Poesia Contra a Guerra
A história da humanidade se confunde com a história das guerras. Deveríamos lutar para que se confundisse apenas com a história da literatura.
31 agosto 2023
29 agosto 2023
O senhor recomendaria a psicanálise aos cientistas?
Neal Miller
[Evans: Olhando para trás, em que medida a sua antiga experiência em psicanálise afetou todo o seu pensamento? Em outras palavras, o senhor recomendaria a psicanálise aos cientistas?]
[Miller:] Bem, acho que foi uma experiência muito válida. Aprende-se bastante sobre nossas próprias motivações e sobre as motivações humanas em geral; ela dá um quadro mais amplo da psicologia a quem se expõe à sua técnica. De fato, penso que ela é muito mais valiosa deste ponto de vista do que como técnica terapêutica. É lamentável, na minha opinião, que pessoas normais não sejam estudadas detalhadamente como o são as pessoas anormais, mas é claro que elas não têm a mesma motivação para cooperar. Acho que a clínica em geral, tanto a psicanalítica como a neurológica, é para o comportamento humano o que a observação de campo é para o comportamento animal. Ela mostra o animal humano se debatendo com certas dificuldades que existem na sua vida natural e, consequentemente, isto oferece uma perspectiva.
Fonte: Evans, R. I. 1979 [1976]. Construtores da psicologia. SP, Summus & Edusp.
[Miller:] Bem, acho que foi uma experiência muito válida. Aprende-se bastante sobre nossas próprias motivações e sobre as motivações humanas em geral; ela dá um quadro mais amplo da psicologia a quem se expõe à sua técnica. De fato, penso que ela é muito mais valiosa deste ponto de vista do que como técnica terapêutica. É lamentável, na minha opinião, que pessoas normais não sejam estudadas detalhadamente como o são as pessoas anormais, mas é claro que elas não têm a mesma motivação para cooperar. Acho que a clínica em geral, tanto a psicanalítica como a neurológica, é para o comportamento humano o que a observação de campo é para o comportamento animal. Ela mostra o animal humano se debatendo com certas dificuldades que existem na sua vida natural e, consequentemente, isto oferece uma perspectiva.
Fonte: Evans, R. I. 1979 [1976]. Construtores da psicologia. SP, Summus & Edusp.
27 agosto 2023
Jantar em Alcabideche
João Miguel Fernandes Jorge
Estavam os meus amigos. E, todos, mais
ou menos bêbados. As mãos brincavam com as facas,
apertavam os copos entre os
dedos, espremiam limão sobre os peixes
grelhados. Os gestos, a alegria
do encontro tornara-os ternos e desajeitados.
Mais do que dirigindo-nos a nós próprios,
fazíamo-lo para uma presença imaginária,
a secreta corrente que cada um unia; e,
mais secretamente ainda, dois e três escondia.
Depois, não há como o álcool,
o vinho branco escolhido – que não fora
excelente – para fazer querer
ser o eu presente o verdadeiro eu;
e que, até então, sempre permanecera
escondido.
Os meus amigos falam, falam todos ao mesmo
tempo e não se entendem.
E quanto mais querem dizer mais abraços dão.
Riem e chegam mesmo a participar, felizes,
na união em cada um;
meio perdidos no seu sonho de representação
de si, não procuram mais do que provar, e
provar aos outros, uma única coisa: cada um
é o mais fiel naquele jantar,
Eu, quase sempre, permaneci alheio e
olhava-os, como vocês, leitores,
nos estão a olhar agora.
Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1985.
25 agosto 2023
O maior dos poetas
Otto Maria Carpeaux
Nenhum autor clássico alcançou jamais fama tão indiscutida. O nome de Homero tornou-se sinônimo de poeta. Essa glória é, em grande parte, o resultado de inúmeros esforços malogrados de imitá-lo. Será difícil enumerar as epopeias ‘modernas’ que se escreveram para rivalizar com Homero; e o fracasso manifesto de todos os imitadores fortaleceu a unanimidade de opinião: Homero é o maior dos poetas.
Fonte: Carpeaux, OM. 2011. História da literatura ocidental, vol. 1, 4ª ed. Brasília, Senado Federal.
23 agosto 2023
Que bobagem, crianças!
F. Ponce de León
1.
Uma feiticeira pernóstica, dona de um sorriso postiço, deixou uma cesta com 12 maçãs podres em um parquinho para crianças.
2.
Atraídas pelo cheiro, moscas grávidas e crianças mimadas logo acudiram ao centro do parque.
3.
As moscas estavam a procura de um sítio seguro onde pudessem depositar seus ovos. As crianças também estavam reagindo, mas não entendiam bem os motivos.
4.
Muitas crianças chegaram perto da cesta. O cheiro forte e azedo das maçãs, porém, logo as espantava.
Algumas chegaram a tocar na cesta. Uma ou outra até se atreveu a puxar a toalha colorida que cobria a cesta – queriam ver o que havia lá dentro!
5.
Algumas chegaram a tocar na cesta. Uma ou outra até se atreveu a puxar a toalha colorida que cobria a cesta – queriam ver o que havia lá dentro!
6.
Nenhuma criança, porém, teve coragem de pegar e examinar as maçãs com as suas próprias mãos.
7.
No fim do dia, todas elas foram embora sem nada fazer. (A não ser, claro, reclamar do mau cheiro.)
E a cesta ficou lá, no parquinho, apodrecendo. Cercada por uma nuvem ruidosa de moscas inebriadas. E felizes: a próxima geração de moscas já está dentro das maçãs.
8.
* * *
22 agosto 2023
Bananas e metal
Pedro Alexandrino Borges [dos Santos Fernandes] (1856-1942). Bananas e metal. s/d.
Fonte da foto: Wikipedia.
20 agosto 2023
Ninõs ciegos y sordos
Irenäus Eibl-Eibesfeldt
Los niños que han nacido ciegos y sordos crescen en una noche y un silencio eternos, y por ello representan experimentos de aislamiento de la Naturaleza. Les son negadas importantes experiencias. No pueden ver ni oír la sonrisa o el llanto de las demás personas. Si el concepto de la teoría del ambiente fuera correcto, estos ninõs deberían ser muy distintos a los niños normales, por ejemplo en lo que se refiere a su repertorio de expresiones mímicas. Pero nos és así. Estos niños ciegos y sordos de nascimiento también lloran cuando se dan un golpe. Rien enérgicamente con las típicas expresiones vocales rítmicas cuando se les hace cosquillas y sonríen cuando se les acaricia […]. Cuando están enfadados fruncen el ceño, vuelven la cabeza y patalean. Incluso se muerden la mano cuando están muy enojados […]. Una vez presenté repeditamente una tortuga a una niña ciega y sorda de nueve años; ésta reaccionó golpeando con la palma de la mano y mantuvo la mano en esta actitud de rechazo […].
From: Eibl-Eibesfeldt, I. 1976 [1972]. In: Gadamer, H-G & Vogler, P., orgs. Nueva antropología, v. 2. Barcelona, Omega.
18 agosto 2023
As formas da vida
Yves Bouligand & Émile Noël
[Noël] – O que diferencia as formas do inerte das formas do vivo?
[Bouligand] – Se nos mantemos no nível molecular, podemos dizer que as pesquisas, a partir do século XIX e no curso do século XX, gradativamente contribuíram para apagar uma fronteira genuína entre o inerte e o vivo. Contudo, resta um ponto importante, bem explicado por Pasteur: as moléculas da vida não são assimiláveis à sua imagem em um espelho. Elas são dissimétricas, ao passo que as moléculas do mundo mineral não apresentam essa propriedade. Tudo que os químicos fabricam com moléculas simétricas minerais continua simétrico. O mundo vivo, ao contrário, apresenta-se como um conjunto de moléculas fundamentalmente dissimétricas, particularmente os ácidos nucléicos. A molécula de DNA, normalmente, é uma hélice dupla e voltada para a direita e sua imagem, em um espelho, aparece como uma hélice dupla e voltada para a esquerda.
Fonte: Noël, E., org. 1996 [1994]. As ciências da forma hoje. Campinas, Papirus.
16 agosto 2023
Seleção perinatal
Melvin Konner
A calma e independência das mulheres Zhun/twa em relação à gravidez e ao parto é notável. Não há controle médico da gravidez ou do parto, e não há parteiras ou outras pessoas nativas que tradicionalmente cuidam dos nascimentos. A mulher é em grande parte independente. Quando as primeiras contrações uterinas começam, ela simplesmente deixa a vila sozinha ou acompanhada de uma ou mais mulheres. O parto ocorre no matagal próximo. Se o bebê estiver vivo, a mãe volta com ele par a vila.
Ela pode retomar imediatamente suas atividades normais ou descansar durante alguns dias dependendo do seu estado e disposição. Um período de repouso antes e após o parto não é habitual. O bebê só é colocado no seio depois que o colostro foi expelido, podendo ser amamentado por outra mulher lactante ou simplesmente esperar durante dois ou três dias até que sua mãe tenha leite.
Os Zhn/twa acreditam que o feto forma-se pela união do esperma e do sangue menstrual. Não mantêm relações sexuais durante a menstruação com o objetivo de evitar que a mulher engravide, além de acreditarem que relações sexuais durante este período podem ‘ser prejudiciais para o homem’. Além deste equívoco desastroso, dois métodos bem-sucedidos de controle populacional foram relatados pelos informantes Zhun/twa.
Fonte: Konner, M. J. 1981 [1972]. In: N. Blurton Jones, ed. Estudos etológicos do comportamento da criança. SP, Pioneira.
Fonte: Konner, M. J. 1981 [1972]. In: N. Blurton Jones, ed. Estudos etológicos do comportamento da criança. SP, Pioneira.
13 agosto 2023
As minhas asas
Almeida Garrett
Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.
– Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que m’as deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.
Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
– Veio a ambição, co’as grandezas,
Vinham para m’as cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.
Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.
Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
– Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.
Cegou-me essa luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!
– Tudo perdi n’essa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.
Fonte (v. 1-4): Cunha, C. 1976. Gramática do português contemporâneo, 6ª ed. BH, Editora Bernardo Álvares. Poema publicado em livro em 1853.
12 agosto 2023
202 meses no ar
F. Ponce de León
Neste sábado, 12/8, o Poesia Contra a Guerra completa 16 anos e dez meses no ar.
Desde o balanço anterior – ‘201 meses no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Albert Bandura, Gertrude M. Cox, Philippe Roqueplo e William G. Cochran. Além de material de autores que já haviam sido publicados antes.
Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes artistas: Anita Malfatti e George Romney.
10 agosto 2023
Imitação, identificação ou modelagem?
Albert Bandura
[Evans: Miller usou o termo imitação e Freud, identificação. Quando o senhor usa o termo modelagem, isto implica em alguma diferença. Poderia esclarecer estes termos que talvez estejam confusos para os iniciantes.]
[Bandura:] Imitação, na mente da maioria das pessoas, significa mimetismo da resposta – a duplicação exata do que o modelo faz. Este termo traz uma conotação muito limitada. A identificação usualmente implica numa incorporação indiscriminada dos modelos de comportamento. Emprego o termo modelagem porque os efeitos psicológicos da exposição aos modelos são muito mais amplos do que o simples mimetismo da resposta, contido no termo imitação; e as características definidoras da identificação são muito difusas, arbitrárias e empiricamente questionáveis, quer para esclarecer questões, quer para ajudar as pesquisas científicas. O efeito mais interessante da modelagem é o que chamo de ‘modelagem abstrata’. Pela observação de exemplos, as pessoas inferem regras gerais e princípios de comportamento, que lhes permitem ir além do que elas veem e ouvem.
Fonte: Evans, R. I. 1979 [1976]. Construtores da psicologia. SP, Summus & Edusp.
08 agosto 2023
Petróleo, picanha, cigarro ou cinema: O que de fato está a levar todos nós para o inferno?
1.
Soube ontem, 7/8, da morte do diretor de cinema estadunidense William [David] Friedkin (1935-2023). Dono de uma trajetória cinematográfica respeitável, ele dirigiu ao menos duas dezenas de filmes, incluindo Operação França (1971), premiadíssimo, e O Exorcista (1973), talvez um dos maiores sucessos de bilheteria da história do cinema estadunidense.
Inspirado em um livro homônimo de autoria de William Peter Blatty (1928-2017), que foi também o autor do roteiro, ‘O Exorcista’ é um filme e tanto. (Muito, muito acima da média dos filmes do gênero.) Tem lampejos de obra-prima.
2.
Ouvi falar do filme pouco depois do lançamento. Eu era um moleque e morava em Brasília. Em 1974, já morando em Juiz de Fora, li a sátira que apareceu na revista Mad. Mais ou menos na mesma época, fui apresentado ao álbum ‘Tubular Bells’, de Mike Oldfield (nascido em 1953) [1].
A música de Oldfield, a bem da verdade, aparece no filme de modo quase incidental. Assim de cabeça, eu me lembro de apenas uma cena (belíssima!) temperada pela música – Duas freiras estão a andar na calçada com seus hábitos esvoaçantes; a personagem de Ellen Burstyn (nascida em 1932), que está indo a pé para casa, passa em frente ao portão de um convento; curiosa, vê, para e tenta ouvir o que o personagem de Jason Miller (1939-2001) está a dizer a um colega (a cena pode ver vista aqui).
3.
Gosto de cinema, embora eu dificilmente assista a certos tipos de filmes (horror, terror, super-heróis etc.). O que ajuda a explicar por que eu só fui assistir ‘O Exorcista’ na primeira década deste século. (Tenho o DVD com a versão restaurada pelo diretor – ‘A versão que você nunca viu’, de 2000 – e já a revisitei algumas vezes.)
O elenco é primoroso – além de Burstyn e Miller, mencionados antes, lá estão Max von Sydow (1929-2020) e Lee J. Cobb (1911-1976), entre outros. Linda Blair (nascida em 1959), cuja carreira nunca saiu do chão, não chega a atrapalhar.
Paralelamente, ouso dizer ainda que o impacto e o sucesso do álbum ‘Tubular Bells’ aprisionaram a carreira de Oldfield em uma caixinha da qual ele jamais conseguiu escapulir. (O fenômeno é relativamente comum – digo: autores de obras-primas precoces tendem a incorrer nesse processo.)
4.
Outra coisa: Embora se trate de um filme de horror, a cena mais chocante de ‘O Exorcista’ nada tem a ver com efeitos especiais ou com algum tipo de pantomima. Estou a me referir aqui a uma passagem na qual a personagem de Ellen Burstyn está a conversar com um médico sobre os exames neurológicos da filha. A cena se passa no interior de um consultório médico, o que não impede o sujeito de sacar um cigarro, acendê-lo e dar as suas baforadas! (Duvido que alguém se lembre desse cigarro – ver a imagem que acompanha este artigo [2].)
5.
Pois é. Durante anos, a indústria do tabaco recrutou profissionais da área de saúde para usá-los como ‘argumentos’ em seus anúncios publicitários. O objetivo era duplamente mentiroso e, portanto, duplamente criminoso: (1) Incutir na mente do público a ideia de que o tabaco não é cancerígeno; e (2) Convencer a opinião pública de que o hábito de fumar, longe de ser prejudicial, pode ser benéfico à saúde humana (e.g., como um hábito relaxante).
Que não haja dúvidas: Para um ‘fumante profissional’, o hábito de fumar pode ocasionalmente ter algum efeito relaxante, mas ainda assim continuará a ser um hábito tremendamente prejudicial. Por quê? Basta dizer que a matéria-prima usada na fabricação de cigarros (um complexo de substâncias ao qual damos o nome de ‘tabaco’) é um material cancerígeno. E dos mais poderosos [3].
6.
Eis aí um dos maiores pesadelos – senão o maior – do mundo moderno: o uso da propaganda para manipular e controlar as massas. As grandes corporações, mais do que ninguém, sabem como conseguir o que querem. (Quando a manipulação não dá certo, a gente faz o que está sendo feito na Ucrânia ou na Palestina. Ou a gente faz o que foi feito na Coreia, no Vietnã, na Síria, no Iraque, no Irã etc.)
Como um ex-fumante (abandonei o hábito de vez em 1997), eu espero sinceramente que o desprezo que muitos de nós sentimos hoje pela indústria do tabaco (Philip Morris, Souza Cruz [atual BAT Brasil] etc.) não demore muito mais para alcançar também as corporações que estão a enfumaçar a atmosfera. Estou a pensar, em especial, nas petroleiras (Exxon, Shell, BP, Petrobras etc.) e no agronegócio (a indústria da carne, os grandes frigoríficos, os rebanhos gigantescos etc.).
7.
São essas indústrias que estão por trás da crise climática. São elas que de fato estão a levar todos nós para o inferno. Diante dessa turma, o demônio que dá chiliques no sucesso de bilheteria que foi o filme de Friedkin não passa de uma criança chata, mimada e malcriada.
*
Nota.
[1] Álbum de capa parecida é ‘Spiral’ (1977), do compositor grego Vangelis (1943-2022), mas este eu só fui descobrir na década de 1980. Lembro que, no início, eu confundia a autoria de ‘Tubular Bells’ com a de ‘Atom Heart Mother’ – achava que ambos seriam do Pink Floyd, banda a quem eu havia sido apresentado pouco antes, por conta do álbum ‘The Dark Side of The Moon’. Vale registrar que, ao contrário do que possa parecer, a música de Oldfield não foi composta para o filme de Friedkin. De resto, uma apresentação de ‘Tubular Bells’ (gravada em 1973) pode ser vista ou ouvida aqui.
[2] A cena pode ser vista aqui.
[3] Para um vídeo (com legendas) chamando a atenção para a origem do poder cancerígeno do cigarro, ver aqui.
* * *
06 agosto 2023
04 agosto 2023
A boba
Anita [Catarina] Malfatti (1889-1964). A boba. 1915-16.
Fonte da foto: Arte – Fonte de Conhecimento.
02 agosto 2023
Temas para uma redação: O mau cheiro dos rios, o lixo na praia e o capim rodoviário
Marinês Eiterer [*] & Felipe A. P. L. Costa [**].
RESUMO. – Contrariando o senso comum, capinas e outras intervenções realizadas de modo periódico e indiscriminado em áreas de vegetação herbácea (e.g., margens de rodovias ou lotes urbanos) são um desserviço. Na prática, essas intervenções apenas asseguram que a vegetação arbórea não irá se estabelecer no local.
*
1. MANCHETES RECORRENTES.
Entra ano, sai ano e as mesmas manchetes reaparecem na imprensa: ‘Moradores reclamam do mau cheiro do córrego que corta o bairro’, ‘Associação de moradores reivindica canalização de córrego’ e ‘Mato prospera em terreno baldio e surto de escorpiões assusta moradores’ – e assim por diante.
Termos como mau cheiro, canalização, mato e surto são recorrentes. Não há porque duvidar que essas coisas de fato preocupem ou atormentem a vida de muita gente. O que não significa dizer, porém, que as providências que eventualmente são adotadas (e.g., canalizar o córrego ou cortar o mato) sejam de fato soluções efetivas e duradouras. Pois não são.
Talvez fosse o caso de a gente parar e refletir um pouco: Afinal, qual é a origem desses problemas?
2. RIOS URBANOS: CONTAMINAÇÃO E MAU CHEIRO.
Muitas cidades brasileiras são uma versão contemporânea de aglomerados humanos que surgiram e prosperaram às margens de um corpo d’água, na maioria das vezes um rio. Não é um capricho nem fruto de um acidente.
Viver à beira de um rio foi uma escolha de nossos ancestrais. Há bons motivos para que eles tenham feito essa escolha. Em primeiro lugar, atende a algumas de nossas demandas mais fundamentais (e.g., acesso fácil a uma fonte de água). Em certos casos, também facilitava o transporte e o contato com aldeias ou cidades vizinhas. De resto, morar nas proximidades de um rio já foi tido como sinal de fartura e prosperidade.
Hoje em dia, no entanto, muitas cidades têm vergonha de seus rios, preferindo escondê-los. A razão para isso é quase sempre a mesma: transformamos esses corpos d’água em escoadouros de dejetos, restos e lixo em geral. O mau uso os converteu em esgotos a céu aberto. Foi assim no rio Tietê (São Paulo), no Capibaribe (Recife) e no Paraibuna (Juiz de Fora). Os rios que atravessam as cidades brasileiras se caracterizam hoje, quase sem exceção, pela água contaminada e pelo mau cheiro [1].
3. POR QUE REJEITAMOS SOLUÇÕES SIMPLES E BARATAS?
Com ou sem o peso da legislação, fato é que políticos, urbanistas e empresários da construção civil estão sempre a falar em grandes obras, incluindo, claro, a construção de estações de tratamento de esgoto. Infelizmente, porém, essas estações (a depender do tamanho) não são baratas. Muitas prefeituras simplesmente não têm como arcar sozinhas com os custos. O que não significa dizer que as prefeituras deveriam permanecer de braços cruzados. (Pois é exatamente assim que muitas delas estão.)
Veja: Há alternativas simples, efetivas e menos custosas, algumas das quais poderiam ser adotadas quase que imediatamente. Outras poderiam ser iniciadas agora, sinalizando e apontando para uma mudança de rumo. Por si só isso tem um impacto profundo na sociedade.
3.1. Estimular o tratamento local de esgoto.
No caso do esgotamento sanitário, por exemplo, uma alternativa (definitiva?) envolveria a captação e tratamento de esgoto na própria unidade domiciliar, procedimento cuja adoção poderia ser estimulada pelas prefeituras – e.g., promovendo a redução ou mesmo a suspensão de certos impostos para quem tratasse o seu próprio esgoto. (Algo mais ou menos parecido já se faz hoje com a captação de energia solar.)
Com isso, poderíamos entrar em um círculo virtuoso: zerar ou ao menos baixar a emissão de esgoto doméstico, favorecendo a restauração da vida aquática. O retorno da vida aquática e o restabelecimento de uma dinâmica ecológica local em pouco tempo levariam ao embelezamento da paisagem urbana. Áreas urbanas que hoje estão desvalorizadas ou em franca decadência poderiam ser revigoradas.
Em um cenário de recuperação seria possível, entre outras coisas, corrigir antigas e absurdas barbeiragens da nossa engenharia, como a canalização de córregos. (A reversão da canalização [ou descanalização] é uma iniciativa relativamente antiga – e muito bem-sucedida – em várias cidades da Europa. Com o acelerado agravamento da crise climática, aliás, as cidades brasileiras que mais sofrem com enchentes periódicas já deveriam estar trabalhando...)
4. ESCONDER O LIXO É UMA SOLUÇÃO?
Outro problema recorrente e bastante comum entre nós envolve o descarte de lixo em cursos d’água ou mesmo na praia [2], procedimentos que muitas vezes refletem a desinformação ou apenas o estado de espírito dos moradores. (350 anos de escravização deixaram muitas marcas na sociedade brasileira, incluindo a miopia e o desmazelo que tanto caracterizam a nossa elite econômica.)
Despejar o lixo doméstico a céu aberto equivale a dar um tiro no próprio pé. Para começo de conversa, cabe observar que parcela expressiva do lixo doméstico produzido nas cidades é constituída de refugos orgânicos. (É uma vergonha, mas é o temos no cardápio de hoje.) Para quem não se lembra das aulas de ecologia no ensino médio, não custa lembrar: Todo esse material orgânico serve de alimento e sustenta uma ampla e variada rede de consumidores urbanos, alguns dos quais dificilmente são bem-vindos na casa de alguém (e.g., moscas, baratas e ratos). Por sua vez, esses consumidores que se alimentam diretamente do material orgânico que nós descartamos, servem de alimento para animais de níveis tróficos superiores, como é o caso de escorpiões e serpentes, dois grupos de predadores carnívoros que se alimentam de baratas (os primeiros) e ratos (os últimos), ainda que a dieta deles inclua outros itens [3].
Vale a pena insistir: escorpiões e serpentes não aparecem em terrenos baldios por causa do lixo ou do ‘mato’ que ali prospera. Não. Eles estão ali por causa da presença de outros animais, muito mais numerosos e oportunistas: as suas presas. Estas, por sua vez, chegaram lá antes dos seus inimigos naturais. Foram atraídas e permanecem ou visitam o local com frequência por conta das refeições grátis que lhes são oferecidas quase que diariamente pelos humanos que moram nas proximidades.
Esse círculo vicioso, a depender do nosso comportamento, prospera até mesmo em bairros que são regularmente atendidos pelo serviço de coleta de lixo. Não jogar lixo a céu aberto, portanto, deveria ser uma regra de ouro para quem vive em aglomerados urbanos e não quer continuar alimentando presas (baratas e ratos) e predadores (escorpiões e serpentes) com os quais não gostaria de manter contato.
É simples assim: ofereceu comida, a visita virá; se não ofereceu, a visita talvez não venha.
5. CAPIM RODOVIÁRIO NUNCA MAIS.
O mato – leia-se: vegetação herbácea que prospera espontaneamente em áreas degradadas, terrenos baldios, margens de estradas etc. – pouco ou nada tem a ver com o problema.
Mais especificamente, cabe atentar para o seguinte: a vegetação que habitualmente coloniza e cresce em terrenos desocupados é formada de gramíneas e outras plantas pioneiras de crescimento rápido. Essas plantas prosperam em hábitats abertos, expostos à insolação direta.
Ora, como as margens dos rios costumam ser foiçadas ou capinadas todos os anos, as plantas pioneiras – cuja força está armazenada na raiz subterrânea – sempre terão à sua disposição um terreno que poderão ocupar e crescer livremente, sem vizinhos, sem maiores dificuldades. Assim é que a prática de capinar às cegas a vegetação herbácea exemplifica bem o significado da expressão dar um tiro no próprio pé. Veja o caso do capim rodoviário.
5.1. O capim rodoviário.
Entra ano, sai ano e as autoridades municipais seguem a ocupar funcionários e a desperdiçar recursos públicos com os serviços de capina. O governo federal e os governos estaduais incorrem no mesmo erro (em escala bem mais grave) quando promovem esse mesmo tipo de serviço ao longo de rodovias federais e estaduais.
Há alternativas melhores. A melhor delas talvez seja a seguinte: permitir que a sucessão ecológica prossiga espontaneamente o seu curso ao longo das margens. Como? É relativamente simples: evitando a capina às cegas – i.e., evitando o corte indiscriminado de arbustos ou árvores jovens que estejam a crescer em meio ao capinzal que acompanha as rodovias.
Ao contrário de gramíneas e outras plantas de crescimento rápido, árvores e arbustos alocam proporcionalmente muito mais recursos na manutenção das partes aéreas dos seus corpos (incluindo aí custosos sistemas de defesa, reparo e armazenagem). No fim das contas, é por isso que elas crescem tão mais devagar. (Plantas herbáceas, pouco ou nada investem em sistemas de defesa ou reparo, razão pela qual, aliás, nós podemos comer algumas delas cruas. A maior parte dos recursos é prontamente alocada em crescimento, embora o percentual alocado e a presteza da alocação sejam variáveis que a planta modula de acordo com as circunstâncias.)
O maior inconveniente da proposta aqui defendida é que o corte seletivo exige alguma atenção. Afinal, não dá para simplesmente passar a tesoura sem olhar. Por isso mesmo, o procedimento tendem a ser mais demorado. Mas isso apenas nos dois ou três primeiros anos. Depois disso, as diferenças se tornarão evidentes – em menos de dois anos, por exemplo, certas espécies de arbustos já terão alcançado mais de 2 m de altura.
Dois ou três anos depois de iniciado o corte seletivo, o círculo vicioso de outrora começará a ser substituído por um círculo virtuoso: à medida que arbustos e árvores conseguem se estabelecer e prosperar, a vegetação pioneira perde força. Como as plantas herbáceas (gramíneas etc.) em geral são intolerantes ao sombreamento, à medida que a vegetação arbórea ganha altura, gramíneas e afins irão rareando e, por fim, desaparecerão do local. (Assim como as saúvas, aliás.)
No contexto desse círculo virtuoso, portanto, trocaríamos um denso e permanente capinzal por fileiras de arbustos e árvores em crescimento a margear rodovias, rios etc. O atual serviço de capina poderá então ser substituído por um programa de manejo de uma paisagem que passaria a contar então com fileiras ou faixas (mais ou menos largas) de vegetação arbórea.
6. CODA.
De resto, nesta semana de volta às aulas, ficam aqui três sugestões de temas para uma redação escolar: “O mau cheiro do rio – Por que o rio da nossa cidade fede tanto?”, “O lixo na praia – Por que há tanto lixo jogado ou misturado na areia da praia?” e “O capim rodoviário – Quem cuida da vegetação que prospera ao longo das rodovias?”.
NOTAS.
[*] Marinês Eiterer (1965-2023). Versão anterior deste artigo, intitulada ‘Vamos deixar o mato crescer!’, foi publicada no informativo eletrônico La Insignia, em 3/6/2007. Para outros artigos da autora publicados neste GGN, ver Por trás da beleza dos fogos de artifício (2017), Ornitologia para crianças: Tucanos e araçaris (2021) e Néctar: água, açúcar e mais algum tempero (2023).
[**] Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os livros do segundo autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume específico ou para mais informações, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras de livros do segundo autor, ver aqui.
[1] 25 anos atrás, como uma tentativa de frear e contornar toda essa degradação, foi sancionada a chamada Lei das Águas (Lei no. 9.433, de 8/1/1997). A lei surgiu com o propósito de, entre outras coisas, estabelecer um prazo para que os municípios brasileiros enfrentassem e, quem sabe, iniciassem um programa sério visando reverter a degradação dos rios e, em última instância, a ameaça que ainda hoje paira sobre a integridade dos corpos de água doce usados para abastecimento urbano.
[2] Em certas cidades litorâneas, a administração municipal tem o curioso costume de arrumar a areia da praia, ao menos aquela que fica acima do limite da maré alta. Alguns porcossauros que moram nesses balneários adotaram o vergonhoso hábito de descartar sacos de lixo na areia da praia. Eles fazem isso em dias em que não há coleta. Consegue adivinhar o que acontece em seguida? Pois bem, a máquina da prefeitura vem, ignora a presença desses sacos (passa por cima ou encobre com areia) e o problema some. Mágica! O segundo autor aprendeu sobre isso em 2014, participando de um evento acadêmico em São Vicente (SP). Ao esconder o lixo na areia da praia, as autoridades municipais engambelam alguns turistas, dão um péssimo exemplo aos municípios mais jovens e, o pior de tudo, desrespeitam os próprios moradores da cidade. Em tempo: Não estou aqui me referindo apenas e tão somente aos governantes de São Vicente, se é que a prática por lá ainda perdura. Conheço relatos semelhantes envolvendo outras cidades. O caso de São Vicente me assustou apenas por que a cidade tinha ou tem pretensões de ser rotulada como turística. (Cidades turísticas brasileiras parecem condenadas a um entrechoque permanente envolvendo Locais e Visitantes. Cobrar preços extorsivos é uma das armas favoritas usadas pelos Locais. Jogar lixo na rua é um contra-ataque silencioso muito usado pelos Visitantes.)
[3] Os autores moraram na zona rural. O segundo autor ainda mora e segue a conviver com esses personagens. (Além, claro, de alguns outros que nem sempre são bem-vindos na casa de muita gente – para detalhes, ver o artigo No país da zoofobia.) Cabe aqui, no entanto, um registro importante: As espécies que vivem na zona rural não são as mesmas encontradas na zona urbana. Um exemplo notório é que não há ratazanas-de-esgoto na zona rural (Rattus norvegicus, uma espécie introduzida). Além de diferenças na composição e na diversidade das faunas, o tamanho das populações também costuma diferir bastante. Na zona rural, por exemplo, não há uma supremacia numérica tão exagerada de apenas uma ou outra espécie de barata ou de roedor. Razão pela qual a dieta dos predadores que se alimentam dessas presas também é outra. Assim, na ausência das suculentas baratas urbanas (e.g., Periplaneta americana, outra espécie introduzida), os escorpiões da zona rural seguem a dieta tradicional dos seus ancestrais, incluindo grilos e outros frequentadores da ruidosa e agitada vida noturna no campo.
Outro problema recorrente e bastante comum entre nós envolve o descarte de lixo em cursos d’água ou mesmo na praia [2], procedimentos que muitas vezes refletem a desinformação ou apenas o estado de espírito dos moradores. (350 anos de escravização deixaram muitas marcas na sociedade brasileira, incluindo a miopia e o desmazelo que tanto caracterizam a nossa elite econômica.)
Despejar o lixo doméstico a céu aberto equivale a dar um tiro no próprio pé. Para começo de conversa, cabe observar que parcela expressiva do lixo doméstico produzido nas cidades é constituída de refugos orgânicos. (É uma vergonha, mas é o temos no cardápio de hoje.) Para quem não se lembra das aulas de ecologia no ensino médio, não custa lembrar: Todo esse material orgânico serve de alimento e sustenta uma ampla e variada rede de consumidores urbanos, alguns dos quais dificilmente são bem-vindos na casa de alguém (e.g., moscas, baratas e ratos). Por sua vez, esses consumidores que se alimentam diretamente do material orgânico que nós descartamos, servem de alimento para animais de níveis tróficos superiores, como é o caso de escorpiões e serpentes, dois grupos de predadores carnívoros que se alimentam de baratas (os primeiros) e ratos (os últimos), ainda que a dieta deles inclua outros itens [3].
Vale a pena insistir: escorpiões e serpentes não aparecem em terrenos baldios por causa do lixo ou do ‘mato’ que ali prospera. Não. Eles estão ali por causa da presença de outros animais, muito mais numerosos e oportunistas: as suas presas. Estas, por sua vez, chegaram lá antes dos seus inimigos naturais. Foram atraídas e permanecem ou visitam o local com frequência por conta das refeições grátis que lhes são oferecidas quase que diariamente pelos humanos que moram nas proximidades.
Esse círculo vicioso, a depender do nosso comportamento, prospera até mesmo em bairros que são regularmente atendidos pelo serviço de coleta de lixo. Não jogar lixo a céu aberto, portanto, deveria ser uma regra de ouro para quem vive em aglomerados urbanos e não quer continuar alimentando presas (baratas e ratos) e predadores (escorpiões e serpentes) com os quais não gostaria de manter contato.
É simples assim: ofereceu comida, a visita virá; se não ofereceu, a visita talvez não venha.
5. CAPIM RODOVIÁRIO NUNCA MAIS.
O mato – leia-se: vegetação herbácea que prospera espontaneamente em áreas degradadas, terrenos baldios, margens de estradas etc. – pouco ou nada tem a ver com o problema.
Mais especificamente, cabe atentar para o seguinte: a vegetação que habitualmente coloniza e cresce em terrenos desocupados é formada de gramíneas e outras plantas pioneiras de crescimento rápido. Essas plantas prosperam em hábitats abertos, expostos à insolação direta.
Ora, como as margens dos rios costumam ser foiçadas ou capinadas todos os anos, as plantas pioneiras – cuja força está armazenada na raiz subterrânea – sempre terão à sua disposição um terreno que poderão ocupar e crescer livremente, sem vizinhos, sem maiores dificuldades. Assim é que a prática de capinar às cegas a vegetação herbácea exemplifica bem o significado da expressão dar um tiro no próprio pé. Veja o caso do capim rodoviário.
5.1. O capim rodoviário.
Entra ano, sai ano e as autoridades municipais seguem a ocupar funcionários e a desperdiçar recursos públicos com os serviços de capina. O governo federal e os governos estaduais incorrem no mesmo erro (em escala bem mais grave) quando promovem esse mesmo tipo de serviço ao longo de rodovias federais e estaduais.
Há alternativas melhores. A melhor delas talvez seja a seguinte: permitir que a sucessão ecológica prossiga espontaneamente o seu curso ao longo das margens. Como? É relativamente simples: evitando a capina às cegas – i.e., evitando o corte indiscriminado de arbustos ou árvores jovens que estejam a crescer em meio ao capinzal que acompanha as rodovias.
Ao contrário de gramíneas e outras plantas de crescimento rápido, árvores e arbustos alocam proporcionalmente muito mais recursos na manutenção das partes aéreas dos seus corpos (incluindo aí custosos sistemas de defesa, reparo e armazenagem). No fim das contas, é por isso que elas crescem tão mais devagar. (Plantas herbáceas, pouco ou nada investem em sistemas de defesa ou reparo, razão pela qual, aliás, nós podemos comer algumas delas cruas. A maior parte dos recursos é prontamente alocada em crescimento, embora o percentual alocado e a presteza da alocação sejam variáveis que a planta modula de acordo com as circunstâncias.)
O maior inconveniente da proposta aqui defendida é que o corte seletivo exige alguma atenção. Afinal, não dá para simplesmente passar a tesoura sem olhar. Por isso mesmo, o procedimento tendem a ser mais demorado. Mas isso apenas nos dois ou três primeiros anos. Depois disso, as diferenças se tornarão evidentes – em menos de dois anos, por exemplo, certas espécies de arbustos já terão alcançado mais de 2 m de altura.
Dois ou três anos depois de iniciado o corte seletivo, o círculo vicioso de outrora começará a ser substituído por um círculo virtuoso: à medida que arbustos e árvores conseguem se estabelecer e prosperar, a vegetação pioneira perde força. Como as plantas herbáceas (gramíneas etc.) em geral são intolerantes ao sombreamento, à medida que a vegetação arbórea ganha altura, gramíneas e afins irão rareando e, por fim, desaparecerão do local. (Assim como as saúvas, aliás.)
No contexto desse círculo virtuoso, portanto, trocaríamos um denso e permanente capinzal por fileiras de arbustos e árvores em crescimento a margear rodovias, rios etc. O atual serviço de capina poderá então ser substituído por um programa de manejo de uma paisagem que passaria a contar então com fileiras ou faixas (mais ou menos largas) de vegetação arbórea.
6. CODA.
De resto, nesta semana de volta às aulas, ficam aqui três sugestões de temas para uma redação escolar: “O mau cheiro do rio – Por que o rio da nossa cidade fede tanto?”, “O lixo na praia – Por que há tanto lixo jogado ou misturado na areia da praia?” e “O capim rodoviário – Quem cuida da vegetação que prospera ao longo das rodovias?”.
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NOTAS.
[*] Marinês Eiterer (1965-2023). Versão anterior deste artigo, intitulada ‘Vamos deixar o mato crescer!’, foi publicada no informativo eletrônico La Insignia, em 3/6/2007. Para outros artigos da autora publicados neste GGN, ver Por trás da beleza dos fogos de artifício (2017), Ornitologia para crianças: Tucanos e araçaris (2021) e Néctar: água, açúcar e mais algum tempero (2023).
[**] Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os livros do segundo autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume específico ou para mais informações, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras de livros do segundo autor, ver aqui.
[1] 25 anos atrás, como uma tentativa de frear e contornar toda essa degradação, foi sancionada a chamada Lei das Águas (Lei no. 9.433, de 8/1/1997). A lei surgiu com o propósito de, entre outras coisas, estabelecer um prazo para que os municípios brasileiros enfrentassem e, quem sabe, iniciassem um programa sério visando reverter a degradação dos rios e, em última instância, a ameaça que ainda hoje paira sobre a integridade dos corpos de água doce usados para abastecimento urbano.
[2] Em certas cidades litorâneas, a administração municipal tem o curioso costume de arrumar a areia da praia, ao menos aquela que fica acima do limite da maré alta. Alguns porcossauros que moram nesses balneários adotaram o vergonhoso hábito de descartar sacos de lixo na areia da praia. Eles fazem isso em dias em que não há coleta. Consegue adivinhar o que acontece em seguida? Pois bem, a máquina da prefeitura vem, ignora a presença desses sacos (passa por cima ou encobre com areia) e o problema some. Mágica! O segundo autor aprendeu sobre isso em 2014, participando de um evento acadêmico em São Vicente (SP). Ao esconder o lixo na areia da praia, as autoridades municipais engambelam alguns turistas, dão um péssimo exemplo aos municípios mais jovens e, o pior de tudo, desrespeitam os próprios moradores da cidade. Em tempo: Não estou aqui me referindo apenas e tão somente aos governantes de São Vicente, se é que a prática por lá ainda perdura. Conheço relatos semelhantes envolvendo outras cidades. O caso de São Vicente me assustou apenas por que a cidade tinha ou tem pretensões de ser rotulada como turística. (Cidades turísticas brasileiras parecem condenadas a um entrechoque permanente envolvendo Locais e Visitantes. Cobrar preços extorsivos é uma das armas favoritas usadas pelos Locais. Jogar lixo na rua é um contra-ataque silencioso muito usado pelos Visitantes.)
[3] Os autores moraram na zona rural. O segundo autor ainda mora e segue a conviver com esses personagens. (Além, claro, de alguns outros que nem sempre são bem-vindos na casa de muita gente – para detalhes, ver o artigo No país da zoofobia.) Cabe aqui, no entanto, um registro importante: As espécies que vivem na zona rural não são as mesmas encontradas na zona urbana. Um exemplo notório é que não há ratazanas-de-esgoto na zona rural (Rattus norvegicus, uma espécie introduzida). Além de diferenças na composição e na diversidade das faunas, o tamanho das populações também costuma diferir bastante. Na zona rural, por exemplo, não há uma supremacia numérica tão exagerada de apenas uma ou outra espécie de barata ou de roedor. Razão pela qual a dieta dos predadores que se alimentam dessas presas também é outra. Assim, na ausência das suculentas baratas urbanas (e.g., Periplaneta americana, outra espécie introduzida), os escorpiões da zona rural seguem a dieta tradicional dos seus ancestrais, incluindo grilos e outros frequentadores da ruidosa e agitada vida noturna no campo.
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