31 maio 2016

Verão no campo


Józef Chełmoński (1849-1914). Babie lato. 1875.

Fonte da foto: Wikipedia.

30 maio 2016

A produção dos fatos científicos

Bruno Latour & Steve Woolgar

Quando examinamos a construção dos fatos em um laboratório, apresentamos a organização geral da instalação vista por um profano em ciência (capítulo 2). Mostramos como a história de alguns sucessos do laboratório podia ser utilizada para explicar a estabilização de um fato ‘duro’ (capítulo 3). Em seguida, analisamos alguns microprocessos que intervêm na construção dos fatos, insistindo no paradoxo contido na noção de fato (capítulo 4). Interessamo-nos, em seguida, pelos indivíduos que trabalham no laboratório, tentando encontrar um sentido para suas carreiras e buscando avaliar a solidez de suas produções (capítulo 5). Em cada um desses capítulos definimos termos que se distinguem daqueles que os cientistas, os historiadores, os epistemólogos e os sociólogos das ciências empregam. Agora estamos prontos para resumir o que já tematizamos nos capítulos anteriores, tentando relacionar de maneira mais sistemática os diferentes conceitos utilizados. Vamos aproveitar para passar em revista alguns problemas metodológicos abordados até agora. O leitor deve ter constatado, por exemplo, que um problema maior surge de nossa afirmação de que a atividade científica é feita da construção e da defesa de pontos de vista ficcionais, que, por vezes, são transformados em objetos estabilizados. Se é assim, qual será o estatuto da nossa própria construção da atividade científica?
[...]

Fonte: Latour, B. & Woolgar, S. 1997 [1979]. A vida de laboratório. RJ, Relume Dumará.

28 maio 2016

Queixas noturnas

Augusto dos Anjos

Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh’alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!

Não trago sobre a túnica fingida
As insígnias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.

O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!

Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
Estou à espera de que o Sol desponte!

Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde.

As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais.
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!

A Noite vai crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!

E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação
É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura contra a natureza!

Para essas lutas uma vida é pouca
Inda mesmo que os músculos se esforcem;
Os pobres braços do imortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.

E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos últimos degraus,
O Hércules treme e vai tombar no caos
De onde seu corpo nunca mais levanta!

É natural que esse Hércules se estorça,
E tombe para sempre nessas lutas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mecanismo que tiver mais força.

Ah! Por todos os séculos vindouros
Há de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual à luta dos cristãos e mouros!

Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.

O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.

Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;
A bênção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a água que bebo,
O velho tamarindo a que me encosto!

Vou enterrar agora a harpa boêmia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o eco duma voz
E o grito desvairado da blasfêmia!

Que dentro de minh’alma americana
Não mais palpite o coração – esta arca,
Este relógio trágico que marca
Todos os atos da tragédia humana! –

Seja esta minha queixa derradeira
Cantada sobre o túmulo de Orfeu;
Seja este, enfim, o último canto meu
Por esta grande noite brasileira!

Melancolia! Estende-me a tua asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Diz a este monstro que eu fugi de casa!

Fonte: Anjos, A. 2004. Eu e outros poemas, 46ª edição. RJ, Bertrand. A primeira edição do livro foi publicada em 1912. Poema acompanhado da dedicatória “A Américo Falcão”.

26 maio 2016

Ode written in the beginning of the year 1746

William Collins

How sleep the Brave, who sink to Rest,
By all their Country’s Wishes blest!
When Spring, with dewy Fingers cold,
Returns to deck their hallow’d Mold,
She there shall dress a sweeter Sod,
Than Fancy’s Feet have ever trod.

2.
By Fairy Hands their Knell is rung,
By Forms unseen their Dirge is sung;
There Honour comes, a Pilgrim grey,
To bless the Turf that wraps their Clay,
And Freedom shall a-while repair,
To dwell a weeping Hermit there!

Fonte: Carpeaux, O. M. 2011. História da literatura ocidental, vol. 2. Brasília, Senado Federal. Poema publicado em livro em 1747.

24 maio 2016

Configuração eletrônica

Arigelinda Pereira da Costa & Paulo César W. Albuquerque

Chamamos de configuração eletrônica ou distribuição eletrônica de um átomo à colocação dos elétrons deste átomo nos diversos níveis de energia em torno do seu núcleo.

Tal distribuição obedece às seguintes regras:

1. a colocação dos elétrons se faz do nível de menor energia (n = 1) para os níveis de maior energia (n > 1);

2. cada nível só começa a ser preenchido depois que o anterior já está completo – Princípio aufbau;

3. cada orbital acomoda, no máximo, dois elétrons e estes têm [de] ter spins opostos – Princípio da exclusão (Pauli);

4. dentro de cada nível os subníveis têm energia crescente, na seguinte ordem:

s < p < d < f

5. dentro de um mesmo subnível todos os orbitais têm a mesma energia;

6. elétrons, sendo cargas de mesmo sinal, tendem a se colocar tão distantes quanto possível. Daí, em orbitais de mesmo subnível, primeiro são colocados todos os elétrons α (spin positivo) – Regra de multiplicidade máxima (Hund);

7. depois que todos os orbitais do mesmo subnível estiverem semipreenchidos é que são colocados os elétrons de spin negativo (elétrons β);

8. na distribuição eletrônica em orbitais de um átomo qualquer, representam-se os subníveis completos pelo símbolo do gás nobre correspondente entre colchetes.

35Br – 1s2/2s2 2p6/3s2 3p6 3d10/4s2 4p5

[Ar] 4s2 4p5

Fonte: Costa, A. P. & Albuquerque, P. C. W. 1976. Química geral. RJ, LTC.

23 maio 2016

Frank Young, journalist

James H. McGillivray & James R. Echols

It’s seven-thirty in the evening. Frank Young walks down the street. He stops at the corner of Jefferson Avenue and Sixth Street. He goes into a building. It’s the Sheldon Times Building.

Sheldon is a big city. About 485,000 people live in this city. There are three important newspapers in Sheldon. The Times is the most important. The Times sells 260,000 papers every day.

The Times appears on the streets of Sheldon every morning. Most of the people in the city like this newspaper. They read it every day. The paper gives a good picture of the news.

Frank Young is a journalist. He’s an editor. He works for the Times. Let’s talk to Frank about his job and about the Times.

“Good evening. I’m Frank Young. I’m an editor of the Sheldon Times. I choose articles for the paper. The most important news of the world goes on the front page. There are other interesting articles on the inside pages. The news articles give the facts. An editorial gives an opinion. I usually write an editorial about the news each day.

“The Times has many advertisements or ‘ads.’ It has several comic strips also. On Sundays the comic strips are in color. The children like the comic strips very much.

“The Sheldon Times is important to all the people. People read the paper to know the news. A free press is very important to any country.”

Fonte: McGillivray, J. H. & Echols, J. R. 1966 [1961]. People at work. RJ, Ao Livro Técnico.

21 maio 2016

Se eu fosse alguém ou mandasse

António Botto

Se eu fosse alguém ou mandasse
Neste mundo de vileza,
Só pensava numa coisa
– Acabar com a pobreza.
Dar à vida outra feição
Mais igual, mais repartida,
Seria o meu grande sonho,
A minha grande alegria,
E a cada boca num beijo
Dar o pão de cada dia.

Quem tem muito poderia
Ter menos um bocadinho
P’ra não haver tanto pobre
A pedir no meu caminho.
Não ouvir o desalento
À noite pelas tabernas,
Nem haver gente com fome
Lutando para viver
Porque eu sou pobre também
E não lhes posso valer.

Acabar com a miséria
Mãe do crime e da loucura
Seria ensinar a ler
Os vermes da sepultura.
Mas, cingido ao fatalismo
De uma luta desigual
O que há-de fazer um triste
Que só chegou a indigente?
– Renunciarmos a tudo
No futuro e no presente.

Não ouvir uma criança
Na tristeza de uma queixa
Fazer-nos sentir a morte
E o luto que ela nos deixa;
Podermos dar num sorriso
A expressão da felicidade;
Cada mortal possuir
A sua razão de ser,
– Assim gostava da vida
E gostava de viver.

Fonte (estrofe 1): Cunha, C. 1976. Gramática do português contemporâneo, 6ª edição. BH, Editora Bernardo Álvares. Poema publicado em livro em 1941.

19 maio 2016

Nascer da Lua


Stanisław Masłowski (1853-1926). Wschód Księżyca. 1884.

Fonte da foto: Wikipedia.

17 maio 2016

A conferência de Asilomar

Nicholas Wade

Pelo menos uma nota de pé de página na história da ciência será reservada para o encontro que teve lugar de 24 a 27 de fevereiro de 1975, no centro de conferências de Asilomar, em Pacific Grove, Califórnia. Asilomar é uma capela abandonada e emoldurada pelos pinheirais que bordejam o oceano. Seus terrenos fazem parte da área de hibernação para a população de borboletas-monarcas (Danaus archippus) da Costa Oeste dos Estados Unidos.

Não precisamente monarcas, mas pelo menos paladinos em seu mundo especial, os diretores de laboratórios de pesquisas e árbitros da moda científica afluíram a Asilomar de todos os quadrantes do mundo: Inglaterra, Alemanha e França; Rússia, Japão e Austrália; Canadá, Holanda, Itália, Bélgica, Suécia e Dinamarca.

Os noventa cientistas americanos e cinquenta de outros países tinham-se reunido para discutir não as implicações éticas ou a longo prazo da junção de genes, mas uma questão prática específica: se os experimentos com ADN recombinante apresentavam ou não um risco para a saúde dos pesquisadores ou do público em geral.
[...]

Fonte: Wade, N. 1979. O experimento final. RJ, Zahar.

15 maio 2016

Carrego as estações

Carlos Felipe Moisés

Carrego as estações comigo
e tenho as mãos cansadas.
No bolso esquerdo um riacho murmura.
Ali, onde pequenas pedras se acumulam,
uma canção exala seu vapor,
depois se perde.

Jardins de primavera circulam no meu corpo,
um céu de ouro verte seu perfume
e um vento ignorado agita suas asas.
Pasto de segredos,
mescla de memória e desejo,
meu corpo caminha com a chuva
(carrego as estações comigo),
à procura do sonho de uma nuvem fria.

Tantas folhas trago nos braços
que um pássaro, solidário, se oferece
para carregar as estações comigo.
Do peito aberto os meus jardins se vão
e o pássaro me ajuda (memória
e desejo) a semear meu corpo.

Ali planto meus braços,
debaixo daquelas árvores meus olhos ficam,
os pés, roídos pela terra, penduro numa árvore
e o tronco multiplico em cem pedaços –
lá vai, junto com as pedras,
no bojo do riacho antigo.

E pois que carrego as estações comigo,
os lábios deixo além, no descampado,
e peço ao pássaro que pelos cabelos atire
o que sobrou de mim
àquele mar onde me espera a memória
e o desejo do tempo em que não soube
carregar as estações comigo.

Fonte (estrofes 1 e 4): Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1978.

13 maio 2016

O diagrama da vida

Daniel S. Halacy Jr.

O [biólogo] alemão Walter Flemming descobriu que podia tingir aquela vaga mancha, avistada na célula por Robert Brown cinquenta anos antes. O processo de tintura tornou visíveis algumas coisas interessantes: no momento da divisão da célula, minúsculos corpos em forma de filamento retorcido se alinhavam aos pares no núcleo celular. Usou-se a palavra grega designativa de cor para descrever o processo, e foi daí que esses corpúsculos passaram a chamar-se ‘cromossomos’, ou seja, corpos coloridos.

Os cromossomos são visíveis ao microscópio. Descobriu-se que os seres humanos possuem 48 deles, dispostos aos pares – ou assim se acreditava até 1953, quando a cifra foi corrigida para 46 (a não ser que a pessoa seja portadora de sério defeito hereditário). Mas 46 ‘fatores’ parecia pouco para causar tudo quanto acontece durante o desenvolvimento do indivíduo. Os pesquisaram começaram a inferir, sem observar, o gene ou o diagrama da vida. Geneticistas americanos, entre os quais Thomas Hunt Morgan e Hermann J. Muller, começaram a estudar a mosca-das-frutas (que possui cromossomos bastante grandes) e a aprender que os genes são minúsculos componentes de cromossomos.

Em 1869, o químico alemão Friedrich Miescher isolou uma substância desconhecida no núcleo da célula, chamando-a ‘nucleína’. Sessenta anos depois, o bioquímico americano W. M. Stanley isolou uma linhagem do vírus do mosaico do tabaco, constituído não de células, mas de fragmentos semelhantes aos cromossomos. Contendo a descoberta de Miescher, o ácido nucleico, esse vírus podia fazer uma cópia de si mesmo no interior da célula que invadia. Com o vírus do mosaico do tabaco, a ciência quase isolou o gene. No decênio de 40, a revolução do ADN rebentou quando se descobriu que o ácido nucleico levava em si informações que controlavam e dirigiam o desenvolvimento da célula. Por volta do início da década de 50, as conjecturas de Linus Pauling e a obra de Maurice Wilkins, James D. Watson e Francis Crick conduziram à identificação e à descrição do próprio gene: a milagrosa ‘hélice dupla’ de ácido desoxirribonucleico, a gigantesca molécula de ADN.
[...]

Fonte: Halacy, D. S., Jr. 1976. A revolução genética. SP, Cultrix.

12 maio 2016

Cento e quinze meses no ar

F. Ponce de León

Nesta quinta-feira, 12/5, o Poesia contra a guerra completa nove anos e sete meses no ar. Ao longo desse período, e até o fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue registrou 293.011 visitas.

Desde o balanço anterior – Nove anos e meio no ar – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Aurélio B. H. Ferreira, Don Bradshaw, Euphrase Kezilahabi, Ian Tattersall, John Losee, Manuel de Santa Maria Itaparica, Niles Eldredge, Octavio Paz e Stéphane Mallarmé.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Alfredo Roque Gameiro, George Hendrik Breitner e Pedro Américo.

11 maio 2016

República Degenerativa do Brasil

F. Ponce de León

Encontramos, já no artigo primeiro da Constituição, o seguinte: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]”.

Pois eis que, nesta ensolarada quarta-feira (11/5), o Senado Federal está a discutir a instalação de uma República Degenerativa do Brasil: um consórcio de piratas, sob patrocínio dos grandes pilhadores do ouro da terra, tomará de assalto o governo federal.

10 maio 2016

Rua de São Miguel


Alfredo Roque Gameiro (1864-1935). Rua de São Miguel, Alfama. 1910-20.

Fonte da foto: Wikipedia.

08 maio 2016

Hermandad

Octavio Paz

Soy hombre: duro poco
y es enorme la noche.
Pero miro hacia arriba:
las estrellas escriben.
Sin entender compreendo:
también soy escritura
y en este mismo instante
alguien me deletrea.

Fonte: Pinto, J. N. 2002. Solos do silêncio, 3ª edição. SP, Geração Editorial. Poema – em ‘Homenaje a Claudio Ptolomeo’ – publicado em livro em 1987.

06 maio 2016

O fabricante de ferramentas

Niles Eldredge & Ian Tattersall

Ao menos desde épocas clássicas, as pessoas se aperceberam de que a propensão do homem a fabricar ferramentas o destacou do restante da natureza. E embora hoje saibamos que a construção e o uso de artefatos, no sentido mais estrito, não são nosso privilégio exclusivo, está claro que a complexidade de nossa tecnologia, mesmo tal como se expressava nas sociedades humanas mais primitivas, é inteiramente singular. Decerto, os chimpanzés limpam e preparam galhos para ‘pescar’ cupins nos termiteiros. Os macacos cebídeos usam pedras para abrir nozes. Os babuínos matam os escorpiões com pedras antes de retirar-lhes os ferrões e comê-los; e até as lontras usam pedras para abrir conchas. Mas esse tema obscuro, por mais que tenha sido considerado importante, é basicamente de interesse acadêmico. Somente o homem se distingue não apenas pela riqueza e variedade das ferramentas que fabrica – e das coisas que produz com essas ferramentas – mas também pelo fato de que se tornou dependente de suas ferramentas para sua própria sobrevivência.

Fonte: Eldredge, N. & Tattersall, I. 1984. Os mitos da evolução humana. RJ, Zahar.

04 maio 2016

Lançamento



Em 5 de maio (quinta-feira), o Departamento de Letras, da Universidade Federal de Viçosa, irá promover o lançamento do livro ‘Poesia contra a guerra’. O evento está marcado para o prédio novo do DEL -- defronte da creche, logo acima da fábrica de laticínios -- e terá início às 16h00.

02 maio 2016

A mão, o muro, o mundo

José Tolentino Mendonça

A mão preferida pelo silêncio
evoca sobre o muro
um alfabeto sem vincos

não é mão é uma luz que sobe pela colina
um atalho entre as estevas
um incêndio na mata
a rapariga louca, grita contra a noite
na enseada

A mão preferida pelo silêncio
folheia o livro dos incêndios
torna-se irremediavelmente suja
sobre o muro traça os vincos
os primeiros versos

A mão preferida pelo silêncio
não conhece repouso
quando atravessa a noite da enseada

é a mão trêmula
pobre
assinalada pela escassez extrema dos nomes

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1997.

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