28 fevereiro 2007

As origens da guerra

Matt Ridley

[...]
Na década de 1950, um psicólogo alemão [sic] chamado Solomon Asch fez uma série de experiências para testar a tendência de as pessoas se conformarem por intimidação. O sujeito da experiência entrava numa sala onde havia nove cadeiras em semicírculo e era posto numa perto do fim. Outras oito pessoas chegavam, uma a uma, e ocupavam as cadeiras restantes. Sem que o sujeito soubesse, todos eram atores – cúmplices do autor da experiência. Asch então mostrava ao grupo dois cartões, um de cada vez. No primeiro havia uma linha; no segundo, três linhas de tamanhos diferentes. Perguntava-se a cada pessoa qual das três linhas tinha o tamanho da primeira. Nada muito difícil; a resposta era óbvia, porque havia uma diferença de cinco centímetros de uma linha para outra.

Mas o sujeito era o oitavo a responder, depois que os outros todos tinham dado sua opinião. E, para seu espanto, os outros sete tinham escolhido uma linha qualquer, sempre a mesma. A prova que seus sentidos lhe ofereciam contrastava com a opinião de sete pessoas. Em quem confiar? Em 12 ocasiões, de um total de 18, o sujeito seguia a multidão e escolhia a linha errada. Quando perguntados, mais tarde, se tinham sido influenciados pelas respostas dos outros, a maioria dos participantes do teste dizia que não. Não só se conformaram mas também mudaram, genuinamente, de opinião.

Essa deixa foi apanhada por David Hirshleiter, Sushil Bikhchandani e Iwo Welch, economistas matemáticos. Aceitaram o conformismo como fato e tentaram entender por que isso acontece. Por que as pessoas seguem a moda local, no tempo e no espaço? Por que o tamanho das saias, os restaurantes mais freqüentados, as variedades de colheitas, os cantores pop, as notícias, as modas culinárias, os exercícios da moda, os pânicos ambientalistas, as corridas aos bancos, as desculpas psiquiátricas, e tudo o mais, são tão tiranicamente semelhantes em qualquer tempo e lugar? Prozac, abuso de crianças com rituais satânicos, aeróbica, Power Rangers – de onde vêm essas manias? Por que o sistema de eleições primárias nos Estados Unidos funciona inteiramente com base na premissa de que as pessoas votarão em quem parece estar ganhando, de acordo com os resultados do pequeno estado de New Hampshire? Por que as pessoas são tão ovelhas?
[...]

Fonte: Ridley, M. 2000. As origens da virtude: um estudo biológico da solidariedade. RJ, Record. O psicólogo Solomon E. Asch (1907-1996) nasceu em Warsaw, Polônia.

27 fevereiro 2007

Fotofobia

Poh Pin Chin

Olhos salgados,
pele cozida
Nariz embaçado,
corpo moído

Desânimo

Álvares de Azevedo

Estou agora triste. Há nesta vida
Páginas torvas que se não apagam,
Nódoas que não se lavam... se esquecê-las
De todo não é dado a quem padece,
Ao menos resta ao sonhador consolo
No imaginar dos sonhos de mancebo!

Oh! voltai uma vez! eu sofro tanto!
Meus sonhos, consolai-me! distraí-me!
Anjos das ilusões, as asas brancas
As névoas puras, que outro sol matiza,
Abri ante meus olhos que abraseiam
E lágrimas não têm que a dor do peito
Transbordem um momento...

E tu, imagem,
Ilusão de mulher, querido sonho,
Na hora derradeira, vem sentar-te,
Pensativa e saudosa no meu leito!

O que sofres? que dor desconhecida
Inunda de palor teu rosto virgem?
Por que tu’alma dobra taciturna,
Como um lírio a um bafo d’infortúnio?
Por que tão melancólica suspiras?

Ilusão, ideal – a ti meus sonhos
Como os cantos a Deus se erguem gemendo!
Por ti meu pobre coração palpita.
Eu sofro tanto! meus exaustos dias
Não sei por que logo ao nascer manchou-os
De negra profecia um Deus irado.
Outros meu fado invejam... Que loucura!
Que valem as ridículas vaidades
De uma vida opulenta, os falsos mimos
De gente que não ama? Até o gênio
Que Deus lançou-me à doentia fronte,
Qual semente perdida num rochedo,
Tudo isso que vale, se padeço!

Nessas horas talvez em mim não pensas –
Pousas sombria a desmaiada face
Na doce mão, e perdes-te sonhando
No teu mundo ideal de fantasia...
Se meu orgulho, que fraqueia agora,
Pudesse crer que ao pobre desditoso
Sagravas uma idéia, uma saudade –
Eu seria um instante venturoso!...

Mas não... ali no baile fascinante,
Na alegria brutal da noite ardente,
No sorriso ebrioso e tresloucado
Daqueles homens que p’ra rir um pouco
Encobrem sob a máscara o semblante,
Tu não pensas em mim. Na tua idéia
Se minha imagem retratou-se um dia
Foi como a estrela peregrina e pálida
Sobre a face de um lago...

Fonte: Azevedo, A. 2006. Lira dos vinte anos. SP, Martin Claret. Poema originalmente publicado em 1853.

26 fevereiro 2007

Três mil visitas

F. Ponce de León

No meio do expediente de ontem, 25/2, o contador instalado no blogue superou a marca das três mil visitas. Nos 14 dias (12 a 25/2) transcorridos desde o balanço anterior (‘Quatro meses de atividade’), foram cerca de 30,3 visitas/dia. O recorde positivo de visitantes únicos em um só dia continua sendo de 52, em 11/12.

Bridge over troubled water

Paul Simon

When you’re weary

Feeling small

When tears are in your eyes

I will dry them all


I’m on your side

When times get rough

And friends just can’t be found

Like a bridge over troubled water

I will lay me down

Like a bridge over troubled water

I will lay me down


When you’re down and out

When you’re on the street

When evening falls so hard

I will comfort you


I’ll take your part

When darkness comes

And pain is all around

Like a bridge over troubled water

I will lay me down

Like a bridge over troubled water

I will lay me down


Sail on Silver Girl,

Sail on by

Your time has come to shine

All your dreams are on their way


See how they shine

If you need a friend

I’m sailing right behind

Like a bridge over troubled water

I will ease your mind

Like a bridge over troubled water

I will ease your mind


Fonte: encarte que acompanha os LPs do álbum duplo The concert in Central Park (1981), de Simon & Garfunkel. Canção originalmente gravada em 1970.

25 fevereiro 2007

Garotas ao piano


Pierre-Auguste Renoir (1841-1919). Jeunes filles au piano. 1892.

Fonte da foto: Olga’s Gallery.

24 fevereiro 2007

O homem que calculava

Malba Tahan

[E narrou o seguinte:]

2.
Chamo-me Beremiz Samir e nasci na pequenina aldeia de Khói, na Pérsia, à sombra da pirâmide imensa formada pelo Ararat. Muito moço ainda, empreguei-me, como pastor, a serviço de um rico senhor de Khamat.

Todos os dias, ao nascer do sol, levava para o campo o grande rebanho e era obrigado a trazê-lo ao abrigo antes de cair a noite. Com receio de perder alguma ovelha tresmalhada e ser, por tal negligência, severamente castigado, contava-as várias vezes durante o dia.

Fui, assim, adquirindo, pouco a pouco, tal habilidade em contar que, por vezes, num relance calculava sem erro o rebanho inteiro. Não contente com isso passei a exercitar-me contando os pássaros quando, em bandos, voavam pelo céu afora. Tornei-se habilíssimo nessa arte.

Ao fim de alguns meses – graças a novos e constantes exercícios –, contando formigas e outros pequeninos insetos, cheguei a praticar a proeza incrível de contar todas as abelhas de um enxame! Essa façanha de calculista, porém, nada viria a valer, diante das muitas outras que mais tarde pratiquei! O meu generoso amo possuía, em dois ou três oásis distantes, grandes plantações de tâmaras e, informado das minhas habilidades matemáticas, encarregou-me de dirigir a venda de seus frutos, por mim contados nos cachos, um a um. Trabalhei, assim, ao pé das tamareiras, cerca de dez anos. Contente com os lucros que obteve, o meu bondoso patrão acaba de conceder-me quatro meses de repouso, e vou, agora, a Bagdá, pois tenho desejo de visitar alguns parentes e admirar as belas mesquitas e os suntuosos palácios da cidade famosa. E, para não perder tempo, exercito-me durante a viagem, contando as árvores que ensombram esta região, as flores que a perfumam, os pássaros que voam, no céu, entre nuvens.

E, apontando para uma velha e grande figueira que se erguia a pequena distância prosseguiu:

– Aquela árvore, por exemplo, tem 284 ramos. Sabendo-se que cada ramo tem, em média 347 folhas, é fácil concluir que aquela árvore tem um total de 98.548 folhas! Estará certo, meu amigo?

– Que maravilha – exclamei, atônito. – É inacreditável possa um homem contar, em rápido volver d’olhos, todos os galhos de uma árvore e as flores de um jardim! Tal habilidade pode proporcionar, a qualquer pessoa, seguro meio de ganhar riquezas invejáveis!

– Como assim? – estranhou Beremiz. – Jamais me passou pela idéia que se pudesse ganhar dinheiro contanto aos milhões folhas de árvores e enxames de abelhas! Quem poderá interessar-me pelo total de ramos de uma árvore ou pelo número do passaredo que cruza o céu durante o dia?

– A vossa habilidade – expliquei – pode ser empregada em 20.000 casos diferentes. Numa grande capital, como Constantinopla, ou mesmo Bagdá, sereis auxiliar precioso para o governo. Podereis calcular populações, exércitos e rebanhos. Fácil vos será avaliar os recursos do país, o valor das colheitas, os impostos, as mercadorias e todos os recursos do Estado. Asseguro-vos – pelas relações que mantenho, pois sou bagdali – que não vos será difícil obter lugar de destaque junto ao glorioso califa Al-Motacém (nosso amo e senhor). Podeis, talvez, exercer o cargo de vizir-tesoureiro ou desempenhar as funções de secretário da Fazenda muçulmana!

– Se assim é, ó jovem – respondeu o calculista –, não hesito. Vou contigo para Bagdá.

E sem mais preâmbulos, acomodou-se como pôde em cima do meu camelo (único que possuíamos), e pusemo-nos a caminhar pela larga estrada em direção à gloriosa cidade.

E daí em diante, ligados por este encontro casual em meio da estrada agreste, tornamo-nos companheiros e amigos inseparáveis.

Beremiz era de gênio alegre e comunicativo. Muito moço ainda – pois não completara 26 anos –, era dotado de inteligência extremamente viva e notável aptidão para a ciência dos números.

Formulava, às vezes, sobre os acontecimentos mais banais da vida, comparações inesperadas que demonstravam grande agudeza de espírito e raro talento matemático. Sabia, também, contar histórias e narrar episódios que muito ilustravam suas palestras, já de si atraentes e curiosas.

Às vezes punha-se várias horas, em silêncio, num silêncio maníaco, a meditar sobre cálculos prodigiosos. Nessas ocasiões esforçava-me por não o perturbar. Deixava-o sossegado, a fim de que ele pudesse fazer, com os recursos de sua memória privilegiada, descobertas retumbantes nos misteriosos arcanos da matemática, a ciência que os árabes tanto cultivaram e engrandeceram.

Fonte: Tahan, M. [1989?] O homem que calculava. SP, Círculo do Livro.

23 fevereiro 2007

Jardim da fantasia

Paulinho Pedra Azul

Bem te vi, bem te vi
Andar por um jardim em flor
Chamando os bichos de amor
Tua boca pingava mel

Bem te quis, bem te quis
E ainda quero muito mais
Maior que a imensidão da paz
E bem maior que o Sol

Onde estás?
Voei por este céu azul
Andei estradas do além
Onde estará meu bem?

Onde estás?
Nas nuvens ou na insensatez
Me beije só mais uma vez
Depois volte pra lá

Fonte: álbum Jardim da fantasia (1982), de Paulinho Pedra Azul.

22 fevereiro 2007

Sonetos

William Shakespeare

1.
Em tudo o que há mais belo, a rosa da beleza
Se nos impõe, gerando o anseio de aumentá-la,
E, entre os seres mortais, a própria natureza
Ao herdeiro confere o dom de eternizá-la.
Mas tu, assim concentrado em teu olhar brilhante,
Sem o alento de outra alma a que a tua dê abrigo,
Cheio de amor, negando amor a todo instante,
De ti mesmo e do teu encanto és inimigo.
Tu, agora, esplendoroso ornamento do mundo
E arauto singular de alegre primavera,
Tu, botão, dentro em ti sepultas, infecundo,
Teu gozo e te destróis, poupando o que exubera.
Faze prole, ou, glutão, em ti e na sepultura,
Virá a tragar o mundo a tua formosura.

2.
No tempo em que quarenta invernos o teu rosto
Vierem afear, cavando, aí, sulcos profundos,
Tudo quanto te exorta agora – a contragosto,
Reduzido verás a farrapos imundos.
Se alguém quiser, então, saber de tua beleza,
Do tesouro louvado em tempos anteriores,
Os fundos olhos teus, mostrá-la-ão, com certeza
Vexada de ter sido alvo de tais louvores.
Que aplausos para ti o mundo não teria,
Se pudesses dizer: “Sou pai desta criança,
Resumo do que valho e minha apologia!”
Que bela sucessão! Que expressiva esperança!
Que bom, se, moço, assim, te visses novamente,
E sentisses teu sangue, assim, de novo quente!

3.
Olha no espelho e vê: a face aí refletida
É tempo de outra ser que o mesmo sangue core.
E, se isso não se der, ao mundo a tua vida
Será um logro, impedindo, enfim, que o mundo aurore,
Feliz, mais uma mãe. Onde, por mais que exulte
De si mesma, a mulher que Himeneu não te entregue?
E onde o homem que em si mesmo o seu amor sepulte,
Sem que pense no mal que ao futuro assim legue?
De tua mãe és o espelho: em ti sempre ela vive
A rever-se no abril da sua primavera.
Também tu, quando a idade estiver em declive,
Entre rugas verás teus anos de quimera.
Mas, se da vida assim fizeres toda a viagem,
Solteiro, morrerá contigo a tua imagem.

4.
Por que desperdiçada a ser assim costuma
Por ti mesmo contigo a tua avita beleza?
A Natura não dá de graça coisa alguma;
Empresta só, mas só aos que usam de franqueza.
Então, belo avarento, é muito justo dares
O que ela não te deu senão para que o desses.
Inútil usurário és tu. Por que guardares
Teus dotes, se também da vida ao ocaso desces?
Por viveres assim tão egoisticamente,
Apenas a ti mesmo é que iludes, decerto.
E, quando a Morte, enfim, se te puser em frente,
Que conta hás de tu dar desse teu rumo incerto?
Tua beleza invulgar, que, sendo bem usada,
Podia herdeiros ter, far-se-á, na tumba, em nada.

5.
As horas que, gentis, com laborioso apuro,
Urdiram o primor que todo olhar namora,
Virão, decerto, a ser tirânico futuro,
Destruindo tudo quanto o faz excelso agora.
Porque o incansável tempo o estio em marcha lesta,
Para o atro inverno leva e em inverno o transmuda:
O gelo seca a relva, a neve as folhas cresta,
Enfim toda a beleza em aridez se muda.
Se não se destilar do estio a grata essência,
Para se conservar, como líquido em vaso,
A ausência da beleza há de importar a ausência
Do efeito dela, e, então, não haverá nem azo
De a lembrar. Mas da flor destilada perdura
No inverno, embora informe, a vida e a alma doçura.

Fonte: Shakespeare, W. 2006. Sonetos. SP, Martin Claret.
A obra consta de 154 sonetos (o trecho acima corresponde aos cinco primeiros) e foi originalmente publicada em 1609.

21 fevereiro 2007

Aos donos do mundo

F. Ponce de León

Será que algum engravatado
desses que pilham e enxovalham
o mundo de nossos dias
saberia explicar por que

após o fim dos campos de
extermínio da Segunda Guerra
tantas crianças de todas as cores
magricelas e esfomeadas


ainda morrem aninhadas
nos braços da mãe
– em meio a pulgas
e moscas varejeiras –

gemendo e perguntando
baixinho se após a morte elas
finalmente encontrarão
um pedaço de pão para comer?

20 fevereiro 2007

Terra e paz

xenïa antunes

Nesta terra não tenho saudade de lugar nenhum
nem quero voltar para o senso comum.
Quero a flor plantada crescendo sem vaidade
o horizonte escancarado prometendo sossego
e a ignorância das voltas que o mundo dá.
Quero a displicência camponesa
um suor no rosto e o olhar
de quem já sabe a hora de cortejar o sol.
Quero a terra sem ciência
e em que se plantando tudo dá
– o milho, o trigo, o feijão
as folhas de chá, os legumes
as verduras mais verdes de leviana esperança.
Quero esta terra
assim cercada só de carinho
sem dono
sem certidão
nem nome de latifúndio:
a terra assim não possuída
e mais que amada,
querida,
tratada por mãos piedosas
com o jeito humilde que semeia
e faz promessa
e cumpre
e não negocia propriedade.
Quero a terra assim permitida a tanta gente –
quero, pois, a terra toda
doada livremente
sem acusação de posseiro ou fazendeiro,
sem briga de índio, branco fardado ou civil.
Quero a terra assim permitida a toda gente
para lhe fazer chover necessário
colorir de dourado seu cheiro molhado
para lhe poupar.
Quero a terra no cio por toda gente
para que nos sustente então
aqui e no fim.
Por mim, quero a terra em liberdade
porque não sou senhor
e na terra e nesta terra serei sempre terra.
Porque no mar serei o mar que trará vento e água
e decidirá o tempo das colheitas.
E no ar serei o ar que cuidará
que terra e gente saibam se amar.

Fonte: poema republicado aqui com o consentimento da autora, a quem agradeço pela cortesia.

19 fevereiro 2007

Almoço na relva


Édouard Manet (1832-1883). Le déjeuner sur l’herbe. 1863.

Fonte da foto: Wikipedia.


18 fevereiro 2007

Canção de mim mesmo

Walt Whitman

1.

Eu celebro o eu, num canto de mim mesmo,

E aquilo que eu presumir também presumirás,

Pois cada átomo que há em mim igualmente habita em ti.


Descanso e convido a minha alma,

Deito-me e descanso tranqüilamente, observando uma haste da relva de verão.


Minha língua, todo átomo do meu sangue formado deste solo, deste ar,

Nascido aqui de pais nascidos aqui de pais o mesmo e seus pais também o mesmo,

Eu agora com trinta e sete anos de idade, com saúde perfeita, dou início,

Com a esperança de não cessar até morrer.


Crenças e escolas quedam-se dormentes

Retraindo-se por hora na suficiência do que não, mas nunca esquecidas,

Eu me refugio pelo bem e pelo mal, eu permito que se fale em qualquer casualidade,

A natureza sem estorvo, com energia original.


2.

Casas e cômodos cheios de perfumes, prateleiras apinhadas de perfumes,

Eu mesmo respiro a fragrância, a reconheço e com ela me deleito,

A essência bem poderia inebriar-me, mas não permitirei.


A atmosfera não é um perfume, mas tem o gosto da essência, não tem odor,

Existe para a minha boca, eternamente; estou por ela apaixonado

Irei até a colina próxima da floresta, despir-me-ei de meu disfarce e ficarei nu,

Estou louco para que ela entre em contato comigo.


A fumaça da minha própria respiração,

Ecos, sussurros, murmúrios vagos, amor de raiz, fio de seda, forquilha e vinha,

Minha expiração e inspiração, a batida do meu coração, a passagem de sangue e de ar através de meus pulmões,

O odor das folhas verdes e de folhas ressecadas, da praia e das pedras escuras do mar, e de palha no celeiro,

O som das palavras expelidas de minha voz aos remoinhos do vento,


Alguns beijos leves, alguns abraços, o envolvimento de um abraço,

A dança da luz e a sombra nas árvores, à medida que se agitam os ramos flexíveis,

O deleite na solidão ou na correria das ruas, ou nos campos e colinas,

O sentimento de saúde, o gorjeio do meio-dia, a canção de mim mesmo erguendo-se da cama e encontrando o sol.


Achaste que mil acres são demais? Achaste a terra grande demais?

Praticaste tanto para aprender a ler?

Sentiste tanto orgulho por entenderes o sentido dos poemas?


Fica esta noite e este dia comigo e será tua a origem de todos os poemas,

Será teu o bem da terra e do sol (há milhões de sóis para encontrar),

Não possuíras coisa alguma de segunda ou de terceira mão, nem enxergarás através do olhos de quem já morreu, nem te alimentarás
outra vez dos fantasmas que há nos livros.
Do mesmo modo não verás mais através de meus olhos, nem tampouco receberás coisa alguma de mim,

Ouvirás o que vem de todos os lados e saberás filtrar tudo por ti mesmo.


3.

Eu ouvi a conversa dos falantes, a conversa sobre o início e sobre o fim,

Mas não falo nem do início nem do fim.


Nunca houve mais iniciativa do que há agora,

Nem mais juventude ou idade do que há agora,

E jamais haverá mais perfeição do que há agora,

Nem mais paraíso ou inferno do que há agora,


O anseio, o anseio, o anseio,

Sempre o anseio procriador do mundo.


Na obscuridade a oposição equivale ao avanço, sempre substância e acréscimo, sempre o sexo,

Sempre um nó de identidade, sempre distinção, sempre uma geração de vida.

Não vale elaborar, eruditos e ignorantes sentem que é assim.


Certeza tal como a mais certa certeza, aprumados em nossa verticalidade, bem fixados, suportados em vigas,

Robustos como um cavalo, afetuosos, altivos, elétricos,

Eu e este mistério aqui estamos, de pé.


Clara e doce é minha alma e claro e doce é tudo aquilo que não é minha alma.


Faltando um falta o outro, e o invisível é provado pelo visível

Até que este se torne invisível e receba a prova por sua vez.


Apresentando o melhor e isolando do pior, a idade agasta a idade,

Conhecendo a adequação e a eqüanimidade das coisas, enquanto eles discutem eu mantenho-me em silêncio e vou me banhar e admirar a mim mesmo.


Bem-vindo é todo órgão e atributo de mim, e também os de todo homem cordial e limpo.

Nenhuma polegada ou qualquer partícula de uma polegada é vil e nenhum será menos familiar que o resto.


Estou satisfeito – vejo, danço, rio, canto;

Quando o companheiro amoroso dorme abraçado a mim a noite inteira e depois vai embora ao raiar do dia com passos silenciosos,

Deixando-me cestas cobertas com toalhas brancas enchendo a casa com sua exuberância,

Devo adiar minha aceitação e compreensão e gritar pelos meus olhos,

Para que deixem de fitar a estrada ao longe e para além dela

E imediatamente calculem e mostrem-me para um centavo,

O valor exato de um e o valor exato de dois, e o que está à frente?


4.

Traiçoeiros e curiosos estão à minha volta

Pessoas com quem me encontro, os efeitos que a minha infância tem sobre mim, ou o bairro e a cidade em que vivo, ou a nação,

As últimas datas, descobertas, invenções, sociedades, autores antigos e novos,

Meu jantar, roupas, amigos, olhares, cumprimentos, dívidas,

A indiferença real ou fantasiosa de um homem ou mulher que eu amo,

A doença de alguém de minha gente ou de mim mesmo, ou ato doentio, ou perda ou falta de dinheiro, depressões ou exaltações,

Batalhas, os horrores da guerra fratricida, a febre de notícias duvidosas, os terríveis eventos;

Essas imagens vêm a mim dia e noite, e partem de mim outra vez,

Mas não são o meu verdadeiro Ser.


Longe do que puxa e do que arrasta, ergue-se o que de fato eu sou,

Ergue-se divertido, complacente, compassivo, ocioso, unitário,

Olha para baixo, está ereto, ou descansa o braço sobre certo apoio impalpável,

Olhando com a cabeça pendida para o lado, curioso sobre o que está por vir,

Tanto dentro como fora do jogo, e o assistindo, e intrigado por ele.


No passado vejo meus próprios dias quando suei através do nevoeiro com lingüistas e contendores,

Não trago zombarias ou argumentos, apenas testemunho e aguardo.


Fonte: Whitman, W. 2006. Folhas de relva. SP, Martin Claret. O poema todo está arranjado em 52 seções (o trecho acima corresponde às quatro primeiras) e foi originalmente publicado em 1855.

17 fevereiro 2007

O menino do dedo verde

Maurice Druon

14.
Quando os grandes falam em voz alta, as crianças não os ouvem.

– Você está me ouvindo, Tistu?

E Tistu respondia que sim com a cabeça, para parecer obediente, mas não estava prestando a mínima atenção.

Mas quando as pessoas grandes começam a falar em voz baixa e a dizer segredos, logo os meninos apuram os ouvidos e procuram escutar justamente aquilo que não lhes queriam dizer. Neste ponto são todos iguais e Tistu não fazia exceção.

Há alguns dias que todo o mundo cochichava em Mirapólvora. Pairava segredo no ar, e até nos tapetes da Casa-que-Brilha.

O Sr. Papai e Dona Mamãe soltavam longos suspiros ao lerem os jornais.

O criado Cárolo e a cozinheira Siá Amélia sussurravam junto à máquina de lavar pratos. E até o Sr. Trovões parecia ter perdido seu vozeirão de trombeta.

Tistu apanhava em pleno vôo palavras de mau aspecto.

– Tensão... – dizia o Sr. Papai em voz soturna.

– Crise... – respondia Dona Mamãe.

– Agravamento, agravamento... – acrescentava o Sr. Trovões.

Tistu julgou que se falava de uma doença, ficou muito preocupado, e saiu de polegar em riste a procurar o enfermo pela casa.

Uma volta pelo jardim mostrou-lhe que se enganara. Bigode estava em forma, os puros-sangue cavalgavam pela relva, Ginástico vendia saúde.

Mas no dia seguinte uma outra palavra estava em todas as bocas.

– Guerra... Era inevitável! – constatava o Sr. Papai.

– Guerra... Pobre humanidade! – lamentada Dona Mamãe, balançando a cabeça tristemente.

– Guerra... Mais uma! – frisava o Sr. Trovões. – Resta saber quem vai ganhar.

– Guerra... Que desgraça! Quando é que isso vai acabar! – gemia Siá Amélia, quase chorando.

– Guerre... otrra fez! – repetia o criado Cárolo, que tinha, vocês já sabem, um leve sotaque estrangeiro.

Como só se falava em voz baixa, Tistu entendeu que a guerra devia ser uma coisa feia, uma doença de gente grande, pior que a embriaguez, mais cruel que a miséria, mais perigosa que o crime. O Sr. Trovões já lhe falara um pouco da guerra, mostrando-lhe o monumento aos mortos em Mirapólvora. Mas o Sr. Trovões falara com voz tão forte que Tistu não entendeu direito.
(...)

Fonte: Druon, M. 2002. O menino do dedo verde, 69a edição. RJ, José Olympio. Obra originalmente publicada em 1957.

16 fevereiro 2007

Fanatismo

Florbela Espanca

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

“Tudo no mundo é frágil, tudo passa...”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...”

Fonte: Espanca, F. 1996. Poemas de Florbela Espanca. SP, Martins Fontes. Poema originalmente publicado em 1923.

El Rey de las Flores

Silvio Rodríguez

Al Rey de las Flores
lo conocí por la tarde, hace algún tiempo.

Me llamo la atención su tono

de arcoiris en la piel

y su corona de papel.


El Rey de las Flores

tiene su pueblo en un bosque muy remoto,

dos pulgadas detrás del sol.

Cada inquilino en una flor

y en cada piso está el amor.


El Rey de las Flores tiene lagartos

que cantan de salto en salto,

tiene batallones de abejas chiquitas

y arañas, babosas y aves bonitas.


El Rey de las Flores trabaja y trabaja,

su pueblo también trabaja.

Derrumba los bosques de hierba, tan altos.

Navega en los charcos de agua del campo.


El Rey de las Flores

tiene sus fábricas dentro de la tierra.

Cada obrero hace una flor

que en primavera crecerá;

si no, una mosca las lloverá.


Sobre los floridos campos del Rey de las Flores

veo a mi hijo y llamándolo hay una voz:

quedó partido en dos mitades

por una bomba que calló.


Fonte: álbum América do Sol 3 (1980), coletânea de vários autores e intérpretes.

15 fevereiro 2007

Composição 7


Wassily Kandinsky (1866-1944). Composition VII. 1913.

Fonte da foto: Wikipedia.

14 fevereiro 2007

A Sierguéi Iessiênin

Vladímir Maiakóvski

Partistes,
como dizem
para o outro mundo.
O vazio...
Estais planando,
até o céu bordado de estrelas.
Chega de adiantamentos
e de pinga.
Sobriedade.
Não, Iessiênin
isto não é
zombaria.
Na minha garganta
nada de escárnio
mas uma bola de tristeza.
Eu vos vejo
com uma mão de cera hesitando
agitar
o saco
de vossos próprios ossos.
Parai,
deixai para trás!
Que idéia é essa
de derramar
no vosso rosto
este giz mortal?
Vós
que sabíeis escrever coisas
como ninguém
no mundo.
Por quê?
E como?
Derramam-se em hipóteses
Os críticos gaguejam:
“De quem é a culpa?
Muito a dizer...
mas sobretudo
lhe faltava ‘ligação’
O resultado?
Muita cerveja e vodca.”
Dizem
que vós deveríeis
ter trocado a boêmia
pela classe;
A classe vos teria influenciado,
fim das brigas.
Mas essa classe
a sua sede
ela a sacia com kvas?
A classe
ela também, para beber
entende um bocado.
Dizem
que se vos houvessem juntado
alguém de Sentinela
teríeis
feito
muitos progressos:
poderíeis
a cada dia
escrever
vossos cem versos,
chatos
e compridos
como Doronine.
Para mim
se este delírio
se tivesse realizado
vós teríeis
muito mais cedo
sobre vos mesmo se atacado.
Melhor
morrer de vodca
do que de tédio!
Nem a forca
nem a faca
nos darão a chave
desta perda.
Talvez
se tivesse havido tinta
no Hotel Inglaterra
o Senhor poderia ter evitado
de se cortarem as veias.
Os imiadores se alegram:
“Bis!”
Todo um pelotão
que faz
sobre si mesmo, justiça.
Por que
aumentar
o número dos suicídios?
Melhor seria
aumentar
a produção de tinta!
Para sempre
agora
esta língua
fica presa atrás destes dentes.
É duro
e deslocado
fazer mistérios.
O povo
aquele que cria a língua
perdeu
um de seus artesãos
farristas
e sonoros.
E trazem
as quinquilharias dos versos funerários
quase os mesmos
desde o último enterro.
Deveríamos dispersar
no féretro
com um cajado
estes versos inexpressivos.
É assim

que se homenageia

um poeta?

Ainda não vos

construíram um monumento;

onde estão os quilos de bronze

ou os gramas de granito?

que diante da grade da lembrança

já tragam

as bugigangas

das homenagens e dedicatórias.

O vosso nome

é colocado em lenços,

Sobinov

baba as vossas palavras

e sob uma árvore magrinha

ele agoniza:

“Nem mais uma palavra, meu amigo,

nem um suspi-i-i-ro”

Ah!

é de outra forma que deveríamos falar

a esta espécie

de Leonid Lohengrin!

Levantar-se

em fulminante escândalo,

– Eu não permito

que se mastigue

e se massacre

assim os versos!

Assobiar com os dedos

até deixá-los surdos

e mandá-los ao diabo!

Que fujam

esses detritos sem talento,

enchendo

as velas de seus paletós.

Que Kogan

levado em sua debandada

espete os transeuntes

com seu bigode.

A sacanagem

hoje em dia

ainda não ficou rara.

A tarefa é grande

mal bastamos

É preciso primeiro

refazer a vida,

uma vez refeita

poderemos cantá-la.

O nosso tempo, para a pena,

não é muito fácil.

Mas digam-me

os aleijados, os impotentes.

Onde

e quando

aqueles que são grandes

escolheram

os caminhos traçados e fáceis?

A palavra

é capitã

da força humana.

Para a frente, andemos

e que o tempo

estoure em bombas.

Que o vento que sopra

para os dias passados

só leve

mechas de cabelos misturados.

Para a alegria

o nosso planeta

ainda está mal preparado.

É preciso

extorquir

a alegria

aos dias futuros.

Nesta vida,

morrer não é difícil

Construir a vida

é bem mais difícil.


Fonte: Maiakóvski. 2006. Vida e poesia. SP, Martin Claret. Poema originalmente publicado em 1926.

13 fevereiro 2007

Todas as maçãs vinham da Argentina

Luiz Ruffato

Todas as maçãs vinham da Argentina

aninhadas em sedosos lenços lilazes,

perfume transbordando da madeira,

invadindo as brancas manhãs faceiras,

uniformemente colegiais.


Nuvens e verduras murcham agônicas

em finais de tarde sempre primaveris:

ansioso, sua uma maçã argentina na mão,

olhos empurrando os ponteiros do relógio:

aguardo meu pai na sala de visitas do hospital.


Fonte: poema gentilmente enviado pelo autor, a quem agradeço pela cortesia.

Piggies

George Harrison

Have you seen the little piggies

Crawling in the dirt

And for all those little piggies

Life is getting worse

Always having dirt to play around in.


Have you seen the bigger piggies

In their starched white shirts

You will find the bigger piggies

Stirring up the dirt

Always have clean shirts to play around in.


In their styes with all their backing

They don’t care what goes on around

In their eyes there's something lacking

What they need’s a damm good whacking.


Everywhere there’s lots of piggies

Living piggy lives

You can see them out for dinner

With their piggy wives

Clutching forks and knives to eat their bacon.


Fonte: encarte que acompanha os LPs do álbum duplo The Beatles (“The White Album”) (1968), dos Beatles.

12 fevereiro 2007

Quatro meses de atividade

F. Ponce de León

O Poesia contra a guerra completa hoje, 12/2, exatos quatro meses de atividade. No fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que até então 2.604 visitas haviam sido registradas. Ao longo do último mês, foram cerca de 22,3 visitas/dia.

Nesse período (i.e., desde o balanço mensal anterior), foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Alberto da Cunha Melo, Amparo Ochoa, Bárbara Lia, Bartolomeu Campos de Queirós, Carl Sagan, Castro Alves, Cláudio Manuel da Costa, Daniel J. Boorstin, Gregório de Matos, Jamil Damous, Luciano Berio, Luís de Camões, Manuel Alegre, Mário Cesariny, Michael Stipe, Murilo Mendes, Paul McCartney, Rainer Maria Rilke, Richard C. Lewontin, Ronaldo Cagiano, Rossana Dalmonte, Simone de Beauvoir, Tom Jobim e Wallace Stevens.

Al
ém de textos de autores que já haviam sido publicados ao longo dos três meses anteriores. Cabe registrar ainda a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Franz Xaver Winterhalter, Henri Matisse, Pablo Picasso, René Magritte e William Blake.

11 fevereiro 2007

Manga tardia

Poh Pin Chin

O cheiro doce e forte
de manga-rosa
explode de surpresa

nas narinas desprevenidas
de homens e mulheres
sábios e diligentes

que neste exato momento
de uma tarde
tão quente de verão

estão todos reunidos
em torno da mesa
na Sala de Conferências

trocando impressões
detalhadas sobre
nosso futuro comum

e o destino da vida
em nossa galáxia
após a Guerra Total

e o subseqüente processo
de colonização
de terras amigáveis distantes

operado por gigantescas
naves reluzentes guiadas
por seres de carne e osso

bem treinados e pagos
embora ainda atormentados
por idéias não-removidas

onde então finalmente
haverá água líquida
e limpa em abundância

para alguns...

10 fevereiro 2007

O cão de olhos amarelos

Alberto da Cunha Melo

Numa cova de sombra, um cão,
na calçada de um bar gemia.

Numa cova de sombra, um cão,
na calçada de um bar gemia.
Era um cão de olhos amarelos
com uns tons de urina boiando
pelo ferro podre das órbitas.

com uns tons de urina boiando
pelo ferro podre das órbitas.
Jupy já não ia catar
o que os outros cães procuravam
nas lixeiras cheias de vômito;

o que os outros cães procuravam
nas lixeiras cheias de vômito;
mas, sua presença de sombra
era tão densa na calçada,
que as outras sombras tropeçavam.

era tão densa na calçada,
que as outras sombras tropeçavam.
Esse cão de olhos amarelos
sequer foi ligeira lembrança
ou herdeiro de um ossuário.

sequer foi ligeira lembrança
ou herdeiro de um ossuário.
Jupy, com seus olhos de pus
novo, ou de abstratíssimo ouro,
vivia a ver o chato chão.

novo, ou de abstratíssimo ouro,
vivia a ver o chato chão.
Um chão de pedras portuguesas
manchadas de catarro grosso.
Agora, vêm sujá-lo as botas

manchadas de catarro grosso.
Agora, vêm sujá-lo as botas
de algum fiscal da prefeitura,
que o leva no laço, enforcando-o,
sem um latido de protesto.

que o leva no laço, enforcando-o,
sem um latido de protesto.

Fonte: Melo, A. C. 2006. O cão de olhos amarelos & outros poemas inéditos. SP, A Girafa.

09 fevereiro 2007

Retrato de Barbe


Franz Xaver Winterhalter (1805-1873). Madame Barbe [Barbara Dmitrievna Mergassov] Rinsky-Korsakov. 1864.


Fonte da foto: Olga’s Gallery.


08 fevereiro 2007

Os Lusíadas

Luís de Camões

1.
As Armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

2.
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé [e] o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando:
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

3.
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

4.
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi[m] um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mi[m] vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloq[u]o e corrente,
Porque de vossas águas Febo ordene
Que não tenham enveja às de Hipocrene.

5.
Dai-me ũa fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda:
Que se espalhe e se cante no Universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.

6.
E vós, ó bem na[s]cida segurança
Da Lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
(Dada ao mundo por Deus, que todo o mande
Pera do mundo a Deus dar parte grande);

7.
Vós, tenro e novo ramo flore[s]cente,
De ũa árvore, de Cristo mais amada
Que nenhũa na[s]cida no Ocidente,
Cesárea ou Cristianíssima chamada
(Vede-o no vosso escudo, que presente
Vos amostra a vitória já passada,
Na qual vos deu por armas e deixou
As que Ele pera Si na cruz, tomou);

8.
Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo em na[s]cendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando de[s]ce o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro,
Do Turco Oriental e do Gentio
Que inda bebe o licor do santo Rio:

9.
Inclinai por um pouco a majestade
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade,
Quando subindo ireis ao eterno Templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: vereis um novo exemplo
De amor dos pátrios feitos valerosos,
Em versos divulgado numerosos.

10.
Vereis amor da pátria, não movido
De prémio vil, mas alto e quase eterno;
Que não é prémio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome engrandecido
Daqueles de quem sois senhor superno,
E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente.
(...)

Fonte: Camões, L. 2006. Os Lusíadas. SP, Martin Claret. O poema todo compõe-se de 10 cantos (o trecho acima corresponde às 10 primeiras estrofes das 106 que formam o Canto 1) e foi originalmente publicado em 1572.

04 fevereiro 2007

A dádiva da Apollo

Carl Sagan

(...)
Conhecemos a Lua desde os tempos primitivos. Ela já existia no céu quando nossos antepassados desceram das árvores para povoar as savanas, quando aprendemos a caminhar eretos, quando projetamos ferramentas de pedra, quando domesticamos o fogo, quando inventamos a agricultura, quando construímos cidades e começamos a dominar a Terra. Canções folclóricas e populares celebram uma misteriosa conexão entre a Lua e o amor. (...)

Foi só a alguns séculos que a idéia da Lua como um lugar, a uma distância de 384 mil quilômetros, entrou em voga. E, nesse breve bruxuleio de tempo, fomos dos primeiros passos para compreender a natureza da Lua até caminha e dar um passeio sobre a sua superfície. Calculamos como os objetos se movem no espaço; liquefizemos o oxigênio do ar; inventamos grandes foguetes, a telemetria, uma eletrônica confiável, o sistema automático de navegação giroscópica e muito mais. Então navegamos para o céu.
(...)

A Lua já não é inatingível. Uma dúzia de seres humanos, todos norte-americanos, realizaram esses estranhos movimentos saltitantes que chamavam de “passeios lunares” sobre a antiga lava cinzenta, cheia de crateras, ruidosa ao ser esmigalhada – a partir daquele dia de julho de 1969. Mas, de 1972 em diante, nenhuma pessoa de qualquer nacionalidade se aventurou a voltar. Na realidade, nenhum de nós foi a lugar algum depois dos dias gloriosos de Apollo exceto a órbitas inferiores da Terra – como uma criança aprendendo a andar que ensaia alguns passos mais longe e depois, sem fôlego, recua para a segurança das saias da mãe.
(...)

Fonte: Sagan, C. 1996. Pálido ponto azul. SP, Companhia das Letras.

03 fevereiro 2007

Romance de Pedro soldado

Manuel Alegre

1.
Já lá vai Pedro Soldado
num barco da nossa armada
e leva o nome bordado
num saco cheio de nada.

Triste vai Pedro Soldado.

Branda rola não faz ninho
nas agulhas do pinheiro
nem é Pedro marinheiro
nem no mar é seu caminho.

Nem anda a branca gaivota
pescando peixes em terra
nem é de Pedro essa rota
dos barcos que vão à guerra.

Nem anda Pedro pescando
nem ao mar deitou a rede
no mar não anda lavrando
soldado a mão se despede
do campo que se faz verde
onde não anda ceifando
Pedro no mar navegando.

Onde não anda ceifando
já o campo se faz verde
e em cada hora se perde
cada hora que demora
Pedro no mar navegando.

E já Setembro é chegado
já o Verão vai passando.
Não é Pedro pescador
nem no mar vindimador
nem soldado vindimando
verde vinha vindimada.

Triste vai Pedro Soldado.
E leva o nome bordado
num saco cheio de nada.

2.
Soldado número tal
só a morte é que foi dele.
Jaz morto. Ponto final.
O nome morreu com ele.

3.
Deixou um saco bordado
e era Pedro Soldado.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1965.

02 fevereiro 2007

Das frutas

Jamil Damous

açaí
tua boca roxinha de paixão
murici
que saudade de ti no maranhão
buriti
vermelhinho da cor do coração
bacuri
fruta-flor puro odor que sensação
taperebá
eu agora vou cantar outra ri-
maracujá
bem cheirosa e gostosa tanto quanto acima
jacajá
de trás pra frente me alucina
cupuaçu
tão branquinho na tua língua
jambocaju
graviola agudo tom de uma canção
que tem sabor

pitanga manga-rosa mangaba e ingá
pupunha piquiá carambola e araçá
ajiru biribá tucumã e sapoti
cajuí bacaba abiu e goiaba

Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Interior (1986), de Nilson Chaves & Vital Lima.

01 fevereiro 2007

Jóquei perdido


René Magritte (1898-1967). The Lost Jockey. 1948.

Fonte da foto: Olga’s Gallery. Há uma obra de 1926 com o mesmo título.

Indez

Bartolomeu Campos de Queirós

[...]
O tempo não perdoou Antônio. Depois de presenciar muitas partidas, chegou também a sua hora. Alguns dias antes, a mãe passou a separar suas roupas. Fazia pequenos cerzidos, ajustava botões, reforçava bainhas das calças – agora compridas –, reparava meias com ovo de madeira. Depois, com linha fina, bordou em cada peça a letra A. Entre uma coisa e outra, sugeria frases: “Não vá deixar de mandar notícias. Tem sempre um portador. Um recadinho de nada já alivia”. “Vou mandar uns doces de vez em quando”. “Seu avô vai gostar. Anda tão sozinho naquela casa grande”.

O pai, para quebrar o silêncio do menino, brincava de noves-fora, de cantar a tabuada, de falar as capitais do Brasil para Antônio dizer os estados.

No último dia de aula, a professora, com o mesmo carinho do primeiro dia, lhe disse: “Só posso ensinar até aqui, o resto tem que ser em outra escola. Não tenha medo. Preste bem atenção. Estude os pontos que você sabe menos. Faça tudo sem pressa. Pense antes. Vou ter saudade suas, mas a Ana vai ficar comigo e sei que me dará notícias”.

Antônio passou a noite sem dormir. Sentiu o cheiro das lamparinas se apagando, pios de pássaros perdidos, galo acordando a madrugada. Enrolado em sua cama, pensou em desnascer, lentamente, para não causar pesares.

Na boléia do caminhão, partiu Antônio com o pai. Beijou a mão da mãe, abraçou cada irmão sem dizer uma palavra. Sofria. Era uma dor que só o choro poderia curar, mas não queria chorar para ninguém sofrer junto.

Foram em silêncio caminho afora. De vez em quando o pai lhe passava o rabo dos olhos, sem falar ou perguntar nada. E tudo ia ficando para trás: o gado, os córregos, as pontes, as cercas, as árvores. O caminhão comia a estrada, cobrindo seu rosto com poeira para apagar a volta.

O silêncio era forte, como verdadeira era a saudade já sentida de tudo que ia ficando. E, cada vez mais, o desconhecido ficava mais perto e mais longe.

Chegaram à casa do avô. Antônio desceu, pediu a benção e ficou sem curiosidade de entrar até a cozinha. Sabia que há muito sua avó não vivia. Foi para o seu quarto imenso e deixou sobre a cama, lá no fundo, a sua mala. O resto estava cheio de vazio.

O pai não queria viajar durante a noite e partiu rápido. Abraçaram-se apertado. Os olhos do pai embaçaram. Ele olhou para o filho e disse:
– Acho que estou gripado.
– Eu também – compreendeu o menino.
[...]

Fonte: Queirós, B. C. 2004. Indez. SP, Global.

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