A história da humanidade se confunde com a história das guerras. Deveríamos lutar para que se confundisse apenas com a história da literatura.
30 junho 2007
Anotação na margem
Simon Singh
Enquanto estudava o Livro II da Aritmética, Fermat encontrou toda uma série de observações, problemas e soluções relacionados com o teorema de Pitágoras e os trios pitagóricos. Fermat ficou impressionado com a variedade e a quantidade de trios pitagóricos. Ele estava ciente de que, séculos atrás, Euclides tinha feito uma demonstração [...] provando que, de fato, existe um número infinito de trios pitagóricos. Fermat deve ter olhado para a exposição detalhada que Diofante fazia dos trios pitagóricos e pensado no que poderia acrescentar àquele assunto. Enquanto olhava para a página, ele começou a brincar com a equação de Pitágoras, tentando descobrir alguma coisa que escapara à atenção dos gregos.
Subitamente, num instante de genialidade, que imortalizaria o Príncipe dos Amadores, ele criou uma equação que, embora fosse muito semelhante à de Pitágoras, não tinha solução. Foi esta equação que Andrew Wiles, aos dez anos de idade, viu na biblioteca da rua Milton.
No lugar de considerar a equação
x2 + y2 = z2,
Fermat contemplava uma variante da criação de Pitágoras:
x3 + y3 = z3.
Conforme foi mencionado no capítulo anterior [capítulo 1], Fermat tinha apenas mudado a potência de 2 para 3, do quadrado para o cubo, mas sua nova equação aparentemente não tinha solução para qualquer número inteiro. O método de tentativa e erro logo mostra a dificuldade de encontrar dois números elevados ao cubo que, ao serem somados, produzam outro número elevado ao cubo. Poderia acontecer desta pequena modificação transformar a equação de Pitágoras, com um infinito número de soluções, em uma equação insolúvel?
[...] De acordo com Fermat parecia não existir um trio de números que se encaixasse perfeitamente na equação
xn + yn = zn, onde n representa 3, 4, 5...
Na margem de sua Aritmética, ao lado do Problema 8, Fermat escreveu uma nota de sua observação:
[...] É impossível para um cubo ser escrito como a soma de dois cubos ou uma quarta potência ser escrita como uma soma de dois números elevados a quatro, ou, em geral, para qualquer número que seja elevado a uma potência maior do que dois ser escrito como a soma de duas potências semelhantes.
[...] Depois da primeira nota na margem, esboçando sua teoria, o gênio travesso colocou um comentário adicional que iria assombrar gerações de matemáticos:
[...] Eu tenho uma demonstração realmente maravilhosa para esta proposição mas esta margem é muito estreita para contê-la. [...] Fonte: Singh, S. 1998. O último teorema de Fermat. RJ, Record.
se lhes derem Kennedy ou Kruschev ou De Gaulle não acreditem nesta única realidade neste implacável colar de conchas de ar
se lhes derem os códigos os gestos as modas não acreditem nesta enlatada realidade nesta implacável aranha de invisíveis fios
se lhes derem a esperança o progresso a palavra não acreditem na imposta realidade na implacável engrenagem das hélices de vácuo
aprendam a olhar atrás do espelho onde a história jamais penetra a profunda história do não registrado aprendam a procurar debaixo da pedra a história do sangue evaporado a história do anônimo desastre aprendam a perguntar por quem construiu a cidade por quem cunhou o dinheiro por quem mastigou a pólvora do canhão para que as sílabas das leis fosses cuspidas sobre as cabeças desses condenados ao silêncio Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4a edição. RJ, Aeroplano.
O mar, póstumo e ferido, que, antigo e breve, molda meus desígnios, traz-me essa nova terra, viva, sob os pés, meu dizer futuro sem palavra conhecida.
Ressurjo, um nascer esguio, sem voz ou alento para o gracejo, mas a escusa de outro amor negado.
Célebres, o que fazeis de vós? Vós que servis, atentos, a memória das águas, o que jaz submerso e, mesmo assim, fala?
Cinza, o pó das eras, argamassa, fronte, terra, coroa de louros sobre a tez alvíssima.
Despe, pecado e culpa, nada te retém, à míngua.
Eis o ósculo de Judas, o peregrino, o cravo das mãos, a hóstia e mirra. Séculos não te explicarão.
Ergue, na floresta oscura, as mãos sem o cálice, bendita urdidura.
Terão a passagem, olivais ao largo, olhos e ouvidos do rei.
Mão e espada, uma só ferramenta. Sobre o cenho, espinho, sob o manto, a lavra.
Terão os homens assistido aos dias que se passaram desde tua epifania. Escolherão um deles para salvar-te e ainda louvar-te.
Serão eles os herdeiros de tudo, os filhos pródigos do mundo, hoje nesta terra arguta, esse bólido centáurico, nave, ave, fulminado desterro.
Hoje o dia é ontem. E nunca baixaremos ao mar, desceremos às profundezas dos rios, à procura dos peixes e de teu arado.
Serão todos os seres o infinitesimal, o nada, espalhados por toda a parte, à espera. Fonte: poema gentilmente enviado pela autora, a quem agradeço pela cortesia.
They’re selling postcards of the hanging They’re painting the passports brown The beauty parlor is filled with sailors The circus is in town Here comes the blind commissioner They’ve got him in a trance One hand is tied to the tight-rope walker The other is in his pants And the riot squad they’re restless They need somewhere to go As Lady and I look out tonight From Desolation Row
Cinderella, she seems so easy “It takes one to know one,” she smiles And puts her hands in her back pockets Bette Davis style And in comes Romeo, he’s moaning “You Belong to Me I Believe” And someone says, “You’re in the wrong place, my friend You better leave” And the only sound that’s left After the ambulances go Is Cinderella sweeping up On Desolation Row
Now the moon is almost hidden The stars are beginning to hide The fortunetelling lady Has even taken all her things inside All except for Cain and Abel And the hunchback of Notre Dame Everybody is making love Or else expecting rain And the Good Samaritan, he’s dressing He’s getting ready for the show He’s going to the carnival tonight On Desolation Row
Now Ophelia, she’s ’neath the window For her I feel so afraid On her twenty-second birthday She already is an old maid To her, death is quite romantic She wears an iron vest Her profession’s her religion Her sin is her lifelessness And though her eyes are fixed upon Noah’s great rainbow She spends her time peeking Into Desolation Row
Einstein, disguised as Robin Hood With his memories in a trunk Passed this way an hour ago With his friend, a jealous monk He looked so immaculately frightful As he bummed a cigarette Then he went off sniffing drainpipes And reciting the alphabet Now you would not think to look at him But he was famous long ago For playing the electric violin On Desolation Row
Dr. Filth, he keeps his world Inside of a leather cup But all his sexless patients They’re trying to blow it up Now his nurse, some local loser She’s in charge of the cyanide hole And she also keeps the cards that read “Have Mercy on His Soul” They all play on penny whistles You can hear them blow If you lean your head out far enough From Desolation Row
Across the street they’ve nailed the curtains They’re getting ready for the feast The Phantom of the Opera A perfect image of a priest They’re spoonfeeding Casanova To get him to feel more assured Then they’ll kill him with self-confidence After poisoning him with words And the Phantom’s shouting to skinny girls “Get Outa Here If You Don’t Know Casanova is just being punished for going To Desolation Row”
Now at midnight all the agents And the superhuman crew Come out and round up everyone That knows more than they do Then they bring them to the factory Where the heart-attack machine Is strapped across their shoulders And then the kerosene Is brought down from the castles By insurance men who go Check to see that nobody is escaping To Desolation Row
Praise be to Nero’s Neptune The Titanic sails at dawn And everybody’s shouting “Which Side Are You On?” And Ezra Pound and T. S. Eliot Fighting in the captain’s tower While calypso singers laugh at them And fishermen hold flowers Between the windows of the sea Where lovely mermaids flow And nobody has to think too much About Desolation Row
Yes, I received your letter yesterday (About the time the door knob broke) When you asked how I was doing Was that some kind of joke? All these people that you mention Yes, I know them, they’re quite lame I had to rearrange their faces And give them all another name Right now I can’t read too good Don’t send me no more letters no Not unless you mail them From Desolation Row Fontes: álbum Highway 61 revisited (1965), de Bob Dylan, e o livro A estrada revisitada (1992, Iglu Editora), de Isabel Bing.
Hoje eu vou viajar para a colônia de férias e estou muito contente. A única coisa chata é que o papai e a mamãe parecem um pouco tristes: mas com certeza é porque eles não estão acostumados a ficar sozinhos nas férias.
A mamãe me ajudou a fazer a mala com as camisetas, os shorts, as alpargatas, os carrinhos, o maiô, as toalhas, a locomotiva do trenzinho elétrico, os ovos cozidos, as bananas, os sanduíches de salame e de queijo, a rede para os camarões, o pulôver de manga comprida, as meias e as bolinhas. A gente teve que fazer alguns embrulhos, é claro, porque a mala não era grande, mas deu tudo certo.
Eu estava com medo de perder o trem e depois do almoço perguntei para opapai se não era melhor a gente ir agora mesmo para a estação. Mas o papai disse que ainda era um pouco cedo, que o trem saía às 6 horas da tarde e que parecia que eu estava morrendo de vontade de deixar eles, e a mamãe foi para a cozinha com o lenço, dizendo que tinha entrado alguma coisa no olho dela.
Não sei o que é que o papai e a mamãe têm, eles parecem muito chateados. Estão tão chateados que eu nem tenho coragem de dizer que cada vez que eu penso que vou ficar quase um mês sem ver eles me dá uma bolona na garganta. Se eu dissesse isso, tenho certeza de que eles iam rir de mim e me dar uma bronca. [...] Fonte: Sempé & Goscinny. 1996 [1960]. As férias do pequeno Nicolau. SP, Martins Fontes.
Morri pela Beleza – e em minha Cova Eu não me sentia a gosto Quando Alguém que morreu pela Verdade A Cova ao lado chegou –
Ele indagou gentil por que eu viera – E eu disse – “Pela Beleza” – “Eu vim pela Verdade – a Mesma Coisa – Somos irmãos” – respondeu –
E quais Parentes juntos numa Noite Conversamos nos Jazigos – Até que o Musgo nos chegou aos lábios E nossos nomes cobriu – Fonte: Dickinson, E. 2006. Alguns poemas. SP, Iluminuras. Versão deste poema foi originalmente publicada em 1890.
A circunstância de sermos homem e mulher presos por uma aliança tácita e secreta do sangue é que nos prende à vida, meu amor, e nos salva.
Nascemos sem passaporte, entre fronteiras guardadas por sentinelas de sal e de silêncio.
O rio da história corre, estrangulado, entre as pedras, e o cascalho, e os detritos humanos, e a alegria suicida das coisas limpas e puras abandonadas e soltas à vertigem da morte.
Construímos para nossa defesa um muro de ironia e de sarcasmo – imponderável cortina de humana ternura envergonhada ou, como tu dizes, perseguida.
O silêncio é a corda que nos prende aos mastros, a antena vegetal por onde a vida se insinua, universal e atenta.
Marinheiros duma pátria ancorada no tempo, bebemos o sal dos minutos que passam e adormecemos, hirtos, de costas para o mar. Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1967. Após o título, ostenta a inscrição "Para a Kay".
A água é um fator preponderante na paisagem amazônica. Isso pode-se dizer tanto para os majestosos rios, os quais obviamente chamam a atenção dos visitantes, quanto para os inúmeros pequenos rios e igarapés, que contribuem para a formação dos rios gigantes. A rede de igarapés na Amazônia é tão densa como em quase nenhuma região do mundo. Porém, olhando-se de perto, verifica-se que os corpos de água não são uniformes. Encontram-se diferenças consideráveis tanto em relação à morfologia de seus leitos quanto às suas características químicas e biológicas.
Os lagos que acompanham os grandes rios e que são típicos para áreas alagáveis (várzeas e igapós) faltam nas áreas não-inundáveis (terra firme), onde igarapés e pequenos rios caracterizam a paisagem.
Rios com água barrenta ocorrem tanto quanto rios com água preta ou cristalina. Enquanto alguns rios quase não têm correnteza, outros passam por corredeiras e cachoeiras. Rios ricos em nutrientes, plantas, peixes e [aves] aquáticas são tão comuns como rios pobres, onde raramente uma garça agita a tranqüilidade e monotonia da paisagem.
Para entender esta diversidade é necessário não somente descrever os aspectos biológicos das águas amazônicas mas também discutir as condições geográficas, geológicas, hidrológicas e hidroquímicas da região inteira, porque a água e a terra adjacente se influenciam mutuamente e somente em conjunto formam a paisagem amazônica tão característica. [...]
O turista que faz um passeio de barco para ver o encontro das águas dos rios Solimões e Negro, imediatamente percebe a diferença de cor das águas de ambos os rios. O rio Negro tem sua água transparente e escura, enquanto que a água do Solimões é branca e barrenta.
Nas áreas do encontro das águas, ambos se misturam de uma maneira similar como café e leite. Por causa da coloração, as águas escuras são chamadas águas pretas, enquanto que as águas barrentas são chamadas águas brancas. Na boca do rio Tapajós encontra-se uma área de mistura semelhante, porém a água do Tapajós é transparente e esverdeada. Como [explicar] essas diferenças nítidas na coloração da água?
Água branca Vários rios da região amazônica, como o próprio Amazonas, Purus, Madeira e Juruá, nascem na região andina e pré-andina. Os processos de erosão nos Andes são muito intensivos e a carga de sedimentos é muito alta, provocando a cor branca das águas. Em áreas de baixa correnteza, os sedimentos são depositados e a transparência da água aumenta, enquanto que em outras áreas a correnteza invade os barrancos recebendo novos materiais para carregar. [...]
Água preta Ao contrário dos rios de água branca, o rio Negro e outros rios de água preta (rio Urubu) não transportam material em suspensão em grandes quantidades. Rios de água preta nascem nos escudos arqueados das Guianas e do Brasil Central ou nos sedimentos terciários da bacia amazônica, que tem um relevo suave e pouco movimentado, onde os processos de erosão são pouco intensos e reduzidos ainda pela densa [floresta] pluvial. Conseqüentemente, a carga de sedimentos é baixa e os rios são transparentes.
[E]ncontram-se na sua área de captação enormes florestas inundáveis (igapós) e o material orgânico produzido pelas florestas, tais como folhas, galhos etc., cai na água e decompõe-se. Vários produtos da decomposição são solúveis e de coloração marrom ou avermelhada (ácidos húmicos e fúlvicos), provocando a cor escura da água preta. [...]
Água clara Os rios de água clara são transparentes e com cor esverdeada, transportando somente poucos materiais em suspensão. A análise química mostra uma heterogeneidade relativamente grande destes rios e principalmente dos igarapés com relação ao pH e à condutividade elétrica. [...]
Em resumo, podemos constatar que se pode distinguir na grande variedade de águas amazônicas dois tipos nitidamente diferentes e com caracteres bem específicos: água branca, que é turva, rica em sais minerais dissolvidos, com alta percentagem de cálcio e magnésio, e neutra ou pouco ácida, e água preta, que é transparente, escura, pobre em sais minerais dissolvidos, com alta porcentagem de sódio e potássio e muito ácido. Além disso, existe um grande número de águas transparentes, pouco coloridas, com caráter químico variável, que necessitam de estudos adicionais para sua classificação definitiva. Junk, W. J. 1983. As águas da região amazônica. In: Salati, E.; Shubart, H. O. R.; Junk, W. & Oliveira, A. E., orgs. Amazônia: desenvolvimento, integração e ecologia. SP & Brasília, Brasiliense & CNPq.
Mário de Sá-Carneiro Fios de oiro puxam por mim A soerguer-me na poeira – Cada um para seu fim, Cada um para seu norte... ... ... ... ... ... ... ... ... ... – Ai que saudades da morte... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Quero dormir... ancorar... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Arranquem-me esta grandeza! – P’ra que me sonha a beleza Se a não posso transmigrar?... Fonte: Sá-Carneiro, M. 1983. Poesias. SP, Difel. Poema originalmente publicado em 1913.
No meio do expediente de ontem, segunda-feira, o Poesia contra a guerra superou a marca das nove mil visitas. Do balançoanterior, “Oito mil visitas”, em 4/6, até o fim do expediente de domingo (17/6) ocorreram em média cerca de 68,6 visitas/dia. Ontem, coincidentemente, alcançamos também um novo recorde positivo de visitantes únicos em um só dia: 113.
Eu não nasci pra ser poeta. Não que eu não goste de poesia. Gosto muito de Mario Quintana, por exemplo. Mas eu não nasci pra ser Mario Quintana.
É uma pena, eu sei. Não é que eu não tenha tentado. Na verdade, desde que vi “Sociedade dos poetas mortos”, na minha adolescência, eu venho tentando ser poeta.
Só não consigo.
Primeiro, porque tenho dificuldades para rima. Cresci ouvindo rimas como “Daniell cara de pastell” ou “Daniell cara de papell” (normalmente faziam assim mesmo, respeitando os dois éles). E então, traumatizei-me com rimas.
Claro que rimar, com todos esses movimentos de poesia que inventaram por aí, não é essencial.
Eu podia virar, por exemplo, um poeta beatnik. Eu seria um sujeito bastante, como se diz, cool. Mas pra isso eu ia ter que usar uma boina. E eu também tenho trauma de boina, desde quando fui um boina vermelha e vi as coisas mais horríveis do mundo na Guerra da Coréia – como a versão coreana de “A praça é nossa”.
Tentei a poesia concreta. Só fiz uma:
Poesia concreta Poesia concre Poesia com Poesia Poe Po Pô, aí
Não fez muito sucesso. Ninguém entendeu, esse bando de insensíveis. Nem a referência a Edgard Allan Poe, no meio, eles pescaram. Um dia talvez eu tente musicar essa poesia e aí a coisa pode dar certo – quem sabe no próximo Carnaval de Salvador.
Acho que poesia é um dom. Isso, de enxergar poesia nas pequenas coisas da vida não é pra mim. Sou míope e já quase não enxergo as pequenas coisas, que dirá a poesia nelas.
Quando eu vejo uma pedra portuguesa solta no calçadão, por exemplo, eu não vejo um espírito livre, desgarrado, solto da multidão ou coisa assim. Eu só vejo alguém tropeçando nela e se estatelando no chão. Em geral, eu mesmo. Já falei que sou míope? Fonte: texto publicado no blogue Vida mais ou menos e republicado aqui com o devido consentimento do autor, a quem agradeço pela cortesia.
Eu não sou, minha Nise, pegureiro, que viva de guardar alheio gado; nem sou pastor grosseiro, dos frios gelos e do sol queimado, que veste as pardas lãs do seu cordeiro. Graças, ó Nise bela, graças à minha estrela!
A Cresso não igualo no tesouro; mas deu-me a sorte com que honrado viva. Não cinjo coroa d’ouro; mas povos mando, e na testa altiva verdeja a coroa do sagrado louro. Graças, ó Nise bela, graças à minha estrela!
Maldito seja aquele, que só trata de contar, escondido, a vil riqueza, que, cego, se arrebata em buscar nos avós a vã nobreza, com que aos mais homens, seus iguais, abata. Graças, ó Nise bela, graças à minha estrela!
As fortunas, que em torno de mim vejo, por falsos bens, que enganam, não reputo; mas antes mais desejo: não para me voltar soberbo em bruto, por ver-me grande, quando a mão te beijo. Graças, ó Nise bela, graças à minha estrela!
Pela ninfa, que jaz vertida em louro, o grande deus Apolo não delira? Jove, mudado em touro e já mudado em velha não suspira? Seguir aos deuses nunca foi desdouro. Graças, ó Nise bela, graças à minha estrela!
Pretendam Anibais honrar a História, e cinjam com a mão, de sangue cheia, os louros da vitória; eu revolvo os teus dons na minha idéia: só dons que vêm do céu são minha glória. Graças, ó Nise bela, graças à minha estrela! Fonte: Gonzaga, T. A. 2000. Tomás Antônio Gonzaga, 4a edição RJ, Agir. Poema originalmente publicado em 1812.
A erosão da autoridade paterna e a delegação da disciplina a outras agências criaram um fosso ainda maior entre a disciplina e a afeição na família norte-americana – um resultado semelhante àquele deliberadamente criado pelo kibbutz israelense e por outras experiências de vida comunal. No kibbutz, segundo seus admiradores, a criança só vê os pais em cenários “afetivos”, ao passo que o treinamento higiênico e outras formas de disciplina são atribuídos a agências socializadas de educação infantil. Este arranjo supostamente poupa à família os conflitos que emergem quando as mesmas pessoas exercitam o amor e a disciplina. [...]
Estudos recentes sobre a juventude norte-americana mostram o quanto a prática se conforma estritamente a este ideal, ao menos superficialmente. Repetidamente, os jovens asseguram aos entrevistadores que as relações com seus pais são desprovidas de tensões, que suas famílias são “anormalmente normais” e que mesmo o frio distanciamento de seus pais não lhes provoca qualquer ressentimento. Entretanto, o aumento do suicídio entre os estudantes, da dependência de drogas e da impotência imediatamente coloca sob suspeita este quadro agradável. [...]
Na superfície, a juventude americana não parece experimentar uma grande fixação sexual por qualquer um dos pais; seus sonhos e fantasias, porém, trazem à luz sentimentos de raiva ou desejo que podem ser remetidos às primeiras fases da infância. [...]
A cultura popular manifesta a mesma cisão, tão pronunciada nas entrevistas psiquiátricas, entre imagens conflitantes da paternidade, entre a tranqüila superfície emocional da vida familiar e a raiva subjacente a ela. Filmes, quadrinhos e romances populares – particularmente os muitos romances de revolta adolescente que seguem o padrão de Catcher in the rye (O apanhador no campo de centeio), de J. D. Salinger – ridicularizam o pai “manifesto”, e a autoridade em geral, ao mesmo tempo que descrevem figuras paternas “latentes” com traços sinistros, agressivos, e caracterizadas como absolutamente inescrupulosas na perseguição que movem ao herói ou heroína. [...]
[...] Mas as coisas afinal de contas não são tão simples – mesmo em fantasias populares que não se destacam por sua complexidade emocional e profundidade moral. O mundo noturno do melodrama, do mistério, do crime e da intriga – que se alterna com a comédia de situação familiar como cenário da maior parte das obras de “entretenimento” popular – projeta na tira de quadrinhos ou na tela da televisão um mundo imaginário sombrio, onde as emoções mais profundas assomam à superfície. O melodrama policial traz à semiconsciência uma imagem paterna sinistra, enterrada mas não esquecida, sob o disfarce de um criminoso, de um “senhor do submundo” ou de um oficial de polícia que comete crimes em nome da justiça. Em The Godfather (O poderoso chefão), a identificação do pai ao chefão torna-se inconfundível; mas, de forma atenuada, ela sempre foi responsável pela excitação de que depende o thriller popular para seduzir um público de massa. [...] Fonte: Lasch, C. 1991 [1977]. Refúgio num mundo sem coração. RJ, Paz & Terra.
Nesta terça-feira, o Poesia contra a guerra completou oito meses no ar. Ao final do expediente de ontem (11/6), o contador instalado no blogue indicava que 8.521 visitas já haviam sido registradas.
Desde o balanço mensal anterior, “Sete meses depois...”, foram cerca de 65,6 visitas/dia. Nesse período, um novo recorde positivo de visitação foi alcançado: 104 visitantes únicos, em 30/5.
Ao longo do último mês, foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Alexandre O’Neill, Chet Powers, Francisco Marques, George Gamow, H. F. Peters, Harold Bloom, Lynn Margulis, Nelson Ângelo e Paulo Mendes Campos. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Giorgio de Chirico, Hieronymus Bosch, Kazimir Malevich, Lucian Freud, Peter Paul Rubens e Piet Mondrian.
[Prólogo] A todas vós que já fostes ou que sois amadas como um ícone guardado na gruta da alma qual uma copa de vinho à mesa de um banquete ergo meu crânio repleto de versos.
Freqüentemente me indago: talvez fosse melhor dar à minha vida o ponto final de um balaço. Todavia hoje dou meu concerto de despedida.
Memória! Junta na sala do cérebro as fileiras das inumeráveis bem-amadas. Derrama o riso em todos os olhos! Que de passadas núpcias a noite se paramente! Derrama alegria em todos os corpos! Que ninguém possa esquecer esta noite. Hoje tocarei a flauta de minha própria coluna vertebral.
1. Meu passo esmaga ruas e verstas. Que fazer, com o inferno no peito? Que Hoffmann celestial te pôde inventar, maldita? Alegria tempestuosa invade as ruas. A festa transborda de gente feliz.
Eu medito. Os pensamentos, coágulos de sangue, enfermos, ardendo, porejam de meu crânio. Eu, criador de tudo que é festa, não tenho com quem ir à festa. Agora mesmo irei atirar-me de cabeça no empedrado da avenida Nevski. Eis aí. Acabo de blasfemar. Por toda a parte andei dizendo que Deus não existe e Deus, de tórridas profundezas, fê-la sair, aquela diante de quem a montanha se perturba e treme, e me ordenou: Ama-a!
Deus ficou contente. No fundo do abismo que há sob o céu um homem atormentado como um selvagem definha. Deus esfrega as mãos. A si mesmo diz: Hás de ver, Vladímir! E ainda, ainda lhe ocorre, para que ninguém possa adivinhar quem és, a invenção de te dar um verdadeiro marido e de pôr sobre o piano música humana. Se, de repente, assomasse à porta de teu quarto, faria o sinal-da-cruz sobre as cobertas – eu sei sentir-se-ia um cheiro de lã chamuscada, fumaça sulfurosa da carne do diabo.
Em vez disso me vou horrorizado de que te tenham levado para te amar. Entro pela madrugada talhando gritos em versos ourives já quase louco. Ou então: a jogar cartas! De vinho encher a goela do coração resseco de gemer. Não me fazes falta! Não quero! Dá tudo no mesmo. Sei que me despedaço.
Se é verdade que tu existes, Senhor, Senhor Deus, se és tu que teces o manto das estrelas, se este sofrimento cada dia maior, se este martírio por ti me foi enviado, Senhor, põe-me então as cadeias de condenado. Aguarda minha visita. Serei pontual. Não me atrasarei nem um só dia. Escuta, Supremo Inquisidor.
Lábios cerrados, nem um grito soltará minha boca mordida até sangrar. Amarra-me a um cometa, como à cauda de um cavalo e chicoteia! Que meu corpo se estraçalhe nos dentes das estrelas. Ou então: quando minh’alma migratória franzindo o cenho carrancudo estiver diante de teu tribunal, atira a Via-Láctea, faz dela uma forca e dependura-me se quiseres, qual um criminoso. Faze o que quiseres. Preferes me esquartejar? Eu mesmo te lavarei as mãos, a ti que és justo. Mas – ouves? – afasta de mim aquela maldita, aquela que tu fizeste minha amada!
Meu passo esmaga ruas e verstas. Que fazer, com o inferno no peito? Que Hoffmann celestial te pôde inventar, maldita! Fonte: Maiakóvski. 2006. Vida e poesia. SP, Martin Claret. O poema consta de um Prólogo e três partes e foi originalmente publicado em 1915; o trecho acima corresponde ao Prólogo mais a Parte I. Após o título, ostenta a indicação “Dedicado a Lila Brik”.
Em 1937 morreu na cidade universitária alemã de Göttingen uma mulher notável. Tinha 76 anos e era viúva do professor Andreas, sendo porém muito mais conhecida pelo nome de solteira: Lou Salomé. A casa onde morreu está precariamente empoleirada nas íngremes encostas do Hainberg, a cavaleiro da cidade. Da sacada de seu gabinete de trabalho, Lou tinha uma vista magnífica do amplo vale do rio Leine, lá [embaixo], e dos montes cobertos de bosques que se estendiam pelos horizontes ocidental e meridional. Por mais de 30 anos, ela compartilhara essa casa – mas não o leito conjugal – com o marido, e por mais de 30 anos olhou lá de cima para Göttingen – “famosa pela sua universidade e suas salsichas” – com cordial indiferença. Ressentidos com a distância em que ela se mantinha, e sem saber o que pensar de uma esposa de professor que não participava da vida social da cidade ou da universidade, os bons burgueses de Göttingen espalharam todos os tipos de boatos a respeito dela. Suas mulheres, sabendo que quando mais jovem Lou freqüentemente viajava em companhia de outros homens que não seu marido, chamaram-na “a Feiticeira de Hainberg”.
Não se incomodaram muito, e provavelmente também não se surpreenderam muito, quando, poucos dias após a morte de Lou, um caminhão da polícia, supervisionado por um oficial da Gestapo, subiu ruidosamente a Hersberger Landstrasse, parou em frente à casa recentemente desocupada e carregou toda a biblioteca de Lou, jogando-a no porão da Prefeitura. A feiticeira estava morta, mas a caça às feiticeiras havia começado. [...]
Lou foi escritora. Seus livros sobre Nietzsche e Ibsen, seus romances, contos e ensaios deram-lhe fama. Na década de 1890, seu nome surgia ao lado de escritoras alemães bem-conhecidas, como Ricarda Huch e Marie von Ebner-Eschenbach. Mas nunca considerou a literatura como seu modo principal de expressão. Queria “descobrir a força íntima que domina o universo e dirige seu curso”, queria conhecê-la, experimentá-la, vivê-la.
Gostava da companhia de homens brilhantes e tinha um instinto infalível para descobri-los. Conheceu Wagner e Tolstoi, Buber e Hauptmann, Strindberg e Wederkind, Rilke e Freud. Seus detratores dizam que colecionava homens famosos como outros colecionavam quadros, para pendurá-los numa galeria particular. Mas como esses detratores eram, em sua maioria, mulheres que a temiam como rival, a crítica talvez fosse injusta. A maior parte das amizades de Lou teve como base a atração mútua, pois, além de ser uma mulher muito inteligente, era muito bela também. [...] Como disse um de seus admiradores: “Quando Lou se apaixona por um homem, nove meses depois ele dá à luz um livro”. [...] Fonte: Peters, H. F. 1986 [1962]. Lou: minha irmã, minha esposa. RJ, Jorge Zahar.
o que eu vejo passa através de mim quase fica atrás de mim
o que eu vejo – a montanha por exemplo banhada de sol – me ocupa e sou então apenas essa rude pedra iluminada ou quase se não fora saber que a vejo. Fonte: Gullar, F. 1991 [1980]. Toda poesia, 5a edição. RJ, José Olympio.
Na manhã desta segunda-feira, 4/6, o Poesia contra a guerra superou a marca das oito mil visitas. Do balanço anterior, “Mais de sete mil visitas”, em 21/5, até o fim do expediente de ontem (3/6) ocorreram em média cerca de 70,5 visitas/dia. Temos agora também um novo recorde positivo de visitantes únicos em um só dia: 104, registrado em 30/5.
– O meu vôo é simples direção. Ao decolar já sei de cor onde pousar. Abraco a terra e beijo o ar.
– O meu vôo é simples voar. Só sei de cor borboletar. Beijo a terra e abraço o ar. Fonte: edição No. 172 (setembro de 2006) da revista Ciência Hoje das Crianças.
Os domingos de Lisboa são domingos Terríveis de passar – e eu que o diga! De manhã vais à missa a S. Domingos E à tarde apanhamos alguns pingos De chuva ou coçamos a barriga.
As palavras cruzadas, o cinema ou a apa, E o dia fecha-se com um último arroto. Mais uma hora ou duas e a noite está Passada, e agarrada a mim como uma lapa, Tu levas-me p’ra a cama, onde chego já morto.
E então começam as tuas exigências, as piores! Quer’s por força que eu siga os teus caprichos! Que diabo! Nem de nós mesmos seremos já senhores? Estaremos como o ouro nas casas de penhores Ou no Jardim Zoológico, irracionais, os bichos? ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Mas serás tu a minha “querida esposa”, Aquela que se me ofereceu menina? Oh! Guarda os teus beijos de aranha venenosa! Fecha-me esse olho branco que me goza E deixa-me sonhar como um prédio em ruína!... Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1958.
A arquitetura como construir portas, de abrir; ou como construir o aberto; construir, não como ilhar e prender, nem construir como fechar secretos; construir portas abertas, em portas; casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem (tudo se sanearia desde casas abertas) portas por-onde, jamais portas-contra; por onde, livres: ar luz razão certa.
2. Até que, tantos livres o amedrontando, renegou dar a viver no claro e aberto. Onde vãos de abrir, ele foi amurando opacos de fechar; onde vidro, concreto; até refechar o homem: na capela útero, com confortos de matriz, outra vez feto. Fonte: Melo Neto, J. C. 1994. Obra completa: volume único. RJ, Nova Aguilar. Poema originalmente publicado em 1966.