30 novembro 2025

A hora íntima

Vinícius de Moraes

Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: – Nunca fez mal...
Quem, bêbedo, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: – Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: – Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançará um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: – Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: – Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?

Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?

Fonte (v. 1 e 2): Cunha, C. 1976. Gramática do português contemporâneo, 6ª ed. BH, Bernardo Álvares. Poema publicado em livro em 1959.

29 novembro 2025

Afiliação

Stanley Schachter

[Evans] Dr. Schachter, embora o seu trabalho mais recente tenha seguido outras direções, seus primeiros esforços no campo da psicologia social são ainda largamente discutidos nos compêndios introdutórios e de psicologia social. Uma área de particular interesse é a do seu trabalho sobre afiliação. O que o levou a esta linha de pesquisa? Como foi que começou a se interessar pela necessidade de afiliação?

[Schachter] Eu havia trabalhado com Leon Festinger e Kurt Lewin em todo esse assunto de influência social, comparação social, como as pessoas avaliam suas opiniões, os determinantes sociais das opiniões e assim por diante. Simplesmente impressionou-me o fato de prestarmos muita atenção às consequências de estarmos com outras pessoas, e quase nenhuma ao fato de elas se darem ao trabalho de se associar, de modo geral. A psicologia social partiu da premissa de que as pessoas efetivamente se afiliam; elas se associam, elas realmente querem estar umas com as outras – e continuou desse ponto a examinar o que acontece quando elas estão juntas. Passei a ter muita curiosidade quanto ao porque, o motivo não óbvio, das pessoas quererem estar juntas, em geral.

Fonte: Evans, R. I. 1979 [1976]. Construtores da psicologia. SP, Summus & Edusp.

28 novembro 2025

Chave para a determinação de famílias botânicas

Alfreda William Thames

Para se fazer a determinação da família de um vegetal, o estudioso de Botânica deverá conhecer muito bem a ‘organografia’.

Para entrar na chave, a primeira preocupação do naturalista é ver a que secção pertence o material em exame, determinando em seguida a subsecção e a classe. Encontrada esta, verificar em que subgrupo se enquadra, pelos seus caracteres, o exemplar em estudo e seguir a chave.

Fonte: Thames, A. W. 1977. Botânica sistemática, 9ª ed. Ribeirão Preto, Edição do Autor.

25 novembro 2025

O Álbum

Shirley Ferreira

Ao longo do século XX, a literatura brasileira ganhou em densidade e sofisticação. Seus meandros, claro, se multiplicaram. Sempre foi, no entanto, um território contestado. Dos seus primórdios, em que era usada como instrumento de definição da identidade nacional, aos dias de hoje, quando diferentes grupos sociais reivindicam sua alteridade. Nos últimos anos, aumentou a heterogeneidade, visto que a prática literária passou a atrair e a abrigar a presença de várias minorias – e.g., mulheres (brancas e não brancas), negros (homens e mulheres), indígenas e integrantes do espectro LGBT+, segmentos outrora ignorados ou marginalizados. [...]

A literatura negro-brasileira e/ou afro-brasileira ganhou força e adentrou de vez no cenário literário. Cabe ressaltar que a trajetória dessa vertente foi marcada de dois modos: primeiro, com o sujeito negro sendo usado como matéria-prima ou tema e, segundo, no momento em que o sujeito negro passa a ser ele próprio autor dos seus textos.

Em minha pesquisa de mestrado conheci a obra de Luiz Gama (1830-1882), um dos precursores da poética negra. Autor de versos satíricos, reunidos no livro Primeiras Trovas Burlescas de Getulino (1859), que ironizava, entre outras coisas, a ideologia do branqueamento cultural dos mulatos. Ironizava também certos comportamentos das camadas sociais dominantes (política e economicamente) ainda às voltas com a monarquia. A ousadia de sua obra despertou admiração e respeito por parte de muita gente – notadamente abolicionistas – que compartilhava dos mesmos ideais. [...]

No decorrer dos estudos sobre Luiz Gama, descobri e entrei em contato com os escritos de Maria Firmina dos Reis (1825-1917). Logo me dei conta de certas semelhanças, apesar das diferenças na carreira literária – Gama, a rigor, foi autor de um único livro. Percebi, por exemplo, que ambos usaram o texto literário para expressar o desconforto e o descontentamento que sentiam diante de um sistema escravocrata. Ainda que tenham seguido trajetórias diferentes, deixaram um legado valioso que passou a servir de inspiração paraas gerações de escritores negros que vieram em seguida.

Nascida na capital da província do Maranhão, com 22 anos de idade Maria Firmina foi morar na Vila São José de Guimarães (atual município de Guimarães), onde se estabeleceria como professora e escritora. Ali, produziu uma rica obra literária também publicada em vários jornais de São Luís.

Fonte: Ferreira, S. 2025. O Álbum: Conjecturas e refutações aobre a vida e obra de Maria Firmina dos Reis. Curitiba, Appris.

22 novembro 2025

A teoria do QI hereditário

Lewis Terman

Afinal de contas, a observação corrente não nos ensina que, em geral, não são as oportunidades, mas as qualidades do intelecto e do caráter, que determinam a classe social a que pertence uma família? O que já se conhece sobre a hereditariedade não nos autoriza a pensar que os filhos de pais prósperos, cultos e com boas perspectivas têm uma bagagem hereditária superior aos dos que foram criados nos bairros pobres? Quase todas as provas científicas disponíveis sugerem uma resposta afirmativa à pergunta que acabamos de formular.

Fonte: Gould, S. J. 1991 [1981]. A falsa medida do homem. SP, Martins Fontes. Excerto de livro originalmente publicado em 1917.

20 novembro 2025

O duo


Hendrick [Jansz] ter Brugghen (1588-1629). Het duo. 1628.

Fonte da foto: Wikipedia.

18 novembro 2025

Se os soldados também podem ser salvos

Martinho Lutero

Mas o que ireis fazer com o fato de que as pessoas não manterão a paz, mas roubarão, furtarão, matarão, violarão mulheres e crianças, e se apoderarão de propriedades de propriedades e honra? A pequena falta de paz chamada guerra ou espada deve fixar um limite a essa falta de paz universal, mundial que destruiria a todos. Por isso Deus honra tanto a espada a ponto de dizer que ele próprio a instituiu (Rom., 13: 1) e não quer que os homens digam ou pensem que eles a inventaram ou instituíram. Pois a mão que brande essa espada e mata com ela não é a mão do homem, mas a mão de Deus. E não é o homem, mas Deus, quem enforca, tortura, decapita, mata e luta. Tudo isso são obras e julgamentos de Deus.

Fonte: Wilson, E. O. 2013 [2012]. A conquista social da Terra. SP, Companhia das Letras. Trecho de ensaio publicado em 1526.

16 novembro 2025

Amor galante

José Eduardo Degrazia

Senhora do meu desejo,
já não sei por onde andais,
por que não pacificais
ah! tão doce e belo ensejo...

Senhora do meu tormento,
assim vós sacrificais
em punhaladas mortais?
Tortura, dó e lamento...

Senhora do meu martírio,
por que assim me vos negais?
É fácil ser do amor, rio...

Ah! Senhora dos meus ais,
por que não vos entregais?
Minha vida por um fio...

Fonte: Horta, A. B. 2016. Do que é feito o poeta. Brasília, Thesaurus. Poema publicado em livro em 2011.

15 novembro 2025

19 anos e um mês no ar

F. Ponce de León

Na última quarta-feira, 12/11, o Poesia Contra a Guerra completou 19 anos e um mês no ar.

Desde o balanço anterior – ‘Aniversário de 19 anos’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Adam Smith, Dilercy Adler, Henry Wadsworth Longfellow, Mike Tomkies, Roberto Dall’Agnol, Seymour B. Sarason e William Thomson. Além de material de autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes artistas: Edwin Lord Weeks, Ferdinand Georg Waldmüller e Jean-Jacques Henner.

10 novembro 2025

Garota alsaciana


Jean-Jacques Henner (1829-1905). Fille alsacienne. 1873.

Fonte da foto: Wikipedia.

08 novembro 2025

O muro

Alberto de Oliveira

É um velho paredão, todo gretado,
Roto e negro, a que o tempo uma oferenda
Deixou num cacto em flor ensanguentado
E num pouco de musgo em cada fenda.

Serve há muito de encerro a uma vivenda;
Protegê-la e guardá-la é seu cuidado;
Talvez consigo esta missão compreenda,
Sempre em seu posto, firme e alevantado.

Horas mortas, a lua o véu desata,
E em cheio brilha; a solidão se estrela
Toda de um vago cintilar de prata;

E o velho muro, alta a parede nua,
Olha em redor, espreita a sombra, e vela,
Entre os beijos e lágrimas da lua.

Fonte (primeira estrofe): Bosi, A. 2013. História concisa da literatura brasileira, 49ª ed. SP, Cultrix. Poema publicado em livro em 1912.

07 novembro 2025

El último lugar salvaje

Mike Tomkies

La vieja casa de piedra era fría y poco acogedora. Tiritando por primera vez en un rincón de su interior frío y húmedo, rodeado por los restos de mi vida anterior, fui presa de un súbito pánico. Calado hasta los huesos, estaba agotado después de una larga jornada dedicada a transportar haces de leña y bultos de equipaje en una barca de una orilla a otra del lago, de aguas grises como el acero, bajo el azote de la lluvia, que caía con fuerza. Después de vivir siete años en plena naturaleza, primero en una costa remota del oeste del Canadá y luego en una vieja cabaña de madera junto al Atlántico en una isla escocesa, mis acariciadas esperanzas de que este nuevo lugar se convirtiera en la base para nuevas experiencias naturalistas, más intensas que ninguna de las anteriores, parecían no ya presuntuosas, sino decididamente temerarias. Nadie había vivido allí de modo permanente desde 1912. Al quedar fuera de servicio el viejo vapor que en otro tiempo había surcado el lago, había desaparecido también de sus orillas toda vida humana.

Fonte: Tomkies, M. 1988 [1984]. El último lugar salvaje. Barcelona, Martínéz Roca.

05 novembro 2025

O destino das colônias

Adam Smith

A colônia de uma nação civilizada que toma posse de um território desocupado ou tão tenuamente habitado que os nativos facilmente cedem lugar aos novos colonos progride mais rápido para a riqueza e a grandeza do que qualquer outra sociedade humana.

Fonte: Crosby, A. W. 1993. Imperialismo ecológico. SP, Companhia das Letras. Excerto de livro originalmente publicado em 1776.

02 novembro 2025

O Assinalado

Cruz e Sousa

Tu és o louco da imortal loucura,
O louco da loucura mais suprema.
A Terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tu’alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas, pouco a pouco...

Na Natureza prodigiosa e rica
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!

Fonte: Ricieri, F., org. 2008. Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira. SP, Ibep. Poema publicado em livro em 1905.

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