30 novembro 2006

As meninas


Diego Velázquez (1599-1660). Las meninas. 1656.

Fonte da foto: Mark Harden's Artchive.

Notícias

Régis Bonvicino

Caminhou ao lado de um míssil

numa rua

que não explodiu

catadores rasgam,


pilham e abandonam

os sacos de lixo

negociantes de inutilidades

estrago de parasitas


árvores condenadas

podem desabar

a qualquer momento

com a chuva


a raiz da seringueira arrebenta a calçada

buraco aberto

pela explosão de uma bomba

vestes grosseiras,


peles de ovelha

assassinatos seletivos

colonos

dilatação intacta de uma bala,


no Pará, a genitália do boto

é vendida como

amuleto do amor

uma balsa naufraga em Bangaladesh


um tiro abate agora

mais um helicóptero

estupros como arma de guerra

elas também ficavam de bruços


La negra

piercings no nariz

uma explosão fere

palavras menos entregues


Fonte: poema enviado pelo próprio autor, a quem agradeço pela cortesia, e que integra o livro Página orfã (publicação prevista para março de 2007).

29 novembro 2006

In the cage

Peter Gabriel

There’s sunshine in my stomach

Like I just rocked my baby to sleep.

There’s sunshine in my stomach

And I can’t keep me from creeping sleep,

Sleep, deep in the deep.


Rockface moves to press my skin

White liquids turn sour within

Turn fast – turn sour

Turn sweat – turn sour.

Must tell myself that I’m not here.

I’m drowning in a liquid fear.

Bottled in a strong compression,

My distortion shows obsession

In the cave.

Get me out of this cave!


If I keep self-control,

I’ll be safe in my soul.

And the childhood belief

Bring’s a moment’s relief,

But my cynic soon returns

And the lifeboat burns.

My spirit just never learns.


Stalactites, stalagmites

Shut me in, lock me tight.

Lips are dry, throat is dry.

Feel like burning, stomach churning,

I’m dressed up in a white costume

Padding out leftover room.

Body stretching, feel the wretching

In the cage

Get me out of this cage!


In the glare of a light,

I see a strange kind of sight;

Of cages joined to form a star

Each person can’t go very far;

All tied to their things

They are netted by their strings,

Free to flutter in memories of their wasted wings.


Outside the cage I see my Brother John,

He turns his head so slowly round.

I cry out Help! before he can be gone,

And he looks at me without a sound.

And I shout out ‘John please help me!’

But he does not even want to try to speak.

I’m helpless in my violent rage

And a silent tear of blood dribbles down his cheek,

And I watch him turn away and leave the cage.

My little runaway.


In a trap, feel a strap

Holding still. Pinned for kill.

Chances narrow that I’ll make it,

In the cushioned straight-jacket.

Just like 22nd Street,

When they got me by my neck and feet.

Pressures building, can’t take any more.

My headaches charge. My earaches roar.

In the pain

Get me out of this pain.


If I could change to liquid,

I could fill the cracks up in the rock.

But I know that I am solid

And I am my own bad luck.

But outside John disappears and my cage dissolves,

and without any reason my body revolves.


Keep on turning

Keep on turning

Turning around

Spinning around.


Fonte: encarte que acompanha os LPs do álbum duplo The lamb lies down on Broadway (1974), do Genesis.


28 novembro 2006

Transgredindo as fronteiras

Alan Sokal

Até que enfim a verdade vem à tona: meu artigo “Transgredindo as fronteiras: em direção à uma hermeneutica transformativa da gravitação quântica”, publicado na edição primavera/verão de 1996 da revista de estudos culturais Social Text, é uma paródia. É óbvio que tenho obrigação de apresentar aos editores e aos leitores da Social Text, assim como à comunidade intelectual em geral, uma explicação correta dos meus motivos e dos meus verdadeiros pontos de vista. Um dos meus objetivos aqui é dar uma pequena contribuição ao diálogo, na esquerda, entre humanistas e cientistas naturais – “duas culturas” que, ao contrário do que querem fazer crer alguns pronunciamentos otimistas (principalmente da parte dos humanistas), nos últimos cinqüenta anos estão provavelmente muito mais afastados mentalmente do que nunca.

Como o gênero que pretendia satirizar – uma miríade de exemplos podem ser encontrados na minha bibliografia –, meu artigo é uma mistura de verdades, meias verdades, um quarto de verdades, falsidades, falácias, e sentenças que, embora sintaticamente corretas, não têm, em absoluto, nenhum sentido. (Lamentavelmente, existe apenas um punhado destas últimas: tentei incansavelmente criá-las, porém acho que, salvo raros lampejos de inspiração, simplesmente não tive capacidade para tal.)

Empreguei também algumas estratégias que são consagradas (embora por vezes inadvertidamente) no gênero: apelo à autoridade em lugar da lógica; teorias especulativas que passam por ciência estabelecida; analogias forçadas e até absurdas; retórica que soa bem mas cujo sentido é ambíguo; e confusão entre o sentido técnico e o corriqueiro das palavras. (Mas todos os trabalhos mencionados em meu artigo são reais, e todas as citações são rigorosamente exatas; nenhuma foi inventada.)


Mas por que agi assim? Confesso que sou um antigo homem de esquerda, sem vergonha de sê-lo, que nunca entendeu verdadeiramente como se poderia supor que a desconstrução pudesse ajudar a classe operária. E sou um velho cientista chato que acredita, ingenuamente, que existe um mundo exterior, que existem verdades objetivas a respeito desse mundo, e que meu trabalho é descobrir algumas delas. (Se a ciência constituísse simplesmente uma negociação de convenções sociais sobre o que se convenciona chamar “verdadeiro”, por que haveria eu de me chatear dedicando boa parte de minha vida, de resto bastante curta, a ela? Não pretendo ser a Emily Post da teoria quântica de campos.)


Todavia, meu principal interesse não é defender a ciência das hordas bárbaras da crítica literária (nós iremos sobreviver muito bem, obrigado). Antes, meu interesse é explicitamente político: combater o discurso pós-modernista/pós-estruturalista/social-construtivista atualmente em moda – e mais genericamente a tendência para o subjetivismo –, que é, acredito, prejudicial para os valores e o futuro da esquerda.

[...]

Fonte: Sokal, A. & Bricmont, J. 1999. Imposturas intelectuais. RJ, Record.

En la mina El Tarancón

Popular asturiano

En la mina El Tarancón

se mataron onze obreros

Mira madre, como viengo


Se mataron cuatro picas

con sus hermosos rampleros

Mira madre, como viengo


Vengo bañao de sangre

De esos pobres compañeros

Mira madre, como viengo


Moreda y Caborana

De luto se vestio entero

Mira madre, como viengo


Mañana son los entierros

De esos pobres compañeros

Mira madre, como viengo

Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Gracias a la vida (1976), do grupo Tarancón. Segundo Jesús Gómez Gutiérrez, editor geral de La Insignia e a quem agradeço pela informação, trata-se de uma versão de “Santa Bárbara bendita”, hino dos mineiros das Astúrias, norte da Espanha.


27 novembro 2006

Uma medida do infinito

F. Ponce de León

No primeiro dia do ano

desce dos céus uma águia

que sobrevoa o Himalaia


Ela paira no ar e

a cem metros do cume

observa o alvo lá embaixo


Por volta do meio-dia

bate as asas com força

produzindo um único sopro de ar


O vento desce e afasta

átomos e moléculas
que dormiam
no telhado do mundo

Infinito
é o tempo
que a águia levaria

para assim desmontar toda a montanha

O patrão nosso de cada dia

João Ricardo

Eu quero o amor
da flor de cactus
ela não quis

Eu dei-lhe a flor
de minha vida
vivo agitado

Eu já não sei se sei
de tudo ou quase tudo
eu só sei de mim
de nós
de todo o mundo


Eu vivo preso

à sua senha

sou enganado


Eu solto o ar

no fim do dia

perdi a vida


Eu já não sei se sei

de nada ou quase nada

eu só sei de mim

só sei de mim

só sei de mim


O patrão nosso

de cada dia

dia após dia


Fonte: capa do álbum Secos & Molhados (1973), dos Secos & Molhados.


26 novembro 2006

Domingo


Edward Hopper (1882-1967). Sunday. 1926.


Fonte da foto: Mark Harden’s Artchive.

Guerras por água

Stuart Pimm

[...]
Veja o conflito na bacia do rio Jordão. Em 1990, o rei Hussein declarou que a água era a única questão que o levaria à guerra com Israel. A retórica é recíproca: o antigo ministro da agricultura de Israel, Ben-Meir, disse basicamente a mesma coisa. Não é difícil entender o porquê. Já com seus tamanhos populacionais atuais, Israel, Jordânia e Síria são importadores de cereais. Os três países têm um crescimento populacional explosivo. Israel está tentando abrigar um milhão de imigrantes vindos da antiga União Soviética. A população da Jordânia vai dobrar em 20 anos e a da Síria em 18.


Israel e a Jordânia têm quantidades semelhantes de terras cultivadas (cerca de 4.000 km2) e de população (cerca de 5,5 milhões de habitantes). Israel irriga 42 por cento de suas terras cultivadas, enquanto a Jordânia irriga, com metade do mesmo volume de água, apenas 16 por cento. As expectativas de um maior crescimento econômico da Jordânia teriam um grande impacto no uso da água, mesmo se a população não estivesse crescendo; o consumo de Israel já excede o seu suprimento de água doce renovável.


O sonho palestino de uma Cisjordânia independente já seria difícil o bastante se fosse apenas uma questão de terras, idioma e religião. Cerca de 25 a 40 por cento do abastecimento de água doce de Israel vem de um aqüífero localizado em subsolo da Cisjordânia – as terras ocupadas por Israel após a Guerra de 1967. Durante sua ocupação, Israel tem feito sérias restrições ao volume de água que os árabes da Cisjordânia podem bombear. Todavia, Israel tem sobrecarregado o aqüífero para uso próprio.


Israel também ocupa as Colinas de Golan, uma parte da Síria. O controle dessa área dá a Israel acesso às encostas que drenam água para o rio Yarmük. Esse é o último rio inalterado que deságua no mar da Galiléia, definindo a fronteira entre Síria e Jordânia. O mar da Galiléia é a principal fonte de águas superficiais de Israel e dele parte uma rede de canais e dutos, o aqueduto Kinneret-Negev, levando água para o sul. A Síria e a Jordânia têm planos de represar o Yarmük, em Maqarin. Israel já anunciou que destruirá o reservatório, caso seja construído, temendo que ele reduza o volume de água que Israel pode extrair do mar da Galiléia. O belicoso Comitê dos Moradores de Golan, armado com brochuras em inglês e endereço eletrônico, deixa clara sua posição em relação ao território ocupado: “Não há lugar para negociação territorial... Golan controla 30 por cento dos recursos hídricos de Israel”.


O uso de fertilizantes por Israel é sete vezes maior que o da Jordânia – outra estatística que a Jordânia gostaria de igualar. Todavia, há conseqüências: a água que volta para o rio Jordão depois de ser utilizada na agricultura de Israel já está extremamente poluída por fertilizantes. Há ainda a poluição industrial e urbana. E o bombeamento intensivo do aqüífero costeiro levou a um processo de salinização da água.


Esse é um problema isolado? De jeito nenhum! Sandra Postel, uma cientista do Projeto Global de Políticas Hídricas [Global Water Policy Project], em Massachusetts (EUA), discute essas e outras áreas de conflito em seu excelente e prazeroso livro Last oasis: facing water scarcity. “Índia e Bangladesh brigam pelo rio Ganges”, diz ela, “México e Estados Unidos pelo Colorado, República Tcheca e Hungria pelo Danúbio, Tailândia e Vietnã pelo Mekong”. Oito outros países poderiam controlar o fluxo do Nilo antes de sua entrada no Egito. Assim como o Egito, esses países têm um elevado crescimento populacional. Vários estão entre aqueles países que a FAO considerada como tendo uma “baixa segurança alimentar”. Nenhum deles é famoso por cooperar com os países vizinhos.

[...]

Fonte: Pimm, S. 2005. Terras da Terra. Londrina. Editora Planta.


Peace train

Cat Stevens (Yusuf Islam)

Now I’ve been happy lately, thinking about the good things to come

And I believe it could be, something good has begun


Oh I’ve been smiling lately, dreaming about the world as one

And I believe it could be, some day it’s going to come


Cause out on the edge of darkness, there rides a peace train

Oh peace train take this country, come take me home again


Now I’ve been smiling lately, thinking...


Oh peace train sounding louder

Glide on the peace train oh ah ee ah oh ah

Come on now peace train

Yes, peace train holy roller


Everyone jump upon the peace train oh ah ee ah oh ah

Come on now peace train


Get your bags together, go bring your good friends too

Cause it’s getting nearer, it soon will be with you


Now come and join the living, it’s not so far from you

And it’s getting nearer, soon it will all be true


Oh...

... peace train


Now I’ve been crying lately, thinking about the world as it is

Why must we go on hating, why can’t we live in bliss


Cause out on the edge of darkness, there rides a peace train

Oh peace train take this country, come take me home again


Oh...

... peace train


Yes peace train holy roller

Everyone jump on the peace train oh ah ee ah oh ah


Come on, come on, come on

Yes come on peace train


Yes it’s the peace train oh ah ee ah oh ah

Come on now peace train

Oh peace train


Fonte: álbum Teaser and the Firecat (1971), de Cat Stevens.


25 novembro 2006

Maçãs e laranjas


Paul Cézanne (1839-1906). Pommes et oranges. 1899.

Fonte da foto: Mark Harden’s Artchive
.

Lamento do oficial por seu cavalo morto

Cecília Meireles

Nós merecemos a morte,
porque somos humanos
e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pelo nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.

Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,
os cálculos do gesto,
embora sabendo que somos irmãos.
Temos até os átomos por cúmplices, e que pecados
de ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!
Que delírio sem Deus, nossa imaginação!

E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha, que, enganada,
recebes. Não te queixas. Não pensas. Não sabes. Indigno,
ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.

Animal encantado – melhor que nós todos! – que tinhas tu com este mundo dos homens?
Aprendias a vida, plácida e pura, e entrelaçada
em carne e sonho, que os teus olhos decifravam...
Rei das planícies verdes, com rios trêmulos de relinchos...
Como vieste morrer por um que mata seus irmãos!

Fonte: Meireles, C. 1993. Poesia completa: volume único. RJ, Nova Aguilar. Poema originalmente publicado em 1945.


24 novembro 2006

Os animais pensam e sentem como nós?

Jeffrey M. Masson & Susan McCarthy

5.
Nas Montanhas Rochosas [EUA], a bióloga Marcy Cottrell Houle estava observando o ninho dos falcões peregrinos Arthur e Jenny, enquanto os pais estavam ambos ocupados em alimentar os cinco filhotes. Um dia, pela manhã, apenas o falcão macho visitou o ninho. Jenny não aparecia de forma nenhuma e o comportamento de Arthur mudou consideravelmente. Quando chegava com comida, ele esperava no ninho, às vezes, por até uma hora antes de voar de novo e voltar a caçar, coisa que ele nunca tinha feito anteriormente. Várias vezes ele chamava pela companheira e ficava esperando pela resposta, ou olhava no ninho emitindo um piado de dúvida. Houle se esforçou para não interpretar aquele comportamento como expectativa e desapontamento. Jenny não apareceu no dia seguinte nem no próximo. Mais tarde, no terceiro dia, empoleirado no ninho, Arthur produziu um som não-familiar, “uma espécie de grito de lamento de animal ferido, o grito de uma criatura em sofrimento”. Houle, chocada, escreveu: “A tristeza do clamor era inequívoca; após tê-lo escutado, eu nunca duvidaria de que um animal pudesse sofrer emoções que nós, seres humanos, achamos que pertencem apenas à nossa espécie”.

Depois do grito, Arthur se sentou sem se mover na pedra e não se mexeu por um dia inteiro. No quinto dia após o desaparecimento de Jenny, Arthur entrou em um frenesi de caçada, trazendo comida para os filhotes, da aurora até o pôr-do-sol, sem pausa para descansar. Antes do desapareceimento de Jenny, seus esforços eram menos desesperados; Houle nota que ela nunca viu de novo um falcão trabalhar tão incessantemente. Quando os biólogos subiram ao ninho, uma semana depois do desaparecimento de Jenny, viram que três dos filhotes tinham morrido de fome, mas dois tinham sobrevivido e estavam prosperando com os cuidados do pai. Mais tarde, Houle descobriu que Jenny provavelmente tinha sido morta por um tiro. Os dois filhotes sobreviventes se emplumaram com sucesso.
[...]

Fonte: Masson, J. M. & McCarthy, S. 1997. Quando os elefantes choram: a vida emocional dos animais. SP, Geração Editorial.

Xadrez

Jorge Luís Borges

1.
No seu recanto grave, os jogadores

dirigem as lentas peças. O tabuleiro

os demora até a aurora. No seu severo

âmbito, em que se odeiam duas cores.


Dentro irradiam mágicos rigores

as formas: torre homérica, ligeiro

cavalo, armada rainha, rei postreiro,

oblíquo bispo e peões agressores.


Quando os jogadores se tiverem ido,

quando o tempo os tiver consumido,

certamente não terá cessado o rito.


No Oriente se acendeu esta guerra,

cujo anfiteatro é hoje toda a terra.

Como o outro, este jogo é infinito.


2.
Tênue rei, oblíquo bispo, encarniçada

rainha, torre direta e peão ladino

sobre o negro e branco do caminho

buscam e livram sua batalha armada.


Não sabem que a mão assinalada

do jogador governa seu destino,

não sabem que um rigor adamantino

sujeita seu alvédrio e sua jornada.


Também o jogador é prisioneiro

(a sentença é de Omar) de outro tabuleiro

de negras noites e de brancos dias.


Deus move o jogador, e este, a peça.

Que Deus atrás de Deus começa a trama

de pó e tempo e sonho e agonias?


Fonte: Buzzi, A. R. 1978. Introdução ao pensar. Petrópolis, Vozes.


23 novembro 2006

A volta ao mundo em 80 dias

Júlio Verne

1.
Em 1872, a casa número sete de Saville Row, Burlington Gardens – casa onde Sheridan morreu em 1814 –, era habitada por Phileas Fogg, esquire, membro dos mais singulares e dignos de reparo do Reform Club de Londres, apesar de sistematicamente, segundo parecia, evitar nos seus atos tudo o que pudesse de algum modo despertar a atenção dos seus compatriotas.

Este Phileas Fogg, personagem enigmática, a respeito da qual nada se sabia, senão que era pessoa muito de bem e um dos mais perfeitos gentlemen da boa sociedade inglesa, sucedia, pois, a um dos maiores oradores de que a Inglaterra se honra e ufana.

Dizia-se que tinha grandes parecenças com Byron – na cabeça, pois, quanto aos pés, era Phileas Fogg irrepreensível –, mas um Byron de bigode e suíças, um Byron impassível, capaz de viver mil anos sem apresentar sintomas de velhice.
[...]

3.
Phileas Fogg saíra da casa de Saville Row às onze e meia e, depois de ter posto quinhentas e setenta e cinco vezes o pé direito diante do pé esquerdo e quinhentas e setenta e seis vezes o pé esquerdo diante do pé direito, chegou ao Reform Club, vasto edifício, construído em Pall Mall, que não custou menos de três milhões.
[...]

4.
Às sete horas e vinte e cinco minutos, Phileas Fogg, depois de ter ganho uns vinte guinéus ao whist, despediu-se dos seus respeitáveis colegas e saiu do Reform Club.

Às sete horas e cinquenta abria a porta da casa onde morava e entrava.
[...]

5.
Ao sair de Londres, Phileas Fogg estava decerto longe de imaginar o grande ruído que a sua partida ia produzir. A notícia da aposta espalhou-se a princípio no Reform Club, causando verdadeira comoção naquele respeitável círculo, mas em seguida propagou-se até aos jornais, por intermédio dos fornecedores de notícias, e daí ao público de Londres e de todo o Reino Unido.
[...]


Fonte: Verne, J. 1989. A volta ao mundo em 80 dias. Lisboa, Publicações Dom Quixote.

Casinha de palha

Godofredo Guedes

Eu moro numa casinha de palha

que fica detrás da muralha

daquela serra acolá

De longe ela nos parece arruinada

mas de perto ela é juncada

de baunilha e manacá


Fonte: capa do álbum Sol de primavera (1979), de Beto Guedes.


22 novembro 2006

A permanência do mundo e a obra de arte

Hannah Arendt

Entre as coisas que emprestam ao artifício humano a estabilidade sem a qual ele jamais poderia ser um lugar seguro para os homens, há uma quantidade de objetos estritamente sem utilidade e que, ademais, por serem únicos, não são intercambiáveis, e portanto não são passíveis de igualação através de um denominador comum como o dinheiro; se expostos no mercado de trocas, só podem ser apreçados arbitrariamente. Além disso, o devido relacionamento do homem com uma obra de arte não é “usá-la”; pelo contrário, ela deve ser cuidadosamente isolada de todo o contexto dos objetos de uso comum para que possa galgar o seu lugar devido no mundo. Da mesma forma, deve ser isolada das exigências e necessidades da vida diária, com as quais tem menos contato que qualquer outra coisa. Ao argumento, não interessa se esta inutilidade dos objetos de arte sempre existiu ou se, antigamente, a arte servia às chamadas necessidades religiosas do homem, tal como os objetos de uso comum servem a necessidades mais comuns. [...]


Dada a sua suma permanência, as obras de arte são as mais intensamente mundanas de todas as coisas tangíveis; sua durabilidade permanece quase isenta ao efeito corrosivo dos processos naturais, uma vez que não estão sujeitas ao uso por criaturas vivas – uso que, na verdade, longe de materializar sua finalidade inerente (como a finalidade de uma cadeira é realizada quando alguém se senta nela), só pode destruí-la. Assim, a durabilidade das obras de arte é superior àquela de que todas as coisas precisam para existir; e, através do tempo, pode atingir a permanência. Nesta permanência, a estabilidade do artifício humano, que jamais pode ser absoluto por ser o mundo habitado e usado por mortais, adquire representação própria. Nada como a obra de arte demonstra com tamanha clareza e pureza a simples durabilidade deste mundo de coisas; nada revela de forma tão espetacular que este mundo feito de coisas é o lar não-mortal de seres mortais. É como se a estabilidade humana transparecesse na permanência da arte, de sorte que certo pressentimento de imortalidade – não a imortalidade da alma ou da vida, mas de algo imortal feito por mãos mortais – adquire presença tangível para fulgurar e ser visto, soar e ser escutado, escrever e ser lido.
[...]

Fonte: Arendt, H. 1983. A condição humana. RJ, Forense-Universitária.


21 novembro 2006

O beijo


Gustav Klimt (1862-1918). The kiss. 1907-8.

Fonte da foto: Malek's Home Page.

Quem é índio?

Adélia E. Oliveira

Quando se iniciaram as primeiras relações entre os que já habitavam na América e os europeus que aqui chegaram, era fácil distinguir um índio de um não-índio com bases em diferenças étnicas, culturais e lingüísticas. Todavia, à medida que se foi acentuando o processo de miscigenação e de aculturação, tornou-se em muitos casos difícil distinguir um do outro. Na atualidade, o critério utilizado para definir um índio é o de auto-identificação étnica, ou seja: índios são aqueles que se identificam como tal. (...) Somente a auto-identificação e o reconhecimento, por uma determinada comunidade de origem pré-colombiana, de que tal indivíduo lhe pertence são significativos para a classificação de um índio.

(...)


A palavra índio foi criada pelo colonizador europeu, que ao chegar ao Novo Mundo em 1492 pensou estar chegando às Índias. Está sobrecarregada de estereótipos, significando, para muitas pessoas, um ser inferior, exótico, que gosta de roubar, andar sujo, não trabalhar e beber cachaça, carecendo de ser cristianizado ou “civilizado”. Com base em tais preconceitos, muitas ordens religiosas, muitos grupos econômicos e muitos particulares justificam suas ações deculturativas e dizimadoras desde os tempos coloniais.
(...)

Fonte: Oliveira, A. E. 1984. “Co yvy ogüerecó ijará”. Ciência Hoje 10: 58-65.


Saga da Amazônia

Vital Farias

Era uma vez na Amazônia, a mais bonita floresta
mata verde, céu azul, a mais imensa floresta
no fundo d’água as Iaras, caboclos, lendas e mágoas
e os rios puxando as águas

Papagaios, periquitos, cuidavam de suas cores
os peixes singrando os rios, curumins cheios de amores
sorria o jurupari, uirapuru, seu porvir
era: fauna, flora, frutos e flores

Toda mata tem caipora para a mata vigiar
veio caipora de fora para a mata definhar
e trouxe dragão-de-ferro, pra comer muita madeira
e trouxe em estilo gigante, pra acabar com a capoeira

Fizeram logo o projeto sem ninguém testemunhar
pra o dragão cortar madeira e toda mata derrubar:
se a floresta, meu amigo, tivesse pé pra andar
eu garanto, meu amigo, com o perigo não tinha ficado lá

O que se corta em segundos leva tempo pra vingar
e o fruto que dá no cacho pra gente se alimentar?
Depois tem o passarinho, tem o ninho, tem o ar
igarapé, rio abaixo, tem riacho e esse rio que é um mar

Mas o dragão continua a floresta devorar
e quem habita essa mata, pra onde vai se mudar?
Corre índio, seringueiro, preguiça, tamanduá,
tartaruga; pé-ligeiro, corre-corre tribo dos Kamaiurá

No lugar que havia mata, hoje há perseguição
grileiro mata posseiro só pra lhe roubar seu chão
castanheiro, seringueiro já viraram até peão
afora os que já morreram como ave-de-arribação
Zé de Nana tá de prova, naquele lugar tem cova
gente enterrada no chão

Pois mataram índio que matou grileiro que matou posseiro
disse um castanheiro para um seringueiro que um estrangeiro
roubou seu lugar

Foi então que um violeiro chegando na região
ficou tão penalizado e escreveu essa canção
e talvez, desesperado com tanta devastação
pegou a primeira estrada sem rumo, sem direção
com os olhos cheios d’água, sumiu levando essa mágoa
dentro do seu coração

Aqui termino essa história para gente de valor
pra gente que tem memória, muita crença muito amor
pra defender o que ainda resta, sem rodeio, sem aresta
era uma vez uma floresta na linha do Equador

Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Cantoria (1984), de Elomar, Geraldo Azevedo, Vital Farias e Xangai.

20 novembro 2006

Banquete

Roseana Murray

Na minha casa de vento
tem chá de chuva,
bolo de neblina,
empadão de pensamento

Na minha casa encantada
tem macarronada de nuvem
e pastel de trovoada

A sobremesa é transparente
na minha casa de vento:
sorvete de orvalho,
pavê de faz-de-conta
e torta de tempo
(ruim ou bom, não importa)

Você quer jantar comigo?

Fonte: edição No. 164 (dezembro de 2005) da revista Ciência Hoje das Crianças.

I don’t wanna be a soldier mama, I don’t wanna die

John Lennon

Well, I don’t wanna be a soldier mama, I don’t wanna die

Well, I don’t wanna be a sailor mama, I don’t wanna fly

Well, I don’t wanna be a failure mama, I don’t wanna cry

Well, I don’t wanna be a soldier mama, I don’t wanna die

Oh no, oh no, oh no, oh no


Well, I don’t wanna be a rich man mama, I don’t wanna cry

Well, I don’t wanna be a poor man mama, I don’t wanna fly

Well, I don’t wanna be a lawyer mama, I don’t wanna lie

Well, I don’t wanna be a soldier mama, I don’t wanna die

Oh no, oh no, oh no, oh no


Well, I don’t wanna be a beggar mama, I don’t wanna die

Well, I don’t wanna be a thief now mama, I don’t wanna fly

Well, I don’t wanna be a churchman mama, I don’t wanna cry

Well, I don’t wanna be a soldier mama, I don’t wanna die

Oh no, oh no, oh no, oh no

Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Imagine (1971), de John Lennon.

Parabién a la paloma

Rolando Alarcón

La paloma se murió

y el palomo no sabía

Levántate, palomita,

– le decía, le decía –,

nos iremos a casar

apenas se aclare el día

Que parabienes tristes

tengo que cantar yo


La paloma se murió

y el palomo está llorando

Pobre este palomito

¿dónde se irá volando?

No habrá luces en la iglesia,

no habrá alegrías ni cantos

Que parabienes tristes

tengo que cantar yo

La paloma se murió,
se murió con un disparo

Un hombre estaba mirando

con un fusil en la mano

Se quedaron esperando

en la iglesia, sus hermanos

Que parabienes tristes

tengo que cantar yo


La paloma se murió,

llorando se queda un niño

El hombre del fusil

no sabe lo que es cariño

Nunca adentró en un templo,

nunca ha encendido un cirio

Que parabienes tristes

tengo que cantar yo


La paloma se murió,

la mató un hombre cobarde

sabiendo que era inocente;

castiguemos al culpable

No lo perdona el palomo,

no lo perdona su madre

Que parabienes tristes

tengo que cantar yo


La paloma se murió,

señores aquí presentes

El hombre vendió el fusil;

siguió causando la muerte

disparando sobre hermanos,

destruyendo continentes

Que parabienes tristes
tengo que cantar yo

Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Gracias a la vida (1976), do grupo Tarancón.

19 novembro 2006

Tudo que é sólido desmancha no ar

Marshall Berman

[Prefácio]
Durante a maior parte da minha vida, desde que me ensinaram que eu vivia num “edifício moderno” e crescia no seio de uma “família moderna”, no Bronx de trinta anos atrás, tenho sido fascinado pelos sentidos possíveis da modernidade. Neste livro, tentei descortinar algumas das dimensões de sentido, tentei explorar e mapear as aventuras e horrores, as ambigüidades e ironias da vida moderna. (...) Tentei mostrar como essas pessoas partilham e como esses livros e ambientes expressam algumas preocupações especificamente modernas. São todos movidos, ao mesmo tempo, pelo desejo de mudança – de autotransformação e de transformação do mundo em redor – e pelo terror da desorientação e da desintegração, o terror da vida que se desfaz em pedaços. Todos conhecem a vertigem e o terror de um mundo no qual “tudo que é sólido desmancha no ar”.


Ser moderno é viver uma vida de paradoxos e contradições. É sentir-se fortalecido pelas imensas organizações burocráticas que detêm o poder de controlar e freqüentemente destruir comunidades, valores, vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas forças, a lutar para mudar o seu mundo transformando-o em nosso mundo. É ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador: aberto a novas possibilidades de experiência e aventura, aterrorizado pelo abismo niilista ao qual tantas das aventuras modernas conduzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda quando tudo em volta se desfaz. Dir-se-ia que para ser inteiramente moderno é preciso ser antimoderno: desde os tempos de Marx e Dostoievski até o nosso próprio tempo, tem sido impossível agarrar e envolver as potencialidades do mundo moderno sem abominação e luta contra algumas das suas realidades mais palpáveis. (...)


Logo depois de terminado este livro, meu filho bem-amado, Marc, de cinco anos, foi tirado de mim. A ele eu dedico Tudo que é sólido desmancha no ar. Sua vida e sua morte trazem muitas das idéias e temas do livro para bem perto: no mundo moderno, aqueles que são mais felizes na tranqüilidade doméstica, como ele era, talvez sejam os mais vulneráveis aos demônios que assediam esse mundo; a rotina diária dos parques e bicicletas, das compras, de comer e limpar-se, dos abraços e beijos costumeiros, talvez não seja apenas infinitamente bela e festiva, mas talvez infinitamente frágil e precária; manter essa vida exige talvez esforços desesperados e heróicos, e às vezes perdemos. Ivan Karamazov diz que, acima de tudo o mais, a morte de uma criança lhe dá ganas de devolver ao universo o seu bilhete de entrada. Mas ele não o faz. Ele continua a lutar e a amar; ele continua a continuar.


Fonte: Berman, M. 1986. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. SP, Companhia das Letras.

18 novembro 2006

Retrato de Jeanne


Amedeo Modigliani (1884-1920).
Portrait of Jeanne Hébuterne (sitting). 1918.

Fonte da foto: My Studios.


Barcarola do São Francisco

Carlos Fernando

É a luz do sol que encandeia

sereia de além-mar

clara como o clarão do dia

marejou meu olhar

olho d’água, beira de rio

vento, vela a bailar

barcarola do São Francisco

me leve para amar


Era um domingo de lua

quando deixei Jatobá

era quem sabe esperança

indo a outro lugar

barcarola do São Francisco

veleja agora no mar

sem leme, mapa ou tesouro

de prata ou luar


Eu, em sonho um beija-flor

rasgando tardes vou buscar,

em outro céu

noite longe que ficou em mim

noite longe que ficou em mim

quero lembrar


Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Boca Livre (1979), do grupo Boca Livre.

16 novembro 2006

Clareana

Joyce

Um coração

de mel, de melão

de sim e de não

é feito um bichinho

no sol de manhã

novelo de lã

no ventre da mãe

bate um coração

de Clara, Ana
e quem mais chegar
água, terra, fogo e ar


Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Joyce ao vivo (1989), de Joyce.

Morro velho

Milton Nascimento

No sertão da minha terra,

fazenda é o camarada que ao chão se deu

Fez a obrigação com força,

parece até que tudo aquilo ali é seu

Só poder sentar no morro

e ver tudo verdinho, lindo a crescer

Orgulhoso camarada, de viola em vez de enxada


Filho do branco e do preto,

correndo pela estrada atrás de passarinho

Pela plantação adentro,

crescendo os dois meninos, sempre pequeninos

Peixe bom dá no riacho

de água tão limpinha, dá pro fundo ver

Orgulhoso camarada, contra histórias pra moçada


Filho do Sinhô vai embora,

tempo de estudos na cidade grande

Parte, tem os olhos tristes,

deixando o companheiro na estação distante

“Não esqueça, amigo, eu vou voltar”

Some longe o trenzinho ao deus-dará


Quando volta já é outro,

trouxe até Sinhá Mocinha pra apresentar

Linda como a luz da lua

que em lugar nenhum rebrilha como lá

Já tem nome de doutor,

e agora na fazenda é quem vai mandar

E seu velho camarada já não brinca, mas trabalha


Fonte: álbum Milton Nascimento (1967), de Milton Nascimento.


15 novembro 2006

Pastoral

Stefan Kunze

As representações musicais da natureza (sobretudo das cenas de tempestade) gozavam de amplo favor no século 18. Uma tradição que remonta à mais alta antiguidade, vê nas cenas pastorais e bucólicas a imagem da felicidade terrestre, da fusão do homem com a natureza, e da Arcádia ideal. A Sexta Sinfonia de Beethoven inscreve-se nessa tradição. A tonalidade de fá maior sempre foi a do pastoral e do arcádico. É certo que Beethoven não ilustra fenômenos naturais reais. A natureza aparece como que banhado-se na sensibilidade do sujeito contemplativo (inteligível). A fim de evitar que a “Pastoral” fosse interpretada como uma pintura musical ou mesmo música programática, como já era chamada à época, Beethoven acrescentou um esclarecimento ao título principal: “Sinfonia Pastoral ou Recordações da vida no campo (Mais expressão de sentimentos do que uma pintura)”. Com efeito, já existiam no tempo de Beethoven composições que pretendiam ser nada mais que descrições musicais de fenômenos naturais ou de acontecimentos reais. E Beethoven preocupava-se sobremaneira em distanciar-se da pintura musical pura e simples, já que esse tipo de música não desfrutava da alta consideração. Goethe, por exemplo, comentava (em uma carta a Zelter, datada de 1820), que “descrever sons com outros sons – trovoadas, estrondos, estalos e baques – é uma coisa detestável”.


Os contemporâneos de Beethoven já haviam intuído ou compreendido que a “Pastoral” na realidade não imitava uma natureza de existência concreta, mas que recriava na linguagem musical, de modo exemplar e ideal, um mundo da natureza, exprimindo ao mesmo tempo sua relação com o homem. O pano de fundo da obra é, indubitavelmente, a relação íntima de Beethoven com a natureza, de que conhecemos múltiplos testemunhos, e não uma exaltação romântica da natureza. Uma anotação que Beethoven extraiu em 1816 da História geral da natureza e teoria do céu, de Kant, denuncia claramente suas mais profundas intenções: “... Se na constituição do mundo manifestam-se a ordem e a beleza, então existe um Deus”. Seria a “Pastoral” uma teodicéia? Não vamos tão longe. Mas não há qualquer dúvida de que Beethoven produziu uma evocação sonora da idéia de que existe uma harmonia objetivamente possível, e categoricamente postulada, entre a condição humana e a natureza. A evocação da natureza aparece somente nos segundo e quarto movimentos. O primeiro, por outro lado, não é uma imagem da natureza, mas a musicalização desse sentimento de alegria que desperta a esperança de uma bela existência bucólica. Se a obra, em seu conjunto, não passa de uma “recordação”, de uma imagem “preservada”, o primeiro movimento marca o advento de um espaço imaginário atravessado pela natureza. Na Cena à beira de um regato, o centro da sinfonia, imerso em uma dimensão atemporal, existe apenas sob a forma de seu reflexo na sensibilidade humana. O terceiro movimento em forma de scherzo é, de uma certa maneira, o outro pólo de uma natureza mergulhada em si mesma, animada de paz e de harmonia, já que nos traz o homem esquecendo-se de suas preocupações na dança. Aqui o homem faz sua primeira aparição em cena. Mas ele também está prestes a experimentar uma natureza de forças plenamente desencadeadas: a dança é interrompida por uma tempestade inesperada – o homem toma consciência de sua vulnerabilidade. Na estrutura sinfônica global, o quarto movimento é na realidade um corpo estranho, a representação de forças elementares da natureza, destrutivas, fora do controle da emoção humana. E não é por acaso que este é o único movimento em que o procedimento descritivo, estritamente falando, tem seu lugar. É somente no último movimento que Beethoven representa a relação entre o homem e a natureza. Que essa relação esteja ligada precisamente a uma experiência do risco dos limites, sua representação é de uma profundidade quase abissal. O canto de agradecimento entoado após a salvação da catástrofe é um grandioso esboço da reconciliação e da felicidade. Esta sumária apresentação da obra explica porque Beethoven reuniu os três últimos movimentos, que estão intimamente ligados e condicionados um ao outro.

Na Quarta Sinfonia, o ser humano recria o mundo com uma inaudita e heróica energia e se revela na sua fantasia suprema. O encontro do sujeito com o Outro, que culmina no conceito de natureza, esse encontro habitado por uma imaginação contemplativa e ao mesmo tempo ativa, é o tema grandioso da Sinfonia “Pastoral”.


Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Ludwig van Beethoven: Sinfonia No 6 em fá maior, Opus 68, “Pastoral” (1984), com a Orquestra Filarmônica de Berlim, sob regência de Herbert von Karajan.

14 novembro 2006

Gracias a la vida

Violeta Parra

Gracias a la vida que me ha dado tanto:

me dio dos luceros que cuando los abro

perfecto distingo lo negro del blanco

y en alto cielo su fondo estrellado

y en las multitudes el hombre que yo amo


Gracias a la vida que me ha dado tanto:

me ha dado el oído que en todo su ancho

grava noche y dia grillos y canarios,

martillos, turbinas, ladridos, chubascos

y la voz tan tierna de mi bien amado


Gracias a la vida que me ha dado tanto:

me ha dado el sonido y el abecedario,

con él las palabras que pienso y declaro:

madre, amigo, hermano y luz alumbrando,

la ruta del alma del que estoy amando


Gracias a la vida que me ha dado tanto:

me ha dado la marcha de mis piés cansados,

con ellos anduve ciudades y charcos,

playas y desiertos, montañas y llanos

y en la casa tuya, tu calle y tu patio


Gracias a la vida que me ha dado tanto:

me dio el corazón que agita su marco,

cuando miro el fruto del cerebro humano,

cuando miro el bueno tan lejos del malo,

cuando miro el fondo de tus ojos claros


Gracias a la vida que me ha dado tanto:

me ha dado la risa y me ha dado el llanto,

asi yo distingo dicha de quebranto,

los dos materiales que forman mi canto

y el canto de ustedes que es el mismo canto

y el canto de todos que es mi propio canto


Gracias a la vida que me ha dado tanto


Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Gracias a la vida (1976), do grupo Tarancón. A canção foi gravada pela primeira vez em 1966.

13 novembro 2006

Um mês depois

F. Ponce de León

Este blogue foi ao ar pela primeira vez em 12/10, uma quinta-feira. Já lá se vai, portanto, um mês. Passou depressa. Tão depressa que eu até agora não havia comentado nada sobre as idéias em torno dessa iniciativa. Aproveito para esclarecer aqui algumas coisas sobre o Poesia contra a guerra.


O nome é ao mesmo tempo uma alusão e uma homenagem ao movimento Poets against the war. Desde o início, porém, o objetivo era não apenas reunir poemas contra a guerra, mas sim todo e qualquer material literário (“poesia”) que pudesse ser erguido ou evocado contra a estupidez, a feiúra e a insanidade das guerras – características que parecem acompanhar a história de nossa espécie desde o passado mais remoto. Nesse sentido, caberia aqui um pedido de desculpas a todos aqueles visitantes que vêm até aqui atrás apenas de “poemas sobre guerra”, “poemas de guerra” ou assemelhados.


Minha idéia inicial era publicar exclusivamente obras ou trechos de obras (artigos, letras de músicas, poemas etc.) a cuja versão impressa eu tivesse antes tido acesso direto. Esse critério restritivo não deixa de ser um modo de estimular a divulgação de livros, revistas e discos que ainda estão disponíveis no mercado – podendo assim, entre outras coisas, despertar o interesse por um material até então pouco ou nada conhecido, principalmente entre os jovens visitantes. Seria também o meu jeito de demonstrar respeito por obras ou trechos de obras cuja publicação neste blogue não foi previamente solicitada a seus respectivos autores.


Nessas primeiras cinco semanas, consegui manter um ritmo diário de atualização, com exceção apenas daquelas datas nas quais estive longe do computador (em razão de alguma viagem, por exemplo). O português tem sido até aqui o idioma predominante, embora obras ou trechos de obras em castelhano, inglês e francês já tenham também sido publicadas. Todo o material publicado continua disponível para consulta, podendo ser acessado através dos elos para os arquivos que estão estampados na primeira página, na coluna à esquerda.


Eis aqui uma relação dos autores que já apareceram no blogue (em ordem alfabética): Adélia Prado, Aldir Blanc, Allan Bloom,
Antoine de Saint-Exupéry, Ascânio Lopes, Bono, Carlos Drummond de Andrade, Carmen L. Oliveira, Chico Buarque, Dorival Caymmi, Elizabeth Bishop, Elomar, Ernest Mandel, Fernando Brant, Ferreira Gullar, Heinz Dieterich, Ian Anderson, J. D. Salinger, Jared Diamond, John Horgan, John Tyler Bonner, Luiz Ruffato, Manuel Bandeira, Márcio Borges, Miguel Hernández, Murilo Antunes, Noam Chomsky, Paulo César Pinheiro, Peter Gabriel, Roger Waters, Ronaldo Bastos, Teresa Parodi, Thiago de Mello, Victor Jara, Vinicius de Moraes, Vitor Ramil e Walter Freitas.


Além do autor destas mal-traçadas e de Andrew Wyeth, autor do quadro aí de baixo, com o qual aliás pretendo inaugurar um novo hábito neste blogue...

12 novembro 2006

O mundo de Christina


Andrew Wyeth (1917-). Christina's World. 1948.

Fonte da foto: John Singer Sargent Virtual Gallery.

A Guerra do Golfo: lição para o Terceiro Mundo

Noam Chomsky & Heinz Dieterich

[...]
HD [Dieterich] – Qual será a nova ordem que os Estados Unidos estabelecerão no Oriente Médio?

NC [Chomsky] – Bem, isso a gente pode ler no Wall Street Journal, que é onde as coisas são ditas com bastante clareza. Anteontem (26 de fevereiro [de 1991]), um dos príncipes da Arábia Saudita comprou 10% das ações do City Corp., um dos bancos norte-americanos que se encontra, como os demais, em sérios problemas econômicos. Ontem, o principal artigo da primeira página relata como as companhias norte-americanas e britânicas “invadem” a Arábia Saudita, empenhando-se em conseguir os contratos para a reconstruir. Aqueles que serviram aos interesses da elite kuwaiti, ou seja, Estados Unidos e Grã-Bretanha, obterão todos os contratos.


Para começar, o mínimo que eles esperam são contratos no valor de bilhões de dólares. Lá a gente encontra todas as multinacionais: Ford, General Motors, Chrysler, Bechtel, Aramco, as grandes empresas de construção, etc. Esperam pela grande bonança e tratam de escapar da recessão nos Estados Unidos mediante uma grande “injeção” de capital dos produtores de petróleo do Golfo Pérsico. Esta é a fonte de capital no mundo de que eles podem se valer.


Os britânicos, porém, estão muito irritados. Como sempre, os norte-americanos lhes aplicam duros golpes. Os britânicos nunca entenderam isso. Sempre pensam que são sócios (partners), mas os Estados Unidos os tratam simplesmente como capatazes. E agora estão aborrecidos porque os norte-americanos ficaram com todos os contratos. Os britânicos dizem: estivemos com vocês nos momentos mais difíceis, como nos explicam que todos os contratos fiquem em suas mãos? E a resposta é: vejam, este é um assunto para pesos pesados. Ponham-se no seu lugar. A França e outros países também estão cuidando de participar da mamata. Os países que não seguiram a linha dos Estados Unidos não terão benefícios.


No que diz respeito à nova ordem: a nova ordem é a velha ordem. Os Estados Unidos, ladeados por uma espécie de cachorrinho doméstico britânico, controlam os produtores de petróleo e obtêm os lucros deles. Governam por trás de uma fachada árabe, como dizia Lorde Curzon, onde as elites kuwaitis e sauditas vivem muito bem, investindo seu capital nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, enquanto o resto do mundo deve baixar a cabeça. Os Estados Unidos sabem muito bem que todo o mundo islâmico, assim como praticamente todos os povos do Terceiro Mundo, estão resolutamente contra. Mas esses povos não têm o menor peso. Os Estados Unidos não pretendem sequer tratá-los de uma forma política. Procurarão destruí-los pela força. Isso funcionou na América Central e eles sabem que funcionará no Oriente Médio, na África, etc. Simplesmente serão violentamente massacrados, controlados por meio de ditaduras, enquanto nós negociamos com os donos do dinheiro.
[...]

Fonte: Chomsky, N. & Dieterich, H. 1998. Um olhar sobre a América Latina. RJ, Oficina do Autor.

11 novembro 2006

O mar

Dorival Caymmi

O mar
quando quebra na praia
é bonito, é bonito

O mar...

Pescador quando sai

nunca sabe se volta,

nem sabe se fica


Quanta gente perdeu

seus maridos, seus filhos

nas ondas do mar


O mar

quando quebra na praia

é bonito, é bonito


Pedro vivia da pesca

saía no barco seis horas da tarde

só vinha na hora

do sol raiá


Todos gostavam de Pedro

e mais do que todos

Rosinha de Chica

a mais bonitinha

e mais bem-feitinha

de todas mocinha

lá do arraiá


Pedro saiu no seu barco

seis horas da tarde

passou toda a noite

não veio na hora

do sol raiá


Deram com o corpo de Pedro

jogado na praia

roído de peixe

sem barco, sem nada

num canto bem longe

lá do arraiá


Pobre Rosinha de Chica

que era bonita

agora parece

que endoideceu

vive na beira da praia

olhando pras ondas

andando, rondando

dizendo baixinho

morreu, morreu

morreu, oh...


O mar

quando quebra na praia

É bonito, é bonito...


Fontes: encarte que acompanha o LP do álbum Caymmi’s grandes amigos (1985), de Nana, Dori e Danilo Caymmi e artigo “Escrita sobre o mar”, de Antônio Risério & Tuzé de Abreu. Canção gravada pela primeira vez em 1938.

10 novembro 2006

A rosa de Hiroshima

Vinicius de Moraes

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada

Fonte: álbum Secos & Molhados (1973), dos Secos & Molhados. Poema publicado em livro em 1954.

Caça à raposa

Aldir Blanc

O olhar dos cães, a mão nas rédeas

e o verde da floresta

Dentes brancos, cães

a trompa ao longe, o riso

os cães, a mão na testa:

o olhar procura, antecipa

a dor no coração vermelho

Senhoritas, seus anéis, corcéis

e a dor no coração vermelho

O rebenque estala, um leque aponta: foi por lá!...


Um olhar de cão, as mãos são pernas

e o verde da floresta

– Oh, manhã entre manhãs! –

A trompa em cima, os cães

nenhuma fresta

O olhar se fecha, uma lembrança

afaga o coração vermelho:

uma cabeleira sobre o feno

afoga o coração vermelho

Montarias freiam, dentes brancos: terminou...


Línguas rubras dos amantes

Sonhos sempre incandescentes

Recomeçam desde instantes

que os julgamos mais ausentes


Ah, recomeçar, recomeçar

como canções e epidemias

Ah, recomeçar como as colheitas

como a lua e a covardia

Ah, recomeçar como a paixão e o fogo


Fonte: álbum Elis (1974), de Elis Regina


09 novembro 2006

O velho Francisco

Chico Buarque

Já gozei de boa vida

Tinha até meu bangalô

Cobertor, comida

Roupa lavada

Vida veio e me levou


Fui eu mesmo alforriado

Pela mão do Imperador

Tive terra, arado

Cavalo e brida

Vida veio e me levou


Hoje é dia de visita

Vem aí meu grande amor

Ela vem toda de brinco

Vem todo domingo

Tem cheiro de flor


Quem me vê, vê nem bagaço

Do que viu quem me enfrentou

Campeão do mundo

Em queda de braço

Vida veio e me levou


Li jornal, bula e prefácio

Que aprendi sem professor

Freqüentei palácio

Sem fazer feio

Vida veio e me levou


Hoje é dia de visita

Vem aí meu grande amor

Ela vem toda de brinco

Vem todo domingo

Tem cheiro de flor


Eu gerei dezoito filhas

Me tornei navegador

Vice-rei das ilhas

Da Caraíba

Vida veio e me levou


Fechei negócio da China

Desbravei o interior

Possuí mina

De prata, jazida

Vida veio e me levou


Hoje é dia de visita

Vem aí meu grande amor

Hoje não deram almoço, né

Acho que o moço até

Nem me lavou


Acho que fui deputado

Acho que tudo acabou

Quase que

Já não me lembro de nada

Vida veio e me levou


Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Francisco (1987), de Chico Buarque.


A vida é vigorosa e é frágil

Poh Pin Chin

Se presenciamos

a queda de uma penca de bananas,

uma debandada de elefantes ou

os cupins roendo os móveis da sala,

concluímos apressados que a vida é vigorosa


Todavia, quando vemos

um peixe atravessado pelo anzol,

uma ave empapuçada de óleo ou

a garganta cortada de um irmão,

constatamos então que a vida de fato é frágil


Entender um pouco o que se passa sob o Sol

é uma benção,

mas é também uma aventura

Uma aventura para muitas vidas,

e que deveria nos impulsionar a protegê-las

Fonte: Costa, F. A. P. L. 2003. Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas. Juiz de Fora, Edição do autor.

08 novembro 2006

Esquemas detalhados, letras emprestadas

Jared Diamond

[...]
Inventar um sistema de escrita a partir do nada deve ter sido incomparavelmente mais difícil do que tomar emprestado um e adaptá-lo. [...]


A invenção independente que podemos reconstruir com mais detalhes é o sistema de escrita mais antigo da história: a escrita cuneiforme suméria (...). Durante milhares de anos antes de sua consolidação, os habitantes de algumas aldeias agrícolas do Crescente Fértil usavam símbolos feitos de argila em várias formas simples para contabilizar o número de ovelhas e a quantidade de grãos. Nos últimos séculos antes de 3.000 a.C., o avanço das técnicas, do formato e dos sinais contábeis conduziram rapidamente ao primeiro sistema da escrita. Uma inovação tecnológica foi o uso das tábuas de argila como uma superfície adequada à escrita. Inicialmente, a argila era arranhada com ferramentas pontiagudas, que aos poucos foram sendo substituídas por estiletes de caniço por imprimirem marcas mais nítidas na tábua. O aperfeiçoamento do formato incluiu a adução progressiva de convenções cuja necessidade é agora aceita universalmente: que a escrita fosse disposta em linhas ou colunas (linhas para os sumérios, assim como para os europeus modernos); que as linhas fossem lidas sempre na mesma direção (da esquerda para a direita para os sumérios, como para os europeus modernos); e que as linhas da tábula fossem lidas de cima para baixo e não ao contrário.


Mas a mudança crucial envolvia a solução do problema básico de quase todos os sistemas de escrita: como criar marcas visíveis aceitas por todos que representem os sons articulados reais, e não apenas conceitos ou palavras independentes de sua pronúncia. Estágios iniciais do desenvolvimento da solução foram detectados em milhares de placa de argila desenterradas nas ruínas da antiga cidade suméria de Uruk, no rio Eufrates, cerca de 320 quilômetros a sudeste da atual Bagdá. Os primeiros símbolos gráficos sumérios eram figuras representativas de objetos (por exemplo, a figura de um peixe ou de um pássaro). Naturalmente, esses sinais pictóricos eram sobretudo numerais, além de nomes de objetos visíveis; os textos resultantes eram meros relatórios contábeis numa escrita telegráfica destituída de elementos gramaticais. Aos poucos, as formas dos sinais foram se estilizando, principalmente quando as ferramentas pontiagudas foram substituídas pelos estilete de caniço. Novos sinais foram criados em combinação com os antigos para produzir novos significados: por exemplo, o símbolo para cabeça foi combinado com o símbolo de pão para produzir um sinal que significava comer.

[...]

Fonte: Diamond, J. 2003. Armas, germes e aço. RJ, Record.


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