31 agosto 2024

Dúvida censitária: éramos 203 milhões em 2022 ou somos agora 213 milhões?


Felipe A. P. L. Costa [*]

APRESENTAÇÃO. – Na última quinta-feira (29/8/2024), o IBGE divulgou a sua mais recente atualização para o tamanho da população brasileira. Seríamos agora cerca de 213 milhões. Em 2022, ainda de acordo com o IBGE, éramos 203 milhões. Teria havido um aumento de quase 4,7% em dois anos, o que exigiria uma taxa de crescimento anual na casa dos 2,3%. Ocorre que o ritmo de crescimento da população está abaixo de 1% ao ano, desde 2008. Para resolver o problema, a minha melhor hipótese seria a seguinte: o resultado do Censo 2022 foi uma subestimativa. Calculo que ao menos 6,2 milhões de brasileiros não foram devidamente recenseados. Aparentemente superestimados, os resultados que o IBGE divulgou agora podem ser frutos de um processo de ajuste e correção.

*

1. BREVÍSSIMO HISTÓRICO.

O primeiro recenseamento da população brasileira ocorreu em 1872 [1]. O país contava então com 9.930.478 habitantes, incluindo 1.510.806 escravizados (15% da população).

As províncias mais populosas eram Minas Gerais (2.039.735 habitantes), Bahia (1.379.616), Pernambuco (841.539) e São Paulo (837.354).

As maiores capitais eram Salvador (129.109 habitantes), Recife (116.671), Belém (61.997) e Ouro Preto (48.214) [2]. A cidade do Rio de Janeiro, sede do governo central e referida então como Município Neutro, contabilizava 274.972 habitantes.

Novos recenseamentos foram conduzidos em 1890 (14.333.915 habitantes), 1900 (17.438.434) e 1920 (30.635.605) [3].

Em 1936, foi criado o INE (Instituto Nacional de Estatística), ancestral do atual IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que passou a ser o responsável pelos recenseamentos. A quinta operação censitária, a primeira sob o comando do INE, ocorreu em 1940 (41.236.315 habitantes).

Vieram então os censos de 1950 (51.944.397 habitantes), 1960 (70.992.343), 1970 (94.508.583), 1980 (121.150.573), 1991 (146.917.459) e 2000 (169.590.693). E os dois mais recentes, em 2010 (190.755.799 habitantes) e 2022 (203.080.756).

2. O DESGOVERNO 2019-2022 E O CENSO 2022.

A operação censitária ocorrida em 2022, a 13ª da história, estava originalmente prevista para 2020. O desgoverno que assolou o país entre 2019 e 2022 boicotou a operação. Razão pela qual o trabalho de campo só foi conduzido – por determinação judicial (ver aqui) – em 2022. Os resultados começaram a ser divulgados em meados de 2023 (ver aqui).

Em 1/8/2022, de acordo com o Censo 2022, a população do país chegou a 203.080.756 habitantes. Foi a primeira vez que um censo contabilizou um efetivo populacional superior a 200 milhões.

O resultado, porém, ficou bem abaixo do que era esperado. Foi uma surpresa e, em certa medida, uma decepção. Veja: no primeiro ano da pandemia já se falava em 210 milhões de habitantes; no ano seguinte, a estimativa anual divulgada pelo IBGE já estava na casa dos 213 milhões [4]. Não eram poucos, portanto, os observadores que apostavam em resultados iguais ou superiores a 210 milhões; até mesmo, quem sabe, na casa dos 220 milhões. A discrepância entre o esperado e o observado foi significativa e muita gente ficou com uma pulga atrás da orelha.

3. AS ESTIMATIVAS DO IBGE PARA 2024.

Eis que na última quinta-feira (29/8/2024), o IBGE divulgou a sua mais recente atualização para o tamanho da população brasileira (ver aqui). Em 1/7/2024, o efetivo populacional teria chegado a 212.583.750 habitantes.

Foi outro choque. Mudou apenas o sinal: foi um salto muito grande. Basta notar o seguinte: em relação ao resultado do Censo 2022, a nova estimativa representaria um aumento de 4,68%. O que exigiria uma taxa de crescimento anual na casa dos 2,3%. É muita coisa.

O leitor não familiarizado com o assunto talvez não saiba, mas 2,3% é um percentual de crescimento que está muito além de qualquer razoabilidade. Ao menos para os padrões brasileiros: pelas minhas contas, a última vez que a taxa de crescimento anual ficou na casa dos 2,3% foi em 1984. De fato, essa taxa está em declínio desde 1977. E mais: desde 2008, o valor está abaixo de 1%. Por exemplo, no triênio 2009-2011, a julgar pelas minhas contas, os valores estavam em 0,97% (2009), 0,94% (2010) e 0,92% (2011). Em 2019, o último ano antes da pandemia, o valor chegou a 0,75%.

Pode não parecer, mas há uma enorme distância a separar 0,75% de 2,3% (ver a Fig. 1).

4. CODA.

Em governos normais (digo: quando os empresários do terror e a ultradireita política são mantidos dentro da jaula), o IBGE produz e divulga um sem número de produtos de qualidade. O que não significa dizer que os produtos estejam isentos de erros ou mal-entendidos. Não estão. Ouso dizer que a discrepância apontada neste artigo ilustraria este ponto.

Minha melhor hipótese explicativa para essa discrepância seria a seguinte: o resultado do Censo 2022 foi uma subestimativa – calculo que algo como 6.238.077 habitantes não foram devidamente recenseados. Em 2022, portanto, a população do país não estaria de fato na casa dos 203 milhões, mas sim na casa dos 209 milhões.

Por que isso teria acontecido? Não tenho acesso aos registros do IBGE, mas uma explicação possível seria o fato de que um expressivo percentual de moradores (mais do que em ocasiões anteriores) não quis receber ou não quis responder aos recenseadores (e.g., ver aqui).

Mas por que isso teria acontecido? Em poucas palavras, eu diria o seguinte: a vida em sociedade piora muito quando os empresários do terror e a ultradireita política são normalizados, como está a ocorrer entre nós. A imprensa brasileira, por exemplo, quase toda ela nas mãos de rentistas, agiotas ou gatunos em geral, sequer consegue chamar a ultradireita pelo nome.

Finalizando, vejo os resultados divulgados na quinta-feira (29/8) como frutos de um processo de ajuste e correção [5]. Digo: a população brasileira não aumentou 4,68% em dois anos, ainda que o número mais correto possa estar hoje na casa dos 213 milhões.

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NOTAS.

[*] Sobre os livros do autor, ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir o pacote ou algum volume específico ou para mais informações, faça contato pelo endereço felipeaplcosta@gmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui.

[1] Para detalhes, ver os 12 volumes da coleção Recenseamento do Brazil em 1872; o PDF com vol. 1 pode ser capturado aqui.

[2] No caso da província de Minas Gerais, oito municípios eram mais populosos que a capital, a saber: Serro (67.436 habitantes; em 2024: 67.103), Ponte Nova (57.231; em 2024: 59.569), Queluz (atual Conselheiro Lafaiete, 56.902; em 2024: 137.980), Sabará (55.449; em 2024: 134.286), Minas Novas (54.447; em 2024: 24.191), Grão Mogol (53.005; em 2024: 14.091), Rio Pardo (atual Rio Pardo de Minas, 51.583; em 2024: 29.123) e Santa Bárbara (48.344; em 2024: 31.756).

[3] Para um balanço histórico algo detalhado, ver aqui.

[4] Durante a pandemia (2020-2023), por exemplo, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) adotou a estimativa de 210.147.125 habitantes. Em 1/7/2021, conforme o próprio IBGE divulgou em agosto daquele ano, a população do país teria chegado a 213.317.639 (ver aqui).

[5] Levando em conta os resultados divulgados agora pelo IBGE, aproveito para atualizar e ampliar as considerações que fiz em artigo anterior (ver aqui) a respeito da distribuição da população brasileira. A saber:

(a) os 15 maiores municípios do país, todos com mais de 1 milhão de habitantes, abrigam juntos 42.766.437 habitantes (20% do total);

(b) ainda assim, no entanto, a maioria da população do país (80.896.456, o equivalente a 38% do total) está a viver em outro lugar: nos 321 municípios (<6% do total) que têm entre 100 mil e 1 milhão de habitantes;

(c) no cômputo final, metade da população do país está concentrada em 199 municípios (<4% do total). A lista inclui os 15 municípios do item (a) e os primeiros 184 do item (b). Começa por São Paulo (11,896 milhões de habitantes) e termina em Pouso Alegre MG (160,75 mil);

(d) a maioria dos municípios (2.768, ou 49,7% do total), porém, é de uma classe de tamanho diferente: a maioria tem entre 10.000 e 100.000 habitantes. Juntos, eles abrigam 76.146.126 habitantes (36% do total); e, por fim,

(e) os demais 2.466 municípios (44% do total) têm menos de 10 mil habitantes. Juntos, eles abrigam 12.774.731 habitantes (6% do total).

Eis a lista dos 15 municípios (13 são capitais) citados no item (a), em ordem decrescente de tamanho: (i) Mais de 10 milhões – São Paulo; (ii) Entre 5 e 10 milhões – Rio de Janeiro; (iii) Entre 2 e 5 milhões – Brasília, Fortaleza, Salvador, Belo Horizonte e Manaus; e (iv) Entre 1 e 2 milhões – Curitiba, Recife, Goiânia, Belém, Porto Alegre, Guarulhos (SP), Campinas (SP)e São Luís. São Gonçalo (RJ) e Maceió já fizeram parte dessa lista; atualmente, porém, os dois municípios abrigam menos de 1 milhão de habitantes.

* * *

29 agosto 2024

Os usos do absurdo

Stanislav Andreski

Intimamente ligado a esta vantagem está o uso do absurdo e da confusão como escudos para proteger os detentores de autoridade que não gozam de nenhuma superioridade natural de talento ou conhecimento: pois o pensamento claro e lógico é como um jogo com regras definidas e verificáveis, em que qualquer sujeito maltrapilho pode desafiar e derrotar o Mestre, enquanto no reino da confusão e do absurdo não há regras do jogo que justifiquem a queda do Mestre e uma refutação d’O Que Ele Disse.

A confusão e o absurdo protegem a autoridade estabelecida de ser perturbada pelos efeitos de sua divergência em relação a uma classificação natural de talento e habilidade, tal como as roupas protegem uma hierarquia dos efeitos subversivos da nudez; pois no meio de uma multidão nua ninguém pode dizer quem é o marechal-de-campo ou o arcebispo.

Enquanto a autoridade inspirar reverência, a confusão e o absurdo reforçarão as tendências conservadoras na sociedade. Em primeiro lugar, porque o pensamento claro e lógico leva à acumulação do conhecimento (cujo melhor exemplo é dado pelo progresso das ciências naturais), e o avanço do conhecimento cedo ou tarde enfraquece a ordem tradicional. O pensamento confuso, por sua vez, não leva a lugar nenhum e pode ser tolerado indefinidamente sem produzir qualquer impacto no mundo. Em outras palavras, é intrinsecamente estático; e esta característica está ligada à sua capacidade de servir de cimento para agrupamentos sociais.

Fonte (terceiro parágrafo; em port.): Sokal, A. & Bricmont, J. 1999. Imposturas intelectuais. RJ, Record. Excerto de livro (aqui em tradução livre) originalmente publicado em 1972.

27 agosto 2024

Formulando e testando hipóteses: O caso do manacá-da-serra

Felipe A. P. L. Costa

A formulação de hipóteses testáveis é o modo como a ciência lida com o mundo natural. Enquanto os resultados dos testes estiverem de acordo com os termos da hipótese em questão, esta permanecerá de pé. Caso contrário, será necessário reformular ou trocar a hipótese atual por alguma alternativa mais apropriada.

No âmbito das ciências experimentais, uma hipótese pode ser definida como um palpite razoável e minimamente instruído a respeito dos possíveis resultados de um teste – e.g., um palpite sobre o impacto que diferentes comprimentos de onda luminosa podem ter sobre a germinação das sementes de uma planta.

Os resultados do teste servem como critério para se escolher entre as hipóteses disponíveis. Se os resultados são condizentes com mais de uma hipótese, um novo teste deverá ser realizado. Em condições ideais, esse processo é repetido até que sobre apenas uma hipótese. Além disso, é por meio da realização de testes cada vez mais meticulosos que nós formulamos proposições cada vez mais precisas e refinadas.

O caso das flores do manacá-da-serra.

Para fins ilustrativos, vamos nos debruçar sobre um exemplo real que é familiar a muitos brasileiros. Estou a pensar no caso das flores multicoloridas (roxas, rosa, brancas) do manacá-da-serra (Pleroma mutabile, outrora Tibouchina mutabilis), árvore de porte médio encontrada em florestas da Serra do Mar (regiões Sul e Sudeste).

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25 agosto 2024

The princess

Alfred Tennyson

   “Blame not thyself too much,” I said, “nor blame
Too much the sons of men and barbarous laws;
These were the rough ways of the world till now.
Henceforth thou hast a helper, me, that know
The woman’s cause is man’s: they rise or sink
Together, dwarf’d or godlike, bond or free:
For she that out of Lethe scales with man
The shining steps of Nature, shares with man
His nights, his days, moves with him to one goal,
Stays all the fair young planet in her hands –
If she be small, slight-natured, miserable,
How shall men grow? but work no more alone!
Our place is much: as far as in us lies
We two will serve them both in aiding her –
Will clear away the parasitic forms
That seem to keep her up but drag her down –
Will leave her space to burgeon out of all
Within her – let her make herself her own
To give or keep, to live and learn and be
All that not harms distinctive womanhood.
For woman is not undevelopt man,
But diverse: could we make her as the man,
Sweet Love were slain: his dearest bond is this,
Not like to like, but like in difference.
Yet in the long years liker must they grow;
The man be more of woman, she of man;
He gain in sweetness and in moral height,
Nor lose the wrestling thews that throw the world;
She mental breadth, nor fail in childward care,
Nor lose the childlike in the larger mind;
Till at the last she set herself to man,
Like perfect music unto noble words;
And so these twain, upon the skirts of Time,
Sit side by side, full-summ’d in all their powers,
Dispensing harvest, sowing the To-be,
Self-reverent each and reverencing each,
Distinct in individualities,
But like each other ev’n as those who love.
Then comes the statelier Eden back to men:
Then reign the world’s great bridals, chaste and calm:
Then springs the crowning race of humankind.
May these things be!”
        Sighing she spoke “I fear
They will not.”
        “Dear, but let us type them now
In our own lives, and this proud watchword rest
Of equal; seeing either sex alone
Is half itself, and in true marriage lies
Nor equal, nor unequal: each fulfils
Defect in each, and always thought in thought,
Purpose in purpose, will in will, they grow,
The single pure and perfect animal,
The two-cell’d heart beating, with one full stroke,
Life.”
   And again sighing she spoke: “A dream
That once was mind! what woman taught you this?”

Fonte (em port.; v. 47-51 e 53): Macfarlane, A. 1990. História do casamento e do amor. SP, Companhia das Letras. Excerto de poema publicado em livro em 1847.

23 agosto 2024

O funeral do emir


[François] Jean Baptiste Benjamin Constant (1845-1902). Les funérailles de l’émir. 1889.

Fonte da foto: Wikipedia.

21 agosto 2024

A simile

Matthew Prior

Dear Thomas, did’st thou never pop
Thy head into a tin-man’s shop?
There, Thomas, did’st thou never see
(’Tis but by way of Simile)
A squirrel spend his little rage,
In jumping round a rolling cage?
The cage, as either side turn’d up,
Striking a ring of bells a-top? –
   Mov’d in the orb, pleas’d with the chimes,
The foolish creature thinks he climbs:
But here or there, turn wood or wire,
He never gets two inches higher.
   So fares it with those merry blades,
That frisk it under Pindus’ shades.
In noble songs, and lofty odes,
They tread on stars, and talk with Gods;
Still dancing in an airy round,
Still pleas’d with their own verses’ sound;
Brought back, how fast soe’er they go,
Always aspiring, always low.

Fonte: Thomas, K. 1988. O homem e o mundo natural. SP, Companhia das Letras. Poema publicado em livro em 1718.

19 agosto 2024

Urbanização e saúde pública

Felipe A. P. L. Costa

APRESENTAÇÃO. – Com o advento do estado e o surgimento das grandes civilizações, mudou de vez a identidade das forças que pesavam sobre o destino dos grupos e a sorte dos indivíduos. Diminuiu o peso das imposições ecológicas. O protagonismo foi transferido para as lutas políticas travadas no interior de cada sociedade. As relações intergrupais mudaram de tom – e.g., saques e pilhagens foram substituídos por alternativas mais civilizadas, como o comércio. Com o advento do estado e o surgimento das grandes civilizações, mudou de vez a identidade das forças que pesavam sobre o destino dos grupos e a sorte dos indivíduos. Diminuiu o peso das imposições ecológicas. O protagonismo foi transferido para as lutas políticas travadas no interior de cada sociedade. As relações intergrupais mudaram de tom – e.g., saques e pilhagens foram substituídos por alternativas mais civilizadas, como o comércio.

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17 agosto 2024

Perguntar, perguntar, perguntar

Felipe A. P. L. Costa

APRESENTAÇÃO. – Cada um de nós tem as suas próprias dúvidas. Nesse sentido, eu só posso sugerir uma coisa: caro leitor, tome nota de suas dúvidas e de suas perguntas. Cultive-as. Cuide delas como quem cuida de um jardim. E não se esqueça: as melhores respostas estão sempre a mudar, seja por conta de ajustes, seja por conta de reviravoltas radicais. Portanto, esteja preparado para pôr em xeque as certezas que você tem hoje.

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15 agosto 2024

A luta por um dia de trabalho normal

Karl Marx

Depois de o capital ter levado séculos para estender a jornada de trabalho até ao seu limite máximo normal e, depois disso, ao limite da jornada natural de 12 horas, deu-se então o surgimento da maquinaria e da indústria moderna, no último terço do século 18, uma precipitação violenta em sua intensidade e extensão, semelhante à de uma avalanche. Todos os limites da moral e da natureza, idade e sexo, dia e noite, foram rompidos. Mesmo as ideias de dia e noite, de rústica simplicidade nos velhos estatutos, tornaram-se tão confusas que um juiz inglês, ainda em 1860, precisava de uma sagacidade bem talmúdica para explicar ‘judicialmente’ o que era o dia e o que era a noite. O capital celebrava as suas orgias.

Fonte (trecho retraduzido a partir da edição inglesa): Berman, M. 1986. Tudo que é sólido desmancha no ar. SP, Companhia das Letras. Excerto extraído d’O capital (vol. 1, cap. 10), publicado originalmente (em alemão) em 1867.

13 agosto 2024

Le livre est sur la table

John Ashbery

I

All beauty, resonance, integrity,
Exist by deprivation or logic
Of strange position. This being so,

We can only imagine a world in which a woman
Walk and wears her hair and knows
All that she does not know. Yet we know

What her breasts are. And we give fullness
To the dream. The table supports the book,
The plume leaps in the hand. But what

Dismal scene is this? the old man pouting
At a black cloud, the woman gone
Into the house, from which the wailing starts?

II

The young man places a bird-house
Against the blue sea. He walks away
And it remains. Now other

Men appear, but they live in boxes.
The sea protects them like a wall.
The gods worship a line-drawing

Of a woman, in the shadow of the sea
Which goes on writing. Are there
Collisions, communications on the shore

Or did all secrets vanish when
The woman left? Is the bird mentioned
In the waves’ minutes, or did the land advance?

Fonte (Parte II): Bloom, H. 1991. A angústia da influência. RJ, Imago. Poema publicado em livro em 1956.

12 agosto 2024

17 anos e dez meses no ar

F. Ponce de León

Nesta segunda-feira, 12/8, o Poesia Contra a Guerra está a completar 17 anos e dez meses no ar.

Desde o balanço anterior – ‘213 meses no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Agnes Mary Clerke, André Leroi-Gourhan, Edison Pereira dos Santos, Eliot Stellar, Émile Durkheim, I. G. Puzatchenko, Ivan Illich, Lope de Vega, Otaíza de Oliveira Romanelli, Otto Rank, Robert Grosseteste, Robert L. Carneiro e V. G. Dethier. Além de material de autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes artistas: Frits Thaulow, Laura Muntz Lyall, Luc-Olivier Merson e Paul Lazerges.

10 agosto 2024

Uma história interessante


Laura Muntz Lyall (1860-1930). Interesting story. 1898.

Fonte da foto: Wikipedia.

09 agosto 2024

O verniz aristocrático da elite colonial brasileira

Otaíza de Oliveira Romanelli

A economia colonial brasileira fundada na grande propriedade e na mão de obra escrava teve implicações de ordem social e política bastante profundas. Ela favoreceu o aparecimento da unidade básica do sistema de produção, de vida social e do sistema de poder representado pela família patriarcal.

O isolamento e a estratificação sociais, esta a princípio, basicamente dual, aliados à necessidade de manutenção de um esquema de segurança, favoreceram uma estrutura de poder fundada na autoridade sem limites do dono de terras.

Foi a família patricarcal que favoreceu, pela natural receptividade, a importação de formas de pensamento e ideais dominantes na cultural medieval europeia, feita através da obra dos Jesuítas. Afinal, ao branco colonizador, além de tudo, se impunha distinguir-se, por sua origem europeia, da população nativa, negra e mestiça, então existente. A classe dominante, detentora do poder político e econômico, tinha de ser também detentora dos bens culturais importados.

Não é pois de se estranhar que na Colônia tenham vingado hábitos aristocráticos de vida. No propósito de imitar o estilo da Metrópole, era natural que a camada dominante procurasse copiar os hábitos da camada nobre portuguesa. E, assim, a sociedade latifundiária e escravocrata acabou por ser também uma sociedade aristocrática. E para isso contribuiu significativamente a obra educativa da Companhia de Jesus.

Fonte: Romanelli, O. O. 1986. História da educação no Brasil, 8ª ed. Petrópolis, Vozes.

08 agosto 2024

Efeitos ópticos

Robert Grosseteste

Essa parte da óptica, quando bem entendida, nos mostra como podemos fazer com que coisas situadas a grandes distâncias pareçam estar muito perto e coisas grandes e próximas pareçam muito pequenas, e como podemos fazer pequenas coisas colocadas à distância parecerem tão grandes quanto quisermos, de tal forma que nos é possível ler as menores letras a uma distância incrível, ou contar [grãos de] areia, [sementes] ou [folhas de grama] ou qualquer espécies de objetos diminutos.

Fonte: Ronan, C. A. 1987 [1983]. História ilustrada da ciência, v. 2. RJ. Jorge Zahar. Excerto de obra escrita em ~1229.

06 agosto 2024

Vacillation

William Butler Yeats

I
Between extremities
Man runs his course;
A brand, or flaming breath,
Comes to destroy
All those antinomies
Of day and night;
The body calls it death,
The heart remorse.
But if these be right
What is joy?

II
A tree there is that from its topmost bough
Is half all glittering flame and half all green
Abounding foliage moistened with the dew;
And half is half and yet is all the scene;
And half and half consume what they renew,
And he that Attis’ image hangs between
That staring fury and the blind lush leaf
May know not what he knows, but knows not grief.

III
Get all the gold and silver that you can,
Satisfy ambition, or animate
The trivial days and ram them with the sun,
And yet upon these maxims meditate:
All women dote upon an idle man
Although their children need a rich estate;
No man has ever lived that had enough
Of children’s gratitude or woman’s love.

No longer in Lethean foliage caught
Begin the preparation for your death
And from the fortieth winter by that thought
Test every work of intellect or faith,
And everything that your own hands have wrought,
And call those works extravagance of breath
That are not suited for such men as come
Proud, open-eyed and laughing to the tomb.

IV
My fiftieth year had come and gone,
I sat, a solitary man,
In a crowded London shop,
An open book and empty cup
On the marble table-top.

While on the shop and street I gazed
My body of a sudden blazed;
And twenty minutes more or less
It seemed, so great my happiness,
That I was blessed and could bless.

V
Although the summer sunlight gild
Cloudy leafage of the sky,
Or wintry moonlight sink the field
In storm-scattered intricacy,
I cannot look thereon,
Responsibility so weighs me down.

Things said or done long years ago,
Or things I did not do or say
But thought that I might say or do,
Weigh me down, and not a day
But something is recalled,
My conscience or my vanity appalled.

VI
A rivery field spread out below,
An odour of the new-mown hay
In his nostrils, the great lord of Chou
Cried, casting off the mountain snow,
‘Let all things pass away.’

Wheels by milk-white asses drawn
Where Babylon or Nineveh
Rose; some conquer drew rein
And cried to battle-weary men,
‘Let all things pass away.’

From man’s blood-sodden heart are sprung
Those branches of the night and day
Where the gaudy moon is hung.
What’s the meaning of all song?
‘Let all things pass away.’

VII
The Soul. Seek out reality, leave things that seem.
The Heart. What, be a singer born and lack a theme?
The Soul. Isaiah’s coal, what more can man desire?
The Heart. Struck dumb in the simplicity of fire!
The Soul. Look on that fire, salvation walks within.
The Heart. What theme had Homer but original sin?

VIII
Must we part, Von Hugel, though much alike, for we
Accept the miracles of the saints and honour sanctity?
The body of Saint Teresa lies undecayed in tomb,
Bathed in miraculous oil, sweet odours from it come,
Healing from its lettered slab. Those self-same hands perchance
Eternalised the body of a modern saint that once
Had scooped out Pharaoh’s mummy. I – though heart might find relief
Did I become a Christian man and choose for my belief
What seems most welcome in the tomb – play a predestined part.
Homer is my example and his unchristened heart.
The lion and the honeycomb, what has Scripture said?
So get you gone, Von Hügel, though with blessings on your head.

Fonte (estrofe 1 da parte III): Bronowski, J. 1979 [1965]. Ciência e valores humanos. BH, Itatiaia & Edusp. Poema poblicado em livro em 1933.

04 agosto 2024

A mis soledades voy

Lope de Vega

A mis soledades voy,
de mis soledades vengo;
porque para andar conmigo
me bastan mis pensamientos.

¡No sé qué tiene el aldea
donde vivo y donde muero,
que con venir de mí mismo
no puedo venir más lejos!

Ni estoy bien ni mal conmigo;
mas dice mi entendimiento,
que un hombre que todo es alma
está cautivo en su cuerpo.

Entiendo lo que me basta,
y solamente no entiendo
cómo se sufre a sí mismo
un ignorante soberbio.

De cuantas cosas me cansan,
fácilmente me defiendo;
pero no puedo guardarme
de los peligros de un necio;

él dirá que yo lo soy,
pero con falso argumento:
que humildad y necesad
no caben en un sujeto.

La diferencia conozco,
porque en él y en mí contemplo
su locura, en su arrogancia;
mi humildad, en su desprecio.

O sabe naturaleza
más que supo en otro tiempo,
o tantos que nacen sabios
es porque lo dicen ellos.

Sólo sé que no sé nada,
dijo un filósofo, haciendo
la cuenta con su humildad,
adonde lo más es menos;

no me precio de entendido
de desdichado me precio;
que los que no son dichosos,
¿cómo pueden ser discretos?

No puede durar el mundo,
porque dicen, y lo creo,
que suena a vidrio quebrado
y que ha de romperse presto.

Señales son del juicio
ver que todos le perdemos;
unos por carta de más,
otros por carta de menos.

Dijeron que antiguamente
se fue la verdad al cielo:
¡Tal la pusieron los hombres,
que desde entonces no ha vuelto!

En dos edades vivimos
los propios y los ajenos:
la de plata, los estraños,
y la de cobre, los nuestros.

¿A quién no dará cuidado,
si es español verdadero,
ver los hombres a lo antiguo
y el valor a lo moderno?

Dijo Dios, que comería
su pan el hombre primero
en el sudor de su cara,
por quebrar su mandamiento;

y algunos inobedientes
a la vergüenza y al miedo,
con las prendas de su honor
han trocado los efectos.

Virtud y filosofía
peregrinan como ciegos:
el uno se lleva al otro,
llorando van y pidiendo.

Dos polos tiene la tierra,
universal movimiento:
la mejor vida el favor,
la mejor sangre el dinero.

Oigo tañer las campanas,
y no me espanto, aunque puedo,
que en lugar de tantas cruces,
haya tantos hombres muertos.

Mirando estoy los sepulcros,
cuyos mármoles eternos
están diciendo sin lengua:
que no lo fueron sus dueños.

¡Oh, bien haya quien los hizo,
porque solamente en ellos
de los poderosos grandes
se vengaron los pequeños!

Fea pintan a la envidia;
yo confieso que la tengo
de unos hombres que no saben
quién vive pared en medio.

Sin libros y sin papeles,
sin tratos, cuentas ni cuentos:
cuando quieren escribir,
piden prestado el tintero.

Sin ser pobres ni ser ricos,
tienen chimenea y huerto;
no los despiertan cuidados,
ni pretensiones ni pleitos;

ni murmuraron del grande,
ni ofendieron al pequeño;
nunca, como yo, afirmaron
parabién, ni pascuas dieron.

Con esta envidia que digo,
y lo que paso en silencio,
a mis soledades voy,
a mis soledades vengo.

Fonte (v. 3 e 4): Guerra, M. 1981. El enigma del hombre, 2ª ed. Pamplona, EUNSA. Poema datado do início do século 17.

03 agosto 2024

População biológica

Edison Pereira dos Santos

Denominamos população biológica a um conjunto de indivíduos da mesma espécie, sem barreiras geográficas entre si.

O primeiro problema a ser resolvido, antes de iniciarmos a análise da dinâmica de uma população, é o da delimitação geográfica da região ocupada pela população. Esse procedimento é essencialmente empírico, consistindo de coleta de amostras em diferentes locais e da análise do ambiente.

Fontes: Santos, E. P. 1978. Dinâmica de populações aplicada à pesca e piscicultura. SP, Hucitec & Edusp.

01 agosto 2024

Ofício de morrer

Vasco Graça Moura

eu imagino assim a morte de pavese:
era um quarto de hotel em turim,
decerto um hotel modesto, de uma ou duas
estrelas, se é que havia estrelas.

uma cama de pau, de verniz estalado,
rangendo de encontros fortuitos, um colchão mole e húmido
com a cova no meio, a do costume.
corria o mês de agosto com sua terra escura

encardindo as cortinas. nada ia explodir
naquele mês de agosto àquela hora da tarde
de luz adocicada. e alguém pusera
três rosas de plástico num solitário verde.

vejo como pavese entrou, como pousou a maleta
com indiferença, dobrou alguns papéis
e despiu o casaco (como nos filmes
italianos da época). depois foi aos lavabos

no corredor, ao fundo. talvez tenha pensado
que esta vida é uma mijadela ou que.
voltou ao quarto, havia
uma fétida alma em tudo aquilo.

ele abriu a janela
e pediu a chamada telefónica.
a noite ia caindo sem palavras, mesmo sem buzinas
excessivas. encheu um copo de água. e esperou.

quando a campainha tocou, havia muito pouco
a dizer e ele já o tinha dito:
já tinha dito quanto amar nos torna
vulneráveis; e míseros, inermes;

que é precisa humildade, não orgulho;
e parar de escrever;
e que dessa nudez é que morremos.
foi mais ou menos isto – a nossa condição

demasiado humana, a voz humana, a frágil
expressão disso tudo, uma firmeza tensa.
“e até rapariguinhas o fizeram”,
tinham nomes obscuros e nenhum

remorso lancinante, ninguém pra falar delas.
a mais temida coisa é a coragem
do que parecia fácil: tudo o que não se disse
carregado num acto de súbitas fronteiras.

foi mais ou menos isto. não sei se ele a seguir
pôs do lado de fora um letreiro
com do not disturb ou coisa assim,
nem se tomou as pastilhas uma a uma, ou se as contou.

não sei se o encontrou uma criada,
se a polícia veio logo, se deixou uma carta
ao seu melhor amigo, se apagou a luz,
nem se pousou ao lado a carteira, o relógio, a esferográfica.

não sei se entrou na morte como quem
traz imagens pungentes na cabeça,
palavras marteladas de desejo, ou como quem friamente
está no avesso do sono e vai calar-se e é justo.

não sei se foi assim, se existe uma outra
verdade imaginável ou vedada. sei que ele tinha
um olhar decidido, alguma instigadora, e quarenta e dois anos,
e sei que nessa altura há já poucas verdades

e nenhuma dimensão biográfica na morte.
já vem nas escrituras. eu prefiro
dizer que ele fechou a porta à chave
e sei que era viril a sua transparência.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1984.

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