas, e
grande pasta de cosmético na testa, como uma aba de boné. Sorriu. Retirou-se a
deitar cartas, num gabinete obscuro. De volta, falou-me simbolicamente, com
alguma pimenta de malícia na voz.
– Meu senhor, o coração dessa
mulher é uma cousa complicada. Não se pode estudar e definir de uma só maneira,
mas, no ponto da sua consulta, eu creio que não erro, com esta exposição da
minha experiência. Há corações fechados que são como portas de que se perde a
chave. Ninguém lhes entra, sem que um milagre da sorte ensine como. Então, é a
imensa ventura. Há corações de uma só porta, como as casas seguras, onde a
gente entra, sem custo, instala-se, faz família dentro, e aí chega a netos
tranquilamente. Há corações de duas portas, que dão entrada a um afeto pela
frente, diante da sociedade, e a outro afeto pelos fundos, diante da
indiscrição da Candinha e seus filhos. O segredo destes amores de acordo é
possível, mas, às vezes, mesmo sem segredo eles são felizes. Há corações
hotéis, onde todo o mundo entra, escandalosamente, quase simultaneamente,
pagando à parte seu cômodo, sem grande intriga, nem ciúmes. Há corações
bodegas, que é um horror... Mas, há uma espécie curiosa de corações, um produto
das sociedades desenvolvidas, para a qual lhe chamo a atenção – o coração
volante, o coração rodante, que aceita amor, mas que não fixa, daqui para ali,
a tanto por hora, a tanto por mês, o coração tílburi de praça, que aceita o
passageiro em qualquer canto, que dobra a esquina, que corre, que para, que
vem, que desaparece, que passa pela gente, às vezes juntinho, sem que se possa
ver quem vai dentro...
Eu compreendi vagamente.
A cartomante queria chamar minha mulher de tílburi... Ora, minha mulher um
tílburi!... Pedi que esclarecesse.
– Nada mais lhe digo.
Saiba entender...
Ora bolas!... E fiquei na
mesma, com a metáfora da consulta e com a minha querida mulher, que eu não
tenho, que é entrar eu por uma porta ela sair por outra, como um fim de
história de meninos.
Fonte: Costa, F. M., org.
2009. Os melhores contos brasileiros de todos os tempos, 3ª edição. RJ, Ediouro. Conto publicado em 1889.