30 agosto 2018

De mãe


O cuidado de minha poesia
Aprendi foi de mãe
mulher de por reparo nas coisas
e de assuntar a vida.

A brandura de minha fala
na violência de meus ditos
ganhei de mãe
mulher prenhe de dizeres
fecundados na boca do mundo.

Foi de mãe todo o meu tesouro
veio dela todo o meu ganho
mulher sapiência, Yabá,
do fogo tirava água
do pranto criava consolo.

Foi de mãe esse meio riso
dado para esconder
alegria inteira
e essa fé desconfiada,
pois, quando se anda descalço
cada dedo olha a estrada.

Foi mãe que me descegou
para os cantos milagreiros da vida
apontando-me o fogo disfarçado
em cinzas e a agulha do
tempo movendo no palheiro.

Foi mãe que me fez sentir
as flores amassadas
debaixo das pedras
os corpos vazios
rente às calçadas
e me ensinou,
insisto, foi ela
a fazer da palavra
artifício
arte e ofício
do meu canto
da minha fala.

Fonte (26 dos 37 versos): Pereira, E. A., org. 2010. Um tigre na floresta de signos. BH, Maza Edições. Poema publicado em 1998.

28 agosto 2018

Mulher sentada com um lenço vermelho


Anna Elizabeth Klumpke (1856-1942). Seated woman with a red kerchief. 1886.

Fonte da foto: Wikipedia.

26 agosto 2018

Plantas C4 e CAM: Por que tão tarde?

Katherine J. Willis & Jennifer C. McElwain

As plantas C3, ao que parece, surgiram no Siluriano, há cerca de 420 milhões de anos (MAA). As plantas C4 surgiram bem depois, talvez em meados do Mioceno (16 MAA), com uma rápida expansão global no final daquele período, há uns 7 MAA. As plantas CAM, por sua vez, teriam surgido em um período intermediário, provavelmente no Cretáceo (130 MAA). A evolução relativamente tardia das C4, e possivelmente também das plantas CAM, quando comparada com a evolução das C3, é ainda motivo de muita discussão e pesquisa. Uma possível ligação tem sido estabelecida entre a capacidade de plantas C4 e CAM prosperarem em regiões de climas quentes e secos com as mudanças climáticas ocorridas ao longo da história do planeta. O Mioceno foi um período particularmente quente e árido, embora padrões climáticos semelhantes tenham ocorrido em outros períodos. No entanto, uma particularidade do Mioceno, aliada ao clima quente e árido, foram os seus níveis relativamente baixos de CO2 atmosférico. Sob condições de temperatura elevada e baixa disponibilidade de CO2, plantas C4 revelam-se fotossinteticamente mais eficientes do que plantas C3, tornando-se assim competitivamente superiores. Alguns autores têm sugerido que a combinação entre um clima quente e seco com os baixos níveis de dióxido de carbono atmosférico teria favorecido a rápida expansão global das plantas C4 durante o Mioceno.

Fonte: Willis, K. J. & McElwain, J. C. 2002. The evolution of plantsNY, OUP. (Tradução e adaptação: Felipe A. P. L. Costa.)

24 agosto 2018

Sem adulação servil

Otto Jahn

Nós não temos meios de averiguar o valor do que Mozart recebia por suas apresentações em casas particulares; de modo geral, no entanto, a aristocracia estava acostumada a premiar artistas notáveis segundo seus méritos, e a posição excepcional da nobreza vienense permitia que tais artistas aceitassem sua liberalidade, sem perda de dignidade; ainda mais por ser ela baseada em estima verdadeira. O comportamento amistoso de pessoas em altas posições era muito apreciado pelos artistas; e nem faltavam uns poucos que procurassem merecê-lo por meio de servil adulação. De qualquer pecha desse tipo, Mozart sempre ficou inteiramente livre; não só não era ele acorrentado pelas formalidades das distinções de classe, como se comportava em sociedade com toda a independência de um homem que se distinguia, sem jamais recorrer aos abusos muitas vezes permitidos aos homens de gênio. A etiqueta da hierarquia social não era obstáculo para a sua intimidade com o príncipe Karl Lichnowsky; e outro de seus verdadeiros amigos era o conde August Hatzfeld, que era um violinista de primeira qualidade e tocava com Mozart nos quartetos deste último.

Fonte: Solman, J. 1991. Mozartiana: Dois séculos de notas, citações e anedotas sobre Wolfgang Amadeus Mozart. RJ, Nova Fronteira. Comentário publicado em livro em 1856.

22 agosto 2018

De quantas cousas eno mundo son

Pai Gomes Charinho

   De quantas cousas eno mundo son
non vej(o) eu bem, qual poden semelhar
al rei de Castela e de Leon
se [non] ũa qual vus direi: o mar!
O mar semelha muit’ aqueste rei;
e d’ aqui en deante vos direi
en quaes cousas, segundo razon:

   O mar dá muit’ e creede que non
se pod’ o mundo sen el governar,
e pode muit’ e á tal coraçon
que o non pode ren apoderar.
Desi ar é temudo, que non sei
que[n]-no non tema; e contar-vus-ei
ainda mais, e julgade-m’ enton.

   Eno mar cabe quant’ i quer caber;
e mantén muitos; e outros i á
que x’ ar quebranta, e que faz morrer
enxerdados; e outros á que dá
grandes herdades e muit’ outro ben.
E tod’ esto que vus conto, aven
al rei... se o souberdes conhecer.

   E da mansedume [vos] quero dizer
do mar: nom á cont’ e nunca será
bravo nen sanhudo, se lh’ o fazer
outro non fezer’; e sofrer-vus-á
toda’-las cousas; mais s’ é en desden,
ou per ventura algun louco ten,
con gran tormenta o fará morrer.

   Estas manhas, segundo [é] meu sen,
que o mar á, á el rei. – E por én
se semelhan, que[n]-no ben entender.

Fonte: Vasconcelos, C. M. 2004 [1904]. Glosas marginais ao cancioneiro medieval português de Carolina Michaëlis de Vasconcelos. Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis. Cantiga datada da segunda metade do século 13.

20 agosto 2018

Hino da manhã


Tu, casta e alegre luz da madrugada,
Sobe, cresce no céu, pura e vibrante,
E enche de força o coração triunfante
Dos que ainda esperam, luz imaculada!

Mas a mim pões-me tu tristeza imensa
No desolado coração. Mais quero
A noite negra, irmã do desespero,
A noite solitária, imóvel, densa,

O vácuo mudo, onde astro não palpita,
Nem ave canta, nem sussurra o vento,
E adormece o próprio pensamento,
Do que a luz matinal... a luz bendita!

Porque a noite é a imagem do Não Ser,
Imagem do repouso inalterável
E do esquecimento inviolável,
Que anseia o mundo, farto de sofrer...

Porque nas trevas sonda, fixo e absorto,
O nada universal o pensamento,
E despreza o viver e o seu tormento,
E olvida, como quem está já morto...

E, interrogando intrépido o Destino,
Como réu o renega e o condena,
E virando-se, fita em paz serena
O vácuo augusto, plácido e divino...

Porque a noite é a imagem da Verdade,
Que está além das cousas transitórias,
Das paixões e das formas ilusórias,
Onde somente há dor e falsidade...

Mas tu, radiante luz, luz gloriosa,
De que és símbolo tu? do eterno engano,
Que envolve o mundo e o coração humano
Em rede de mil malhas, misteriosa!

Símbolo, sim, da universal traição,
D’uma promessa sempre renovada
E sempre e eternamente perjurada,
Tu, mãe da Vida e mãe da Ilusão...

Outros estendam para ti as mãos,
Suplicantes, com fé, com esperança...
Ponham outros seu bem, sua confiança
Nas promessas e a luz dos dias vãos...

Eu não! Ao ver-te, penso: Que agonia
E que tortura ainda não provada
Hoje me ensinará esta alvorada?
E digo: Porque nasce mais um dia?

Antes tu nunca fosses, luz formosa!
Antes nunca existisses! e o Universo
Ficasse inerte e eternamente imerso
Do possível na névoa duvidosa!

O que trazes ao mundo em cada aurora?
O sentimento só, só a consciência,
D’uma eterna, incurável impotência,
Do insaciável desejo, que o devora!

De que são feitos os mais belos dias?
De combates, de queixas, de terrores!
De que são feitos? de ilusões, de dores,
De misérias, de mágoas, de agonias!

O sol, inexorável semeador,
Sem jamais se cansar, percorre o espaço,
E em borbotões lhe jorram do regaço
As sementes inúmeras da Dor!

Oh! como cresce, sob a luz ardente,
A seara maldita! como treme
Sob os ventos da vida e como geme
N’um sussurro monótono e plangente!

E cresce e alastra, em ondas voluptuosas,
Em ondas de cruel fecundidade,
Com a força e a subtil tenacidade
Invencível das plantas venenosas!

De podridões antigas se alimenta,
Da antiga podridão do chão fatal...
Uma fragrância mórbida, mortal
Lhe ressuma da seiva peçonhenta...

E é esse aroma lânguido e profundo,
Feito de seduções vagas, magnéticas,
De ardor carnal e de atrações poéticas,
É esse aroma que envenena o mundo!

Como um clarim soando pelos montes,
A aurora acorda, plácida e inflexível,
As misérias da terra: e a hoste horrível,
Enchendo de clamor os horizontes.

Torva, cega, colérica, faminta,
Surge mais uma vez e arma-se à pressa
Para o bruto combate, que não cessa,
Onde é vencida sempre e nunca extinta!

Quantos erguem n’esta hora, com esforço,
Para a luz matinal as armas novas,
Pedindo a luta e as formidáveis provas,
Alegres e cruéis e sem remorso,

Que esta tarde há-de ver, no duro chão
Caídos e sangrentos, vomitando
Contra o céu, com o sangue miserando,
Uma extrema e impotente imprecação!

Quantos também, de pé, mas esquecidos,
Há-de a noite encontrar, sós e encostados
A algum marco, chorando aniquilados
As lágrimas caladas dos vencidos!

E por quê? para quê? Para que os chamas,
Serena luz, ó luz inexorável,
À vida incerta e à luta inexpiável,
Com as falsas visões, com que os inflamas?

Para serem o brinco d’um só dia
Na mão indiferente do Destino...
Clarão de fogo-fátuo repentino,
Cruzando entre o nascer e a agonia...

Para serem, no páramo enfadonho,
À luz de astros malignos e enganosos,
Como um bando de espectros lastimosos,
Como sombras correndo atrás d’um sonho...

Oh! não! luz gloriosa e triunfante!
Sacode embora o encanto e as seduções,
Sobre mim, do teu manto de ilusões:
A meus olhos, és triste e vacilante...

A meus olhos, és baça e lutuosa
E amarga ao coração, ó luz do dia,
Como tocha esquecida que alumia
Vagamente uma cripta monstruosa...

Surges em vão, e em vão, por toda a parte,
Me envolves, me penetras, com amor...
Causas-me espanto a mim, causas-me horror,
E não te posso amar – não quero amar-te!

Símbolo da Mentira universal,
Da aparência das cousas fugitivas,
Que esconde, nas moventas perspectivas,
Sob o eterno sorriso o eterno Mal;

Símbolo da Ilusão, que do infinito
Fez surgir o Universo, já marcado
Para a dor, para o mal, para o pecado,
Símbolo da existência, sê maldito!

Fonte: Quental, A. 2004. Melhores poemas. SP, Global. Poema publicado em livro em 1886.

19 agosto 2018

A cor do céu

Kenitiro Suguio & Uko Suzuki

Certamento ficaríamos muito assustados se a cor do céu, de um dia para outro, se tornasse preta, amarela ou verde. Onde quer que estejamos na superfície terrestre, a cor do céu – mesmo que em Tóquio ou em São Paulo ele esteja recoberto por gases poluentes –, será essencialmente azul. Entretanto, no Sistema Solar, encontramos corpos celestes cujo céu pode ser verde, amarelo ou até preto.

Pesquisas realizadas por sondas exploratórias em planetas mostram que o céu de Marte é marrom-avermelhado; em Vênus, o céu é amarelado; em Júpiter, é amarelo-acastanhado (hidrogênio, hélio e pouco metano); em Saturno, vai de castanho-escuro a azul-pálido (essencialmente hidrogênio e pouco hélio); e, em Netuno, o céu é azul escuro (sulfeto de hidrogênio).
[...]

Quando Yuri Gagárin, primeiro astronauta a orbitar a Terra, observou do espaço a nossa atmosfera, enfatizou a cor azul do céu. A Terra, vista de fora, apresenta-se azul, não apenas devido à espessa atmosfera, transparente e enriquecida de oxigênio, mas também pela existência do oceano profundo. O céu azul pode ser considerado uma ‘marca registrada’ do nosso planeta.

Fonte: Suguio, K. & Suzuki, U. 2010. A evolução geológica da Terra e a fragilidade da vida, 2ª ed. SP, Blücher.

17 agosto 2018

Lavrando a terra


Rosa [Marie-Rosalie] Bonheur (1822-1899). Labourage nivernais. 1849.

Fonte da foto: Wikipedia.

15 agosto 2018

Anjos & insetos. II. Alfred Russel Wallace


Flho de Thomas Vere Wallace e Mary Ann Greenell, Alfred Russel Wallace nasceu em Llanbadoc, vilarejo próximo à cidade de Usk, no sudeste do atual País de Gales, em 8/1/1823. Foi o penúltimo de nove irmãos: Elizabeth Martha (1808-1808), William (1809-1845), Elizabeth (1810-1832), Frances (1812-1893), Mary Anne (1814-1822), Emma (1816-1822), John (1818-1895), ele e Herbert Edward (1829-1851).

Até os cinco anos de idade, morou em Kensington Cottage (atual Kensington House), a casa onde nasceu, situada às margens do rio Usk e em cujos arredores teve os primeiros contatos com o mundo natural. Em 1828, a família foi para Hertford, terra natal da mãe, ao norte de Londres, onde ele começou a ter uma educação formal. Em 1835, a situação financeira da família sofreu um baque e, no início de 1837, ele teve de abandonar a escola, indo morar com seu irmão John, que já trabalhava como carpinteiro, em Londres.

Encontrando um parceiro

Em meados de 1837, foi trabalhar com o irmão mais velho, William, no condado de Bedfordshire, em um empreendimento envolvendo agrimensura. Em 1841, ele e o irmão foram para Neath, no País de Gales. Em razão do trabalho, cresceu o seu interesse por história natural, sobretudo botânica – queria identificar as plantas que via no campo. Passou a comprar livros de botânica e a colecionar espécimes. Dois anos depois, no entanto, os dois irmãos tiveram de se separar, pois os negócios não iam bem.

Em 1844, após algum tempo desempregado, Wallace foi aceito como professor em uma escola para crianças (Collegiate School), em Leicester, cidade de médio porte localizada a poucos quilômetros a nordeste de Londres. Foi lá que ele conheceu e se tornou amigo de Henry Walter Bates [1]. Os dois teriam se encontrado pela primeira vez no Instituto de Mecânica, um misto de escola técnica e centro cultural existente em várias cidades do Reino Unido, cuja biblioteca eles visitavam com bastante frequência.

No ano seguinte, porém, após a morte repentina de William, Wallace retornou a Neath, reassumindo as atividades como agrimensor. Ainda em 1845, leu Vestígios da história natural da criação (Anônimo 1844), livro cujos argumentos transformistas o impressionariam bastante [2]. Ele e Bates mantiveram contato e, a certa altura, começaram a arquitetar uma viagem conjunta a algum lugar “remoto e inexplorado”. Em 1847, tendo como referência os relatos do naturalista estadunidense William Henry Edwards (1822-1902), os dois escolheram como destino a cidade de Belém (Pará, na época) [3].

Em 26/4/1848, após alguns meses de preparação, os dois jovens naturalistas – Wallace e Bates estavam então com 25 e 23 anos, respectivamente – finalmente embarcaram. A viagem da Inglaterra (Liverpool) ao Brasil (Belém) durou um mês.

Nas palavras de Wallace (1979, p. 17; grafia original) [4]:

Foi na manhã do dia 26 de maio de 1848 que, depois de uma rápida viagem de 29 dias, tendo partido de Liverpool, ancoramos defronte à barra meridional do Amazonas e tivemos nossa primeira visão das terras sul-americanas. À tarde, veio um piloto a bordo, e, na manhã seguinte, navegamos rio acima com o vento de feição. Por cerca de 50 milhas não se podia distinguir se aquelas águas tranqüilas e descoloridas seriam do rio ou do oceano, pois não se enxergava a margem setentrional, enquanto que a meridional se achava a uma distância de 10 ou 12 milhas. Ancoramos novamente no dia 28, pela madrugada, e quando o sol nasceu num céu sem nuvens, divisamos a cidade do Pará [Belém], rodeada pela densa floresta. Destacavam-se, acima de todas, as copas das palmeiras e bananeiras. Nossos olhos alegravam-se duplamente com a bela visão dessas plantas em seu estado natural, elas que tantas vezes admiramos nas estufas de Kew e de Chatsworth. As canoas que passavam com sua variegada tripu-lação composta de negros e índios, os urubus que pairavam acima de nossas cabeças ou que caminhavam preguiçosamente pela praia, os ban-dos de andorinhas que pousavam sobre os telhados das igrejas e casas, tudo servia para ocupar nossa atenção. Por fim, vieram os funcionários da Alfândega e tivemos permissão de descer em terra.

Eles se estabeleceram nas proximidades de Belém. Viajaram juntos alguns meses. A partir de junho de 1849, aparentemente após uma desavença, passaram a viajar separados. Wallace passou a explorar uma região mais ao norte: subiu o rio Negro, chegando até a freguesia de São Gabriel (atual São Gabriel da Cachoeira), no noroeste do Amazonas; adentrou em território venezuelano, onde permaneceu algum tempo; regressou e, seguindo o curso do rio Uaupés, fez o caminho de volta até Belém e de lá até a Inglaterra. Bates subiu o rio Amazonas, indo até Santarém; explorou o rio Tapajós; retomou o curso do Amazonas e subiu o Solimões, indo até a Vila de Ega (atual Tefé), onde ficou por vários anos; foi até a foz do rio Javari, no sudoeste do Amazonas, já na divisa com o Peru; fez então o percurso de volta até Belém.

Wallace permaneceu na Amazônia até julho de 1852, enquanto Bates ficaria na região até junho de 1859 [5].

Resgate em alto-mar

O regresso de Wallace à Inglaterra quase se converteu em tragédia. Em 12/7/1852, ele embarcou no Helen, um brigue de 235 toneladas, com destino a Londres. A embarcação saiu de Belém transportando “cerca de 120 toneladas de borracha e diversas de cacau, colorau, piaçaba e óleo de copaíba” (Wallace 1979, p. 240). As primeiras três semanas transcorreram sem incidentes. Na manhã de 6 de agosto, porém, o brique pegou fogo e, em questão de horas, o incêndio se alastrou. A carga principal foi destruída, incluindo o óleo de copaíba, que serviu de combustível para alimentar as chamas. Wallace perdeu a bagagem (coleções, manuscritos etc.).

Segundo Wallace (1979, p. 240-5), o incêndio começou quando o Helen estava próximo às coordenadas 30° N e 52° W, a pouco mais de 1.100 km de distância das Bermudas, a massa de terra firme conhecida mais próxima. Utilizando os botes salva-vidas, a tripulação e os passageiros conseguiram se salvar; por fim, na tarde do dia 15, todos foram resgatados pelo Jordeson, brigue que havia saído de Cuba com destino a Londres. O resgate ocorreu próximo a 32° N e 60° W, a uns 300 km das Bermudas, justamente para onde os náufragos rumavam.

A viagem no Jordeson teve alguns percalços – além do aumento ines-perado no número de passageiros, condições meteorológicas adversas prolongaram a viagem bem além do previsto. Em 1º de outubro, a embarcação atracou em Deal, cidade portuária a sudeste de Londres, e Wallace pôde novamente colocar os pés em terra firme.

Biogeografia: a regionalização da vida

Wallace se converteu em um coletor profissional e colecionar espécimes (insetos, aves, mamíferos etc.) passou a ser o seu ganha-pão. Entre 1854 e 1862, esteve no sudeste asiático – Malásia Peninsular, Singapura, Sumatra, Java, Bornéu, Timor, Celebes, Molucas; além da Nova Guiné e diversas ilhas menores, já na região australiana. Diferentemente do que se passou em sua viagem ao Brasil, dessa vez não houve incidentes, tendo ele enviado à Inglaterra uma significativa coleção de história natural.

As viagens e o trabalho de campo deram a Wallace uma detalhada visão a respeito da distribuição geográfica das espécies. Passou a escrever sobre o assunto, a ponto de ser visto hoje como um dos criadores da biogeografia (ver Brown & Lomolino 2006). Organizou e apresentou suas ideias em três livros originais, O arquipélago malaio: A terra do orangotango e da ave-do-paraíso (Harper, 1869); A distribuição geográfica dos animais, em dois volumes (Harper, 1876); e Vida insular: Ou, O fenômeno e as causas das faunas e floras insulares (Macmillan, 1880).

No livro de 1876, ele propôs um sistema de classificação de acordo com o qual a fauna terrestre mundial estaria distribuída em seis grandes regiões: (i) região Australiana (incluindo Austrália, Nova Guiné e ilhas próximas); (ii) Etiópica (África, exceto a borda norte); (iii) Neártica (América do Norte, incluindo boa parte do México); (iv) Neotropical (América Central e do Sul); (v) Oriental (sul e sudeste da Ásia, incluindo Índia, Tailândia, Vietnã etc.); e (vi) Paleártica (Europa, borda mediterrânea da África e o restante da Ásia). Com alguns ajustes, o modelo continua de pé ainda hoje.

Coda

Hoje em dia, porém, o nome de Wallace é mais comumente associado à teoria da evolução por seleção natural, da qual ele foi um dos criadores. É compreensível; afinal, essa talvez seja a mais influente de todas as teorias científicas.

Em 1866, Wallace casou com Annie Mitten (1846-1914). O casal teve três filhos, Herbert Spencer (1867-1874), Violet Isabel (1869-1945) e William Greenell (1871-1951). Moraram em mais de uma dezena de endereços (Lester 2014), tanto em Londres como em outras localidades, nos condados de Essex, Surrey e Dorset. ARW faleceu em Dorset, para onde o casal havia se mudado em 1889 – primeiro para Parkstone (1889-1902), depois para Broadstone (1902-1913). Na ocasião, eles moravam em uma casa que havia sido idealizada e construída pelo próprio naturalista. Quando faleceu, aos 90 anos, Alfred Russel Wallace – cuja reputação, na época, não se restringia à sua fama como coautor da teoria da evolução por seleção natural – já havia assegurado um lugar próprio na galeria dos grandes personagens da história da ciência.

*

Notas

[1] Como no caso do artigo anterior, o título deste artigo faz alusão ao filme ‘Angels & insects’ (1995), de Phillip Haas, adaptado do romande ‘Morpho eugenia’ (1992), da escritora inglesa A. S. Byatt (assinatura literária de Antonia Susan Duffy [nascida em 1936]).
[2] O autor foi o geólogo e editor escocês Robert Chambers (1802-1871), mas sua identidade só foi revelada postumamente, na 12ª edição (1884). Desconheço versão em português do livro.
[3] O destino teria sido inspirado em Edwards (1847), mas há controvérsias a respeito do real objetivo da viagem (ver van Wyhe 2014).
Ao longo dos séculos 16 e 17, o Novo Mundo foi visitado por europeus de diferentes origens e propósitos (conquistadores, missionários, saqueadores). Naturalistas passaram a vir com alguma regularidade a partir do século 18, muitos dos quais estiveram no Brasil, incluindo (em ordem de nascimento): Georg Markgraf (1610-1648) e Willem Piso (1611-1678), coautores da Historia naturalis Brasiliae (1648), obra pioneira na descrição da flora e fauna brasileiras; Charles-Marie de La Condamine (1701-1774); Daniel Solander (1733-1782), colaborador de Carl von Linné (1707-1778); Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853); Johann Baptist von Spix (1781-1826) e Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), que trabalharam juntos durante anos. Martius foi um dos organizadores da Flora Brasiliensis, ainda hoje uma obra de referência importante. Ausência intrigante nessa lista é o nome do naturalista alemão Alexander von Humboldt (1769-1859), o ‘pai esquecido do ambientalismo’ (Wulf 2016), cuja obra inspirou gerações de naturalistas. Ele fez parte de uma expedição que percorreu as Américas (1799-1804), mas não foi autorizado a entrar em território brasileiro.
[4] Em 1939, a Companhia Editora Nacional publicou uma primeira versão em português. Temos, assim, duas versões, a de 1939, traduzida por Orlando Torres, e a de 1979, traduzida por Eugênio Amado.
[5] Quando Wallace e Bates chegaram ao país, a Amazônia brasileira correspondia a uma única unidade política, a província do Grão-Pará. (A província do Amazonas foi criada em 1850.)
Em 1849, o irmão caçula de ARW, Herbert Edward, veio ao Brasil, acompanhando o naturalista Richard Spruce (1817-1893). Vítima de febre amarela, Herbert faleceu em Belém, dois anos depois. Sobre a presença simultânea de Wallace, Bates e Spruce em terras brasileiras, v. Hemming (2015).

*

Referências citadas

+ Anônimo. 1844. Vestiges of the natural history of creation. Londres, J Churchill.
+ Brown, JH & Lomolino, MV. 2006 [1998]. Biogeografia, 2ª ed. Ribeirão Preto, Funpec.
+ Edwards, WH. 1847. A voyage up the river Amazon: Including a residence at Pará. Londres, J Murray.
+ Hemming, J. 2015. Naturalists in paradise: Wallace, Bates and Spruce in the AmazonLondres, Tames.
+ Lester, A. 2014. Homing in: Alfred Russel Wallace’s homes in Britain (1852-1913). The Linnean 30: 22-32.
+ Wallace, AR. 1979 [1889]. Viagens pelos rios Amazonas e Negro, 2ª ed. BH, Itatiaia & Edusp.
+ Wulf, A. 2016. A invenção da natureza: A vida e as descobertas de Alexander von HumboldtSP, Crítica.
+ van Wyhe, J. 2014. A delicate adjustment: Wallace and Bates on the Amazon and ‘the problem of origin of species’. Journal of the History of Biology 47: 637-59.

*

[Nota adicional: artigo extraído e adaptado do livro O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017); para informações adicionais a respeito da obra, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, ver aqui; para conhecer outros artigos e livros do autor, ver aqui.]

14 agosto 2018

O que restará da biologia do século 20?

Manfred Eigen

Vivemos em uma sociedade que se esquiva do risco. Chegará um momento em que, por esta razão, ela fechará as portas para a ciência e especialmente para a pesquisa básica. Mesmo agora não me surpreenderia ver um adesivo no vidro de trás de um carro com o dizer: “Pesquisa básica – não, muito obrigado!”, enquanto um gás cinza azulado emana do seu escapamento. O que alguns membros do movimento de proteção aos animais estão fazendo poder ser no mínimo rebaixado a esse nível. Os oponentes da energia nuclear estão felizes com a eletricidade que flui das tomadas de suas casas. Não podemos fazer nada de útil sem, simultaneamente, assumir riscos. Deixar de fazer qualquer coisa pode ser muito mais prejudicial [no] longo prazo. Precisamos aprender a pesar as probabilidades, e lemas como os do adesivo do carro não ajudam muito nesse sentido.
[...]

Ideologias não podem substituir a razão. Todos os grupos políticos que defendem a disciplina partidária deveriam dar-se conta disso. Eles, é claro, defendem ideais que têm um fundamento válido, chamem-se socialistas – quem não apoiaria uma consciência social? – ou partidos verdes – quem não gostaria de manter o ambiente saudável? – ou cristãos – quem desejaria um mundo sem compaixão ou caridade? Isto se aplica igualmente a todos aqueles que querem colocar a liberdade individual acima de tudo. Cada um desses motivos, elevado ao pedestal de doutrina, vai contra nosso bom senso, que, a propósito, envolve não apenas nosso intelecto mas também nosso sistema límbico, nossos sentimentos e emoções. Mesmo no futuro, não poderemos de maneira alguma delegar nossas decisões a um computador.

Um olhar de relance para o estado atual do mundo provavelmente nos deixará pessimistas. A primeira metade deste século confrontou-se com duas guerras terríveis. E que lições aprendemos? Nada irá mudar se não basearmos nossas decisões na razão, aceitando a humanidade como um imperativo moral. O futuro da humanidade não será decidido no nível genético. Precisamos de um sistema ético de ligação entre todas as pessoas. É aqui que a evolução, uma evolução do indivíduo para a humanidade, aguarda sua consumação.

Fonte: Eigen, M. 1997. In: Murphy, M. P. & O’Neill, L. A. J., orgs. “O que é vida?” 50 anos depois. SP, Editora da Unesp.

13 agosto 2018

Onze anos e dez meses no ar

F. Ponce de León

Ontem, 12/8, o Poesia contra a guerra completou 11 anos e dez meses no ar.

Desde o balanço anterior – ‘Onze anos e nove meses no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: A. R. Ammons, Charu Sudan Kasturi, Dámaso Alonso, Joan Brossa, Kori Bolivia, Michael Talbot, Orígenes Lessa e Paulo C. Abrantes. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Giacomo Grosso, Giuseppe Pellizza da Volpedo e Matteo Olivero.

12 agosto 2018

La victoria nueva

Dámaso Alonso

Ésta es la nueva escultura:

Pedestal, la tierra dura.
Ámbito, los cielos frágiles.

El viento, la forma pura.
Y el sueño, los paños ágiles.

Fonte: Carpeaux, O. M. 2011. História da literatura ocidental, vol. 4. Brasília, Senado Federal. Poema publicado em 1925.

10 agosto 2018

Nu


Giacomo Grosso (1860-1938). Nudo sdraiato. 1896.

Fonte da foto: Wikipedia.

08 agosto 2018

O Esperança Futebol Clube

Orígenes Lessa

Era o orgulho de Buritizal. Resumia-lhe a vida e as aspirações. Marcava o seu lugar entre as povoações e vilas da zona. E na vila, desde o garoto engatinhante aos mais velhos e respeitáveis personagens, toda a gente sentia o peito cheio de pensar no Esperança Futebol Clube.

Nasceu de um punhado de sonhadores, o Tartico, o Chiquinho da Nh’Ana, o Tuzzi, o Dantinho, numa tarde de maio. Até aquela época Buritizal era um lugar apagado, morto, sem repercussão. Ninguém o conhecia. E mesmo a gente da vila mal dava conta da sua existência, vegetando sonolenta ao sol bravo de verão e ao frio duro de junho, com os milharais em torno, os seus pés de café, o seu gado magro, e o seu sossegado cachimbado e modorrento.

Mas o Tartico, o melhor ‘centrefô’ de Buritizal, era um rapaz inquieto, cheio de ambições, Tinha orgulho em possuir o chute mais forte da terra e em ser o melhor distribuidor de jogo até então conhecido. Que direção! Que bicanca! E quando, todas as tardes, ia treinar na baixada com o seu sapatão de biqueira temida, caminhava como um triunfador, vendo os olhares das moças que o acompanhavam com uma ternura comprida e embasbacada.

Aos domingos havia jogo, quase sempre. Contra o Lírio F.C., também da vila, time do Negrão, ou contra os times das fazendas vizinhas. Tartico ainda não tinha clube. Tinha apenas os jogadores. Reuniam-se, faziam os seus desafios, e iam vencendo. Cada chute seu era um gol. E, depois, o Chiquinho, o Tuzzi, toda aquela ‘macacada’ jogava, de fato.

Foi quando Tartico resolveu organizar o clube. Discussões, aplausos, oposição. E dois domingos depois o Esperança empacotava o Lírio por 6 a 1. Um triunfo. Seguiam-se o Santa Cruz, o Perereca, de uma fazenda, e mais três ou quatro. Verdadeiras solapas. E o Esperança começou a ganhar nome. Tartico era o assombro do campo. Arrebatava os companheiros. Com o seu entusiasmo inabalável e a confiança firme na vitória, fazia de cada parceiro um herói.

As cidades vizinhas foram desafiadas. Cidades já importantes, com juiz de Direito e campos gramados, de arquibancada, eram levadas na sopa... Buritizal começava a ser discutido. Tinha já inimigos. E o Esperança tornava-se o campeão das redondezas...

Naturalmente, os adversários queixavam-se. As vitórias eram roubadas. O Esperança fazia gols à custa do apito, jogava com o juiz. Clube que ia a Buritizal acusava a população de atrocidades, de massacres, de perseguições. Mas, intimamente, todos se curvavam. Braço era braço...

Tartico era empreendedor. Conseguira preparar um campo decente, com arquibancada. Alcançara um auxílio da Câmara, interessara os fazendeiros e, depois de fundado o Esperança, até surgira um jornalzinho, como os jornais dos grandes centros, dedicado quase exclusivamente à reportagem futebolística, com os seus “mais uma estonteante vitória do Esperança F.C.”, “mais um glorioso marco na história da falange alvinegra”...

A vila era toda do clube.

– Vamo vê domingo...

– O Amparense? Coitado... Nem dá pra saída...

– Dizem que são campeão...

– Campeão uma chimarra! Pode sê campeão lá, aqui eu quero vê! Pensa que Buriti dá confiança?

– Ah! lá isso é. O Tartico leva tudo no salame...

– É capaz de entrá de ‘bola e tudo’...

– Isso é canja. Se alembra do Santa Cruz? Só o Chiquinho marcô três!

– E não é só, seu compadre! O gol do Dantinho não tem esse topetudo que vare! Em seis meses só comeu três bolas!

– E assim mesmo, uma foi de ‘ofessaide’...

– E teve uma de pênalti também.

– De uma coisa eu tô convencido: pra vencê o Esperança, só mesmo São Paulo!

Buritizal continuava a sonhar. Já não lhe bastava a glória de campeão da zona. Convencera-se da sua invencibilidade. E quase se desinteressava quando um time comum, sem grande passado e verdadeira fama, aparecia por lá.

– Num vale a pena trocê. Bastava o Tartico, a defesa e as duas extrema...

Tartico, realmente, era o grande homem. Era o ídolo da criançada, o enlevo dos velhos, e entrara de ‘bola e tudo’ em todos os corações de moça que havia em Buritizal. Muita morena, quando o via em campo, tinha a impressão de que o seu coraçãozinho era uma bola de meia que Tartico, acostumado à bola nº 5, nem queria chutar.

– Eta, Tartico!

– Aí, Tartico!

– Entra, Tartico!

Era a grita unânime. Desnecessária. Porque o Tartico, a muque ou não, furava mesmo o gol inimigo e já tinha varado, havia muito, o coração pulapulando daquela morenada bonita...

Na vila só havia um grupo dissonante, o do Negrão. Era o rival de Tartico. Não lhe perdoava ter lançado no esquecimento o Lírio, o clube tradicional. Quando o Lírio jogava, já quase ninguém aparecia. Uma ou outra cabocla. Seu Maneco, prefeito, nem ligava. E mesmo a molecada já não ia torcer.

Negrão moía a sua raiva em silêncio. Treinava o time furiosamente. Berrava com os companheiros. Ameaçava o goal-keeper.

– Tu nunca foi golquipa, seu porco!

E mesmo de noite, no enxergão primitivo, ficava chutando o sono, que o não vencia nunca, jogando em espírito. A bola não lhe saía da cabeça. Via-a de todos os lados. Ajeitava a coberta, fechava os olhos e, quando menos o esperava, lá recebia um passe imaginário ou via o Tartico salameando os beques e pondo o gol em perigo...

Aliás, era no silêncio da casa que o Negrão se vingava. Jogava e ganhava sempre. Bastava fechar os olhos para se ver no campo enfrentando o Esperança. O juiz dava saída. Negrão pegava a bola, driblava o Tartico, extremava para a direita, corria para a frente, esperava o passe, passava de cabeça para o meia-esquerda. Novo drible, bola em gol, 1 a 0!

Era sopa. Às vezes o Negrão precisava no fim do jogo fazer um abatimento no escore de quatro ou cinco pontos...

– Pra não dá muito na vista...

A grande volúpia de Negrão, quando sonhava, era poder irritar, pisar as torcedoras de Buritizal, todas favoráveis ao Tartico. Seu ideal era vencê-lo para as deixar com ódio, com raiva, despeitadas.

– Essas convencidas!

Mas não adiantava sonhar. Cada jogo era um desastre. O Esperança nem fazia força. Brincava... E, no fim, já nem havia torcida contrária.
Um dia, Tartico anunciou que mandara desafiar um grande clube de São Paulo. A notícia eletrizou Buritizal.

– Nossa Senhora!

Houve um arrepio de medo. Mas passageiro. Em pouco, Buritizal esperava impaciente, confiante, o dia da luta. Tartico lograra convencer os seus jogadores, toda a sua gente, de que a vitória seria uma brincadeira. Não havia ‘esse um’ que pudesse vencer o Esperança. Cadê! Bastava treinar um pedaço. Até aquela ocasião ninguém conseguira nem mesmo um simples empate...

– Num digo que a gente dê uma lavage – afirmava o prefeito. – Mas de uns 2 a 1 a gente dá...

– E eles que num brinque muito...

Chegou o dia. Buritizal estava em febre. Mais de mil pessoas da redondeza enchiam a vila. Parecia festa de igreja. Os botequins estavam ‘assim’ de povo... Tabuleiros de doce e guloseimas faziam fortuna. A Chica, a Tudinha, toda aquela caboclada seiúda tagarelava nervosa, o coraçãozinho agitado, os olhos muito acesos, lenço de cor, vestido de chita, assanhada, perguntando a Deus e a Nossa Senhora se a gente ganhava ou não...

– Será, meu Deus?

E um arrepio moreno percorria a pele de todas.

Seu vigário rezara, de graça, uma missa pela vitória. O prefeito prometera cerveja para quem quisesse, até cair... Uma professora do Grupo preparara um discurso que seria lido pela melhor aluna, depois do jogo. A rapaziada apostava, confiante, com os forasteiros, na vitória do clube. E, como as moças da terra, fazia três dias que a molecada de Buritizal não pregava olho, noite adentro.

– Mundinho, ocê já durmiu?

– Inda não. Pruquê?

– À toa... ocê acha que a gente ganha de muito?

– Sei não!

– De uns 5 a 0?

– Sei lá! Paulista joga pra burro! É capaz da gente ganhá só de uns 3 a 1...

– Quá! Mas o Tartico... se ele quisé...

E três horas antes do jogo não havia mais lugar. Alguns haviam amanhecido no campo. Falando, apostando, gritando.

Só um grupo ficava caladão, a um canto, o pessoal do Lírio. Negrâo gozava. Ele conseguira não se contagiar. Conhecia o jogo do Paulista. Não tinha ilusões. Sabia que a vitória era certa. E, com um sorriso incontido, viera vingar-se. Era a derrota, a queda, a desmoralização de Tartico. Sujeito convencido! Só faltava desafiar o ‘escreche’ do mundo...

E Negrão, como as morenas e como o molecório de Buritizal, passara insone as últimas noites, antegozando a cara que a Tudinha, a Chica, todas elas, teriam quando o Paulista ensopasse de uma vez a cambada garganta do Tartico.

– Entra!

– Chuta!

– Extrema!

Ia longe o primeiro tempo. Contra a expectativa da vila o Esperança perdia pela primeira vez. Após ano e meio de lutas o clube encontrava um adversário que, logo de entrada, lhe embrulhava a linha, dominava a defesa, e vazava, bonito, o gol de Dantinho.

A assistência gelara.

– Ah! Meu Deus!

E uma porção de bocas bonitas mordeu os lenços de cor, numa vontade enorme de chorar, enquanto os forasteiros jogavam o chapéu no ar pelo gol vingador de tantas humilhações.

Tartico não se abalou. Bola ao centro. Pá... pá... pá... E, com uma rapidez incrível, num assomo heroico, foi buscar, do outro lado, o tento do empate.

O Negrão, porém, não conseguira gozar como esperava. O resultado era o previsto, a solapa. Todas as morenas de Buritizal viam que o Tartico não era o incrível, o invencível herói que imaginavam. Mas desde que a vitória se declarara insofismável, quando vira o rival irremediavelmente vencido, com os olhos pisados e o coração batido de todas aquelas garotas que odiava, e para alegria dos torcedores de fora, Negrão começou a sentir-se mal.

No half-time a coisa fora ao extremo. Enquanto os players do Esperança caíam no chão, vencidos de fadiga, os outros, lépidos, descansados, ficavam no campo batendo bola, satisfeitos, irônicos, dirigindo gracejos, pondo olhares sem-vergonhas nas meninas da terra, com quem dizia que Buritizal era sopa...

O pessoal de um bairro vizinho, rindo com insolência, bebia, por conta das apostas. Havia graçolas pesadas. E trincou os dentes de ódio quando um deles ofereceu o lenço para enxugar as lágrimas da Chica e da Tudinha, as belezas de Buritizal, entre as quais ele e o Tartico, eternos rivais, viviam incertos, indecisos...

Ia começar o segundo tempo.

Gente de fora cantava, irritando para exasperar Buritizal, que ouvia humilhado.

É sopa!
É sopa!
É sopa! É sopa! É sopa!
Paulistanos!

A vitória já estava decidida. O Esperança perdera. Qual Tartico! Qual Dantinho! Eram leões morrendo. Heróicos, doidos, indomáveis. Mas era impossível. Todo Buritizal, cabisbaixo, o reconhecia. Morrera a grita amável das morenas. Os torcedores moços rasgavam o chapéu, davam murros no espaço…

E em meio àquele silêncio, imprevista, só a turma do Lírio, Negrão à frente, rouca, alucinada, não desanimava, gritando numa torcida maluca:

– Aí! Dantinho!

– Extrema, Chiquinho!

– Entra, Tartico!

Fonte: Mello, M. A., org. 2003. Nossas palavras. RJ, José Olympio. Conto publicado em livro em 1979.

06 agosto 2018

Concertos duplos

Michael Talbot

A ideia de um concerto duplo com dois solistas de mesmo peso é tão antiga quanto o próprio concerto. Os primeiros concertos duplos, escritos por volta do final do século 17, foram simplesmente concerti a quattro (concertos para cordas em quatro partes, com contínuo) onde, vez por outra, as duas partes de violino eram assinaladas com ‘solo’. Em geral essas duas partes solistas eram acompanhadas apenas pelo contínuo, reproduzindo desta forma a estrutura de três vozes, com duas vozes elevadas e um baixo, já bastante familiar desde a sonata em trio e o duo de câmara.

Havia três maneiras tradicionais de relacionar entre si duas partes solistas: podiam-se combinar em um contraponto, onde uma imitava a outra; podia-se fazê-las evoluir em cadeias de terças ou sextas (um artifício eufônico, mas às vezes muito fácil); ou uma das partes podia-se limitar ao papel de um ‘complemento’, fornecendo notas harmônicas entre a voz aguda e o baixo. Todos os três métodos continuaram a ser usados no concerto duplo, mas Vivaldi acrescentou dois novos modos de tratamento ao repertório. Um foi fazer os dois instrumentos tocarem um depois do outro, ao invés de simultaneamente, mais como uma aria a due do que como um autêntico dueto – estilo este exemplificado na abertura do Largo do concerto duplo para flautas, RV 533. O outro foi combinar uma melodia cantante em um dos instrumentos, com figurações rápidas e elaboradas no outro, de modo a que ambos os músicos demonstrassem, por meios diversos, sua técnica. Esse tipo de tratamento adequava-se melhor aos instrumentos de cordas, mas podemos ouvir um pouco dessa técnica no primeiro movimento do Concerto para oboé e fagote, RV 545. Uma virtude da escrita de Vivaldi é a mudança frequente na relação entre os instrumentos solistas, evitando que a música se torne muito previsível.

É provável que todos os concertos reunidos neste disco (talvez à exceção do concerto duplo para trompa) tenham sido compostos para o Ospedale della Pietà, a instituição veneziana para órfãos, célebre por seu coro e orquestra inteiramente femininos, e pelo bem estruturado sistema de ensino musical dispensado aos seus membros. Vivaldi esteve associado à Pietà em diversas funções entre 1703 e 1740, particularmente como professor de violino e como compositor e diretor de sua música instrumental. La Pietà ficou especialmente famosa por haver cultivado o naipe das madeiras, que incluía flauta-doce, oboé, faluta, charamela, clarineta e fagote, e instrumentos de cordas mais raros como o bandolim e a viola inglese. Quando dos serviços acompanhados de música, as intérpretes ficavam ocultas da assistência, como era costume nos conventos italianos, de modo que a entrada de um instrumento solista não habitual poderia ter o valor de uma surpresa suplementar.

Ao que tudo indica a trompa não era tocada na Pietà no período que Vivaldi lá conviveu, mas como instrumento de corte par excellence, ela deve ter estado à sua disposição durante sua estada em Mântua (1718-20), onde foi Diretor Musical do governador. As óperas que ele lá escreveu contém certamente importantes partes de trompa. Uma característica particularmente atraente do concerto RV 539 é seu Larghetto, à maneira de uma siciliana, onde os motivos de chamada da trompa dos movimentos externos dão lugar a uma forma agradavelmente cantante.

Fonte: contracapa do LP Vivaldi: 6 Double concertos (Phonogram, 1983), com a Academia de St. Martin-in-the-Fields, sob regência de Neville Marriner. Concertos incluídos: Lado A, RV 563, RV 539 e RV 532; Lado B, RV 533, RV 536 e RV 545.

04 agosto 2018

Todo poder aos núcleos!


Nos últimos dias, o anúncio do ‘acordo de cavalheiros’ entre a cúpula do PT e a do PSB revolveu parte da lama acumulada no fundo do lago do nosso universo político. Boa parte da militância petista (a maior preciosidade do partido) ficou revoltada, sobretudo a de Pernambuco: não querem abrir mão da candidatura de Marília Arraes, previamente aprovada em um encontro interno (outra preciosidade petista), em troca de uma ‘neutralidade’ do PSB nas eleições gerais de outubro. (Em termos imediatos, o PSB retiraria o nome do seu candidato da disputa em Minas Gerais.)

Acordos de cúpula podem até ser vistos como jogos – jogos de soma zero, jogos de soma negativa etc. Todavia, evocar o conceito de jogo nessas horas soa como artifício retórico. Melhor seria falar em luta. E luta depende de armas e exércitos: trabalhadores organizados (em sindicatos, associações de bairro etc.). Em termos organizacionais, a marca distintiva do PT eram os núcleos (algo que nenhum outro partido jamais teve ou quis ter), a partir dos quais as decisões eram (ou deveriam ser) tomadas. Mas os núcleos foram aparelhados ou simplesmente soterrados. (Não fossem as grandes pilastras, representadas aqui pelas entidades sindicais e populares, tipo CUT, MST, MTST etc., a casa toda já teria desmoronado.)

Com as bancadas parlamentares cada vez mais numerosas, os profissionais ganharam força, ocupando os postos-chave dentro do partido ou fazendo com que os seus protegidos os ocupassem. A base se enfraqueceu, o partido se burocratizou. (Vinte ou trinta anos atrás, seria inimaginável que a cúpula do PT fechasse os acordos que fecha hoje, seja pela natureza deles, seja pelo modo antidemocrático como o faz.) Pois bem, com a democracia interna enfraquecida, portas e janelas permaneceram abertas, à mercê de gatunos e gaiatos, sobretudo durante os anos recentes em que o vento mais soprou a favor – o segundo governo Lula (2007-2010), eu diria.

E os gaiatos vieram. Afinal, todo mundo queria entrar no barco que estava mudando (para melhor) a cara do país. Parlamentar velho de guerra trocar de partido, indo para o PT, virou moda. Foi o que fez o ex-senador Delcídio do Amaral. Muitos outros fizeram a mesmíssima coisa. Mero pragmatismo, o idioma corrente da política parlamentar. Resultado: o partido inchou, o barco ficou pesado. Mas o vento continuava soprando a favor, de sorte que foi relativamente fácil chegar até a outra margem do rio. (Cá entre nós, as coisas melhoraram tanto para os miseráveis que, em um dado momento, eu percebi que passar fome e frio estava se tornando uma missão impossível. Em outras palavras, ficou difícil cair e se machucar, pois havia colchão e rede de proteção por toda a parte. Um marco histórico, sem dúvida, mas nada muito difícil ou trabalhoso: bastou mudar a ordem das prioridades. Acabar com a fome não era impossível para Sarney ou FHC; eles tão somente não tinham interesse nisso.)

Não há dúvida de que alianças e acordos são necessários, ainda mais em um sistema partidário tão escandalosamente pulverizado como o nosso. Mas faz tempo que o PT dá sinais de que está sob o comando de alas mais à direita. (Ah, que falta faz um partido de massas de esquerda!) Quanto mais se acentua o viés à direita, menos se valoriza a autonomia e a organização popular; em compensação, mais se pensa em conchavos e acordos de gabinete. Não vou ficar aqui borrifando álcool em ferida exposta. Portanto, resumiria o meu comentário lembrando apenas o desastre que se abateu sobre Minas Gerais nos últimos anos. Estou me referindo aos dois governos de Aécio Neves.

Olhando de fora, eu diria o seguinte: a direção nacional do PT fixou o PSDB/SP como o inimigo número 1. Decidiu então explorar o acirramento das ‘contradições’ entre o PSDB de SP e o de MG. Por um instante, achando que o governador mineiro poderia ser um aliado, passou a poupá-lo. Nesse contexto, candidaturas próprias do partido em Minas Gerais foram abortadas ou boicotadas. O governador, por sua vez, endereçava loas ao governo federal. Minas Gerais era o paraíso. O negócio era centrar fogo no mal maior: o PSDB paulista, com Serra & todas as demais aberrações que por lá vem proliferando...

A política de boa vizinhança com o governador mineiro gerou o monstro que conhecemos: findas as eleições presidenciais de 2014, Aécio Neves, o paladino da justiça e dos bons costumes, passou a bradar contra a vitória da sua adversária. Virou um fantoche útil nas mãos de quem queria instalar a política de saques e destruição que estamos a viver. Estancar e reverter toda essa anarquia exigirá organização política. E isso é um trabalho demorado, anônimo, de formiguinhas.

‘Lula Livre’ continua e continuará unificando a militância, mas, diante dos últimos acontecimentos, as palavras de ordem hoje deveriam ser outras: ‘Todo poder aos núcleos!’ – lamento apenas que, em agosto de 2018, este lema expresse mais um desejo incontido do que uma possibilidade real.

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